03 novembro 2016

"Há tempos acompanho as discussões virtuais em espaços ativistas e tenho me deparado com um gesto que vem me incomodando muito no que tange à questão da identidade periférica: alguns/mas militantes, ao referir-se a casos e/ou pessoas que carregam elementos privilegiados em relação à classe social, evocam a magic card do “mas na perifa...” (e suas variantes “mas as mina periférica”, “mas na quebrada”, etc etc) para legitimar certo discurso ancorado, principalmente, no fetichismo da miséria - essa que a esquerda USP tanto adora reiterar em suas falas e panfletos, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, afirma que cotas raciais é uma ação pequeno-burguesa. Então fala-se em “periferia” (no singular mesmo) para evocar um espaço que comporta certa homogeneidade identitária para caber em certo tipo de discurso.
Nada mais perigoso do que pensar em universalidades e, aqui, mais perigoso ainda pensar numa periferia homogênea - ou numa identidade periférica homogênea. Pr’além do fato óbvio de que houve uma ampliação de acesso a bens e serviços por parte de uma população a quem isso é historicamente negada (esse mesmo fato que tornou possível narrativas como o “Que horas ela volta?”), as periferias são plurais e abarcam pluralidades, o que torna cada vez mais difícil defini-la - talvez fosse relativamente fácil há dez ou quinze anos atrás.
Eu sugiro que vocês se aventurem a ler alguma antologia literária RECENTE de autores/as periféricos/as, busquem suas produções e biografias e tentem traçar ali algum tipo de homogeneidade que abarque essa noção de periferia que a maioria de vocês tem introjetada no imaginário: escuridão, miséria, subalternização, etc. Principalmente porque a projeção da identidade periférica surge exatamente para mostrar que a(s) periferia(s) é(são) outra(s) coisa(s) pr’além do que limitadamente sonha a vanguarda do movimento estudantil.
Tenho consciência de que a discussão de identidades e homogeneidades é bem mais complexa do que essas poucas linhas traçadas em status de facebook: eu bem li a Spivak falar em essencialismo enquanto medida estratégica para conquista de direitos por parte de um certo contingente que a reivindica; mas também não deixo de alertar que esse gesto produz silenciamento que, por sua vez, invisibiliza resistências.
Existe miséria na periferia, mas também há articulação política: feministas, anarquistas, socialistas, LGBTs, movimento por creches, cursinhos populares, saraus, etc. Da mesma forma que existe sim conservador, machista, homofóbico, racista - inclusive gente que compra o discurso PSDBista. Afinal, se há pluralidades há também um campo de disputa ideológica em curso.

Jurema Werneck, feminista negra, afirma que “mulheres negras não existem”, complementando que esses sujeitos são constituintes de “demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento de condições adversas” impostas pela sociedade racializada. Da mesma forma - e dada as devidas proporções - sugiro também que periféricos (e [pior ainda] periféricAs) não existem, uma vez que se tratam de sujeitos identitários e políticos que surgem também a partir de novas demandas e, sobretudo, do embate com discursos que insistem em relegá-los à existência da miséria, do silêncio e ausência da construção de suas próprias subjetividades."


Bianca Gonçalves