29 junho 2014

Entrevista: Eugenio Raúl Zaffaroni – Função do Direito Penal é limitar o poder punitivo

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ConJur — Para que serve o Direito Penal?Eugenio Raúl Zaffaroni — A função do Direito Penal, hoje e sempre, é conter o poder punitivo. O poder punitivo não é seletivo do poder jurídico, e sim um fato político, exercido pelas agências do poder punitivo, especialmente a polícia. Não estou falando da Polícia Federal ou da que está na rua e sim de todas as agências policiais, campanhas de inteligência, arquivos secretos, polícia financeira, enfim, agências executivas. Essas agências têm uma contenção jurídica que é o Direito Penal.
ConJur — Cabe ao Judiciário limitar o poder punitivo?Zaffaroni — O Judiciário é indispensável para isso. A contenção é feita pelos juízes. Sem limites, saímos do Estado de Direito e caímos em um Estado Policial. Fora de controle, as forças do poder punitivo praticam um massacre, um genocídio. O Direito Penal é indispensável à persistência do Estado de Direito, que não é feito uma vez e está pronto para sempre. Há uma luta permanente com o poder. O Estado de Polícia se confronta com o Estado de Direito no interior do próprio Estado de Direito. Estar perto do modelo ideal de Estado de Direito depende da força de contenção do Estado Policial.
ConJur — Os juízes têm exercido a contento a função de limitar o poder punitivo?Zaffaroni — Esse é o dever do Judiciário. No curso da história, muitas vezes, o Judiciário traiu sua função. Na medida em que os juízes traem sua função, tornam-se menos juízes, levando a um estado policial em que não há juízes, mas policiais fantasiados de juízes. Foi o que aconteceu na Alemanha nazista.
ConJur — Há uma tendência de o Judiciário aplicar o chamado Direito Penal do inimigo?Zaffaroni — Estamos vivendo um momento muito especial. Hoje, não é fácil pegar um grupo qualquer para estigmatizá-lo, mas há um grupo que sempre pode virar o bode expiatório. É o grupo dos delinquentes comuns.  É um candidato a inimigo residual que surge quando não há outro inimigo melhor. Houve uma época em que bruxas podiam ser acusadas de tudo, das perdas das colheitas à impotência dos maridos. O que se pode imputar aos delinquentes comuns é limitado, por isso é um candidato a bode expiatório residual. Nos últimos decênios, com a política republicana dos Estados Unidos, os delinquentes comuns se tornaram o mais recente bode expiatório.
ConJur — Qual o resultado dessa escolha do inimigo?Zaffaroni — Cria-se uma paranoia social, e estimula-se uma vingança que não tem proporção com o que acontece na realidade da sociedade. Através da história, tivemos muitos inimigos: hereges, pessoas com sífilis, prostitutas, alcoólatras, dependentes químicos, indígenas, negros, judeus, religiosos, ateus. Agora, são os delinquentes comuns, porque não temos outro grupo que seja um bom candidato. Esse fenômeno decorre do fato de os políticos estarem presos à mídia. Seja por oportunismo ou por medo, eles adotam o discurso único da mídia que é o da vingança, sem perceber que isso enfraquece o próprio poder.
ConJur — De que maneira?Zaffaroni — Ao adotar esse discurso, fomentam a autonomia das forças policiais, do poder que elas têm. Isso acontece porque a política ficou midiática. Não temos política de base, dirigentes falando com o povo; tudo é através da televisão. Eles estão presos aos meios de comunicação. Quando um juiz põe limites ao poder punitivo, a mídia critica e o político, montado sobre a propaganda da mídia, ameaça os juízes. A grande maioria de juízes está ciente disso e confronta a situação. Mas uma minoria tem medo. Com medo da mídia, da construção social da realidade, juízes acabam se tornando policiais.
ConJur — Nesse mundo paranoico, citado pelo senhor, qual o pior inimigo da sociedade?Zaffaroni — Aquele que nega a existência da emergência. O pior herege era aquele que negava o poder das feiticeiras. E a mídia tem razão de quem são os piores inimigos dela, porque negando isso estão negando o poder da mídia. O problema é confrontar a mídia. Mas é o único jeito. Se ninguém obstaculiza o avanço desse mundo paranoico, inevitavelmente, vai acabar em genocídio.
ConJur — O juiz tem que lidar com as leis e as provas do processo. Mas em processos de grande repercussão, os juízes também têm de lidar com a imprensa. Como se dá essa relação?Zaffaroni — O juiz ideal não existe. Como todo grupo, algumas pessoas são medrosas, outras são acomodadas e há as que assumem sua função. Cada um tem a sua consciência e sabe o que está fazendo. Na vida, nada é gratuito. Quem hoje está acomodado, amanhã pode ser vítima também do discurso de vingança. Os inimigos mudam muito rápido. O político ou o juiz que aceita ou aprova os excessos e as agências policiais fora de controle, está cavando o próprio túmulo. Porque amanhã, o inimigo muda e o político ou juiz corre o risco de virar ele próprio o bode expiatório.
ConJur — No Brasil, quando ocorre um crime mais chocante, os políticos tratam de apresentar leis penais mais severas.Zaffaroni — Isso está acontecendo em todo o mundo. Essa prática destruiu os Códigos Penais. Nesta política de espetáculo, o político precisa se projetar na televisão. A ideia é: “se sair na televisão, não tem problema, pode matar mais”. Vai conseguir cinco minutos na televisão, porque quanto mais absurdo é um projeto ou uma lei penal, mais espaço na mídia ele tem. No dia seguinte, o espetáculo acabou. Mas a lei fica. O Código Penal é um instrumento para fazer sentenças. O político pode achar que o Código Penal é um instrumento para enviar mensagens e propaganda política, mas quando isso acontece fazemos sentenças com um monte de telegramas velhos, usados e motivados por fatos que estão totalmente esquecidos, originários deste mundo midiático. Ao mesmo tempo, a construção da realidade paranóica não é ingênua, inocente ou inofensiva. É uma construção que sempre oculta outra realidade.
ConJur — Como assim?Zaffaroni — A mídia não fala da destruição do meio ambiente, das doenças tradicionais, das carências em outros sentidos. A única coisa que chama a atenção são as pessoas mortas por roubo. Mortos por roubo, pelo menos no meu país, temos poucos. A grande maioria dos homicídios é de pessoas que se conhecem. A primeira causa de morte violenta, na Argentina, é o trânsito. A segunda é o suicídio; a terceira, homicídio entre pessoas que se conhecem; em quarto, muito longe, vem homicídio por roubo. Mas nas manchetes dos jornais o que sai é homicídio por roubo. Ou seja, a primeira ameaça é atravessar a rua. A segunda é o medo, a depressão, psicose, melancolia; o terceiro é a família, os amigos, e no final, os ladrões. Essa é a realidade das mortes violentas na Argentina. E nem estamos falando de mortos por doenças que poderiam ser curadas se as pessoas fossem atendidas adequadamente.
ConJur — Mas as pessoas não matam por causa da mídia.Zaffaroni — Ninguém vai sair na rua para matar por causa de uma série de TV. Mas a propaganda contínua de violência na mídia, através das notícias ou do entretenimento, projeta a impressão de que a violência é uma escolha possível. Posso me tornar advogado, médico, trabalhador braçal, ou também posso roubar. É a banalidade da violência. Essa propaganda está caindo em uma sociedade que é plural, onde há pessoas frágeis ou que têm patologias. O efeito reprodutor disso é inevitável. E a propaganda contínua de que há impunidade é uma mensagem de incitação. Algo como: faça qualquer coisa que não vai acontecer nada.
ConJur — Uma parcela da sociedade defende que a polícia deve prender logo e que não precisa ter um processo judicial lento.Zaffaroni — Sem dúvida. O discurso retroalimenta-se. Essa retroalimentação do discurso sai para a rua em uma mensagem de incitação. Pessoas estão recebendo uma mensagem de instigação ao crime permanentemente, o que produz um efeito. Não há um fator preventivo. Esse discurso também tem outra função. Temos uma categoria de pessoas que são os excluídos. Excluído é aquele que é de plástico, descartável. O explorador precisa do explorado. O incluído não precisa do excluído. O excluído está fora do sistema produtivo. A técnica é introduzir cada vez mais contradições dentro da própria faixa de exclusão social.
ConJur — A criminalização é seletiva?Eugenio Raúl Zaffaroni — Sem dúvida. Em uma cadeia, encontra-se a faixa dos excluídos que são criminalizados. Mas, na outra ponta, percebemos que as vítimas pertencem basicamente à mesma faixa social, porque são aqueles que estão em uma situação mais vulnerável, não têm condições de pagar uma segurança privada, por exemplo. Eles ficam nas mãos do serviço de segurança pública que sofreu grande deterioração e cada dia se deteriora mais. E o policial, em geral, é escolhido na parte carente da sociedade. Enquanto os pobres se matem entre si, “tudo bem”. Eles não têm condições de falar entre eles, de ter consciência da situação, de coligar-se para nada, de ter nenhum protagonismo político. Assim estão perfeitamente controlados. A tecnologia moderna de controle dos excluídos já não consiste em pegar os cossacos do czar para controlar a cidade. Não. A técnica é mais perversa: colocar as contradições no interior da mesma faixa social e fazerem com que se matem uns aos outros.
ConJur — Mas, hoje, também percebemos que há um discurso de que é necessário não prender apenas os pobres. Prender ricos passa a ser uma amostra de que quem tem dinheiro também vai para a cadeia.Eugenio Raúl Zaffaroni — Sim. O rico, às vezes, vai para a cadeia também. Isso acontece quando ele se confronta com outro rico, e perde a briga. Tiram a cobertura dele. É uma briga entre piratas. Nesse caso, o sistema usa o rico que perdeu. E, excepcionalmente, o derrotado acaba na cadeia. Mas ter um VIP na prisão é usado pela mídia para comprovar que o sistema penal é igualitário. É a contracara do self-made man. Ou seja, tem aquele que vende jornal na porta do banco, e que foi trabalhando, tornou-se funcionário do banco, depois gerente e agora tem a maioria do pacote acionário da instituição. Como essa sociedade tem mobilidade vertical, este chegou a ser presidente ou dono do banco. E veja como esta sociedade é igualitária. Ele caiu e, hoje, está na cadeia. Mas o rico que está preso é sempre um VIP que perdeu para outro mais forte do que ele.
ConJur — O senhor disse que a tendência das cadeias é de desaparecerem. Como será isso?Eugenio Raúl Zaffaroni — Não é uma tendência atual, mas vai acontecer nos próximos anos. Vamos ter uma luta econômica entre a indústria da cadeia e de segurança com a indústria eletrônica. No momento, a indústria da cadeia é forte, pelo menos nos países centrais, como Estados Unidos. Mas, no final, a indústria eletrônica vai ganhar.
ConJur — Então é a cadeia física que vai desaparecer?Eugenio Raúl Zaffaroni — Sim. Vamos ter uma cadeia eletrônica e a tradicional vai sumir. É uma luta econômica. Com uma nova geração de chips, tecnologicamente, não vai ter necessidade de ter muros nas prisões. Com microchips embaixo da pele, vamos ter um controle de movimento do sujeito. Se o sujeito sair do itinerário prefixado, o chip faz disparar um mecanismo que causa uma dor paralisante por exemplo. Vamos ter a casa inteligente, mas isso também é uma cadeia. A gente acorda de manhã, põe o pé no chão e a casa já sabe se a gente vai para o banheiro, quer o café com leite, já prepara a comida. Tudo muito bonito, mas é uma cadeia também.
ConJur — Na medida em que isso acontece, não há risco de pessoas, que não cometeram crime e que não foram condenadas, passarem a ser monitoradas também?Zaffaroni — Felizmente isso vai acontecer quando eu já não estiver neste mundo. Se isto acontecer quando eu estiver neste mundo, vou virar um terrorista e destruir toda essa aparelhagem eletrônica. Acho que não vou ter tempo, estarei muito velho para isso. Mas se não é esse o grande perigo, ainda há um. Se continuarmos nessa direção, em certo momento, as próprias pessoas, com medo de serem sequestradas ou roubadas, vão optar por serem monitoradas. No final, o Estado ou as agências executivas vão ter um controle terrível. E essas pessoas vão necessitar de nós, os terroristas, para destruir esse controle. Se pensarmos sobre os controles que temos, hoje, sobre cada um de nós e os que tinham os nossos avós, vamos perceber que estamos muito mais controlados, presos. Se os criminosos não existissem, o poder teria de inventá-los para poder controlá-los.
ConJur — Ainda existe a ideia da cadeia como forma de ressocializar o preso ou essa discussão já foi superada?Zaffaroni —A ideia de de ressocialização é própria do estado previdente, do welfare state. O liberalismo econômico destruiu o welfare state e passou a existir a ideia de cadeia reprodutiva, que são gaiolas. A cadeia se tornou uma forma de vingança.
ConJur — O Judiciário no Brasil está fazendo mutirões carcerários para garantir benefícios aos presos. Como o senhor vê essa iniciativa?Eugenio Raúl Zaffaroni — A única solução é ter na cadeia o número de pessoas para as quais podemos oferecer condições mínimas de dignidade. De outro jeito, vamos ter sempre cadeias superlotadas. A única solução é ter um sistema de cotas. Se temos 2 mil vagas, só podemos ter 2 mil presos. Não podemos ter mais.
ConJur — Mas caberia ao juiz decidir quem vai para a cadeia ou não em uma situação dessa.Eugenio Raúl Zaffaroni — Pode ser do legislador ou do juiz. Pode tirar aquele que só tem dois meses de pena para cumprir. O número de presos é uma decisão política de cada estado. Em todo mundo, há previsão para que a pena seja cumprida dentro da prisão no caso de matar ou estuprar alguém. Já no caso de crime muito leve, não há previsão para que o contraventor seja encaminhado à prisão. Mas, no meio, tem uma faixa inesgotável de criminalidade média, em que a pessoa pode ou não ir para a cadeia. Essa é uma decisão política, não é uma circunstância. Isso explica situações totalmente absurdas. Os Estados Unidos têm o mais alto índice de pessoas presas do mundo. O Canadá, que está do lado, tem um dos mais baixos. Mas não é porque no Canadá os homicidas estejam na rua. Essa escolha é política.
ConJur — E como funcionam as interceptações telefônicas na Argentina? Há abuso nesse tipo de medida?Eugenio Raúl Zaffaroni — São dispostas pelo juiz. Não tenho dados sobre quantas há no país. Existindo motivos suficientes, o juiz autoriza a interceptação telefônica, que é registrada através de uma central. Sempre com autorização.
ConJur — E tem prazo máximo para que a interceptação seja feita?
Eugenio Raúl Zaffaroni —
 Não. Não é indefinidamente, deve ser feita durante a investigação. Como temos juiz instrutor, toda investigação é controlada por ele. Cada passo da investigação requer uma autorização do juiz. Depois, podemos analisar se a decisão foi razoável. No caso de não ser, a prova é considerada nula. Não temos grandes problemas nesse sentido.
ConJur — No Brasil, talvez pelo modo como a Constituição foi elaborada, quase tudo fica a cargo do Supremo dar a palavra final. Isso também acontece na Argentina?Eugenio Raúl Zaffaroni — Sim, inevitavelmente. Isso não significa que tudo seja resolvido pelo Supremo. Nós rejeitamos muitas coisas. Mas todo mundo procura chegar à Corte. Temos, por ano, 15 mil processos para sete ministros. Desses, rejeitamos quase 14 mil.
ConJur — Habeas corpus também vai para o Supremo?Eugenio Raúl Zaffaroni — Habeas corpus não. Amparo, que é um recurso, sim. Se alguém está preso cautelarmente e quer a liberdade, pode recorrer à Corte através de recurso ordinário. Porque achamos que a privação da liberdade equivale a sentença definitiva.
ConJur — E demora até esse recurso chegar à Corte Suprema?Eugenio Raúl Zaffaroni — Sim. Temos o mesmo poder que a Corte dos Estados Unidos de escolher. Então, na maioria dos casos, rejeitamos.
ConJur — O senhor disse que a privação da liberdade equivale a uma sentença. No caso de alguém que já foi condenado em primeira instância, vai preso ou pode responder todo o processo em liberdade?
Eugenio Raúl Zaffaroni — Pode continuar o processo em liberdade. Se estava em liberdade, a sentença não está firme. Mas é excepcional. É a prisão cautelar que pode chegar até a Corte. Prisões não fundamentadas ocorrem em poucos casos. A maioria sabe que chegando à Corte, não é viável. Tem que ser uma situação muito excepcional, um processo muito arbitrário. Não é o normal.
ConJur — O ministro Antonin Scalia, da Suprema Corte dos Estados Unidos, disse que o papel do Judiciário é aplicar leis feitas pela vontade do povo através de seus representantes no Congresso. Assim, não cabe ao juiz decidir além do que está expresso na lei. O senhor concorda com essa visão?Eugenio Raúl Zaffaroni — Na medida em que o legislador não tenha usurpado a função do constituinte, sim. Se o legislador criou uma lei que não está em consonância com o sentido constituinte, é função do juiz aplicar a Constituição e não a lei do legislador.
ConJur — Mas e o que não é previsto em lei?Eugenio Raúl Zaffaroni — O que não está previsto na lei, do ponto de vista penal, não é nada. E do ponto de vista civil, tem que ser resolvido de igual forma. De outro jeito, ficaria aberta uma guerra civil.
ConJur — Em sua opinião, o Judiciário serve para fazer justiça?Eugenio Raúl Zaffaroni — Não acredito muito na Justiça como valor absoluto. A função do Judiciário é resolver conflitos. Nesse sentido, o Judiciário é um serviço. E um serviço público. Se funciona bem ou mal, isso acontece como em qualquer serviço público.
ConJur —Recentemente, a Argentina reviu a lei de anistia. Como foi esse processo?Eugenio Raúl Zaffaroni — Não, não houve uma revisão. A lei foi anulada. O Congresso declarou a nulidade de uma lei. Eu acho que o Congresso não pode declarar nula uma lei por razões que não sejam formais. Por razões de fundo é muito complicado. Mas de qualquer maneira nós declaramos que a lei era totalmente inconstitucional, seguindo a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Argentina condenou só os comandantes. Depois declararam a anistia, mas o governo Menem indultou os condenados. Nós declaramos a nulidade da anistia e dos indultos. Declaramos a nulidade de tudo.
ConJur — Qual foi o argumento?Eugenio Raúl Zaffaroni — Estava contra o que nós tínhamos ratificado no tratado interamericano de Direito Humanos. O Tratado Interamericano proíbe essas leis.

27 junho 2014

"Talvez fosse mais proveitoso se, em vez de perguntarmos se a modernidade ainda é capaz de produzir obras-primas e revoluções, perguntássemos se ela é capaz de gerar fontes e espaços de significação, de liberdade, de dignidade, de beleza, de alegria, de solidariedade. Teríamos, então, de confrontar a realidade bagunçada em que os homens, mulheres e crianças modernas vivem. O ar pode ser menos puro, mas a atmosfera seria com certeza muito mais acolhedora; encontraríamos, na expressão de Gertrude Stein, muito mais lá lá. E quem sabe - é impossível saber com antecedência - pudéssemos até encontrar algumas obras-primas ou revoluções em gestação.
(...)
Ler O capital não vai nos ajudar se não soubermos também ler os sinais nas ruas."
Marshall Berman, 'Os sinais nas ruas' In: Aventuras no marxismo, 2001 [1999], pp. 189-191.

via: Silvio Pedrosa

PJ Harvey Live At The Sydney Festival 2012


SEIS CRÍTICAS AO MARXISMO A QUE MARX ADERIRIA retirado do facebook: Bruno Cava




"Tudo que sei é que não sou marxista", pronunciada em 1879, com certeza hoje Marx manteria essa frase, diante de tanto marxista de gabinete, de estado, de salão, de butique, de cátedra, apaixonados pelo poder ou filiados à hegemonia, burocráticos, academicistas, tantos marxismos em compota, patrulhas marxológicas e marxímetros acadêmicos.



Depois de 150 anos de lutas, revoluções e infinitos volumes de teoria e debate, Marx insiste em fazer-se presente, apesar das ortodoxias. Estou falando de um Marx minoritário, um Marx das lutas, anticapitalista e antiestado, Marx da transição comunista, do perspectivismo da história, da luta de classe. Um Marx renovado que adere tranquilamente à crítica de um marxismo 1) economicista, 2) dicotômico, 3) utópico, 4) teleológico, 5) estatista, e 6) antropocêntrico.

Abaixo, tento resumir pelo menos essas seis:

1) Economicista: "O Capital" é um livro escrito em polêmica aberta contra os economistas clássicos liberais e suas "leis econômicas" próprias, contra a ideia que a economia fosse ciência autônoma. Nele, Marx vai não só desmascarar os economicismos que costumam separar o mercado do estado, como dois polos opostos (Marx demonstra que são integrados e funcionais um ao outro), que sustentem uma "mão invisível" quase divina dos mercados, ou que pressuponham o homem burguês como protótipo do agente racional, calculador e autointeressado, isto é, o indivíduo econômico; como nessa obra Marx também vai subverter as teorias economicistas que tentam quantificar o valor de troca (operando a passagem da qualidade à quantidade), determinar alguma equivalência entre trabalho e salário (para Marx, não há medida justa da exploração!); ou reduzir o dinheiro a equivalente geral e neutro, ou seja, visto apenas como meio de pagamento, e não como relação criativa de poder, como crédito. 

2) Dicotômico: em Marx, não dá pra falar em dois grupos pré-constituídos, duas camadas sociais, disputando o protagonismo da história. Isso seria a sociedade feudalista, que se divida por estamentos bem definidos. Na sociedade capitalista, muda a ideia de classe. Porque não existe simetria, proletariado e burguesia são dois termos incomparáveis, que não podem existir no mesmo plano. O trabalhador não precisa do capitalista pra existir, mas o capitalista precisa do trabalhador. Na sociedade capitalista, quando se dá o conflito, não se opõem dois grupos sociais. Opõem-se, sim, a sociedade capitalista e aqueles que, lutando, lutam pela abolição da sociedade capitalista. Tem-se, em Marx, como lido por exemplo por E. P. Thompson, um sujeito que se constitui libertando-se do outro grupo a que também pertence. O proletariado é a luta que se liberta da burguesia, que a destrói, destruindo a si próprio como um polo dessa relação. A luta de classe não opõe, assim, duas classes, mas constitui uma única: o proletariado, que não existe senão na luta. Isso não é dicotomia (dois lados num Fla-Flu), mas conflito na imanência, luta por libertação por si mesmo, por sua afirmação como liberdade diante do capital. É muito diferente.

3) Utópico: nenhuma análise faz sentido apenas como interpretação do mundo, sem um movimento real de lutas, em que, em primeiro lugar, essa análise possa colaborar para a transformação do mundo. Marx não fazia hipóteses, mas apostas políticas, mais ou menos implicadas nos grupos com quem pesquisava táticas e estratégias de ação. Sem sujeitos que, precária e fragmentariamente, encarnem as premissas das análises e suas linhas de desdobramento, elas não fazem sentido, se tornam opacas, bizantinas, porque impotentes, tendem a não passar de paralogismos com pendores estetizantes, para fruição pessoal mas nenhuma pungência. Marx não esculpia porcelanas teóricas, mas ferramentas de luta, armas críticas que pudessem ser usadas.

4) Teleológico: no prefácio do "Capital", já está colocado o desafio de virar a dialética aérea de Hegel de ponta cabeça, colocando-a com os pés no chão. O esforço de Marx será por desmontar qualquer sentido da história dado, qualquer seta em direção a um irrefreável progresso, qualquer etapismo em direção a algum futuro glorioso da humanidade, do estado, do poder. Nada disso. Tudo pode dar errado, tudo pode ser revertido, desviado, multiplicado, estratificado em níveis inarticuláveis. Contrapondo-se ao séquito hegeliano à esquerda, Marx não vê nenhuma tendência natural ao bem no homem, nada a defender dalguma natureza humana, nenhum otimismo antropológico. E tampouco qualquer pessimismo determinista, como se o Mal fosse abolir-se pelas próprias falhas. Nenhuma teodiceia ao Céu nem ao Inferno. As contradições do capitalismo não vão derrubá-lo por si próprias; não vão sequer acelerar a sua derrubada. Pelo contrário. O desenvolvimento do capital procede aproveitando as contradições, provocando crises, engendrando ansiedades, que ao fim e ao cabo são recuperadas para fortalecer sua dominação, o estado e o mercado que se reestruturam pela via da destruição criativa. Dialético e mefistofélico é o capital. Hegel é seu filósofo. Produtivista é o capital, ao enquadrar a multiplicidade das potências produtivas em valor econômico, dissolução das relações sociais dissidentes, e homogeneização daquelas pacificadas e voluntariamente servis. As lutas ou são antidialéticas, ou serão facilmente recuperadas. A luta de classe está orientada pela abolição da dialética entre capital e trabalho, entre crise e reestruturação, entre estado/público e mercado/privado. O comunismo é a dialética destruída: o momento em que a história se liberta da História, quando os sentidos escapam da dialética capitalista e se esgarçam à plenitude. Isso não é o fim da história, mas seu eterno recomeço, seu kairós: é a revolução, como em W. Benjamin. 

5) Estatista: sem dúvida o maior golpe ao pensamento de Marx é torná-lo um pensamento do estado, para o estado, a partir do estado. A maior derrota do marxismo talvez seja a possibilidade de falarmos em algo como um marxista-hegeliano. Tornar a categoria do estado um alfa e ômega do marxismo congela a ontologia constituinte de Marx, seu caráter essencialmente antiestado, como aquilo que revoluciona a ordem das coisas. Se Marx polemizou com os teóricos anarquistas de seu tempo, não foi porque eles eram contra o estado. Foi porque não eram contra o estado o suficiente. Não eram radicais o suficiente, ao limitar o estado à autoridade, à lei estatal, ao aparelho coercitivo, deixando de lado a estrutura metafísica que condiciona a existência do indivíduo, da sociedade e da economia no capitalismo, que também são estado. Sem entrar no mérito desses embates (particularmente vejo alguns pontos específicos em que fecharia com Bakunin e, em menos pontos, Proudhon), Marx nunca flertou com a ideia de estado como resolução de quaisquer dos problemas do comunismo. Nem mesmo na "ditadura do proletariado", a muito incompreendida proposta de radicalização da democracia operária.

6) Antropocêntrico: outra enorme lorota sobre Marx, especialmente nas elaborações posteriores, mas não só. Já em "Questão judaica", livro de juventude, Marx polemiza com os hegelianos de esquerda contra o humanismo secular (onde se inscrevem muitos ateísmos modernos), mostrando que há muito de teologia política nas ideias perfeitamente laicas de estado, poder público e emancipação humana. Também na Seção 4 do Cap. 1, do "Capital", em que a crítica do fetichismo sugere um aspecto mágico do trabalho vivo, na força demoníaca do fetichismo revolucionário (tão bem reapropriado pelo cinema de um Glauber Rocha). Mas o maior golpe à modernidade antropocêntrica está mesmo no "Fragmento sobre as máquinas", um libelo anti-humanista em que Marx vai teorizar sobre a fábrica como coletivo maquínico de humanos e não-humanos, e sobre a relevância em organizar-se na ação política a partir desses novos arranjos híbridos da revolução industrial, porque imensamente potentes e produtivos também para a revolução. No mesmo texto, Marx mostra uma tendência de generalização do maquínico pelo tecido social, quando a fábrica vira "fábrica social" e as forças produtivas imediatamente difusas pelo "General Intellect". Desses delírios febris há 150 anos, brotará a virada maquinocêntrica do marxismo, como em Gilles Deleuze e Felix Guattari (em "Anti-Édipo" e "Mil Platôs"), ou Antonio Negri (em "Marx além de Marx").

***

Hoje, Marx certamente não se diria marxista, mas não há motivo para nostalgia. Nem tempo para tornar-se paleomarxista atrás de algum elo perdido do marxismo original, como fazem alguns que preferem chamar-se "marxianos". Nunca quis ser puro sangue. Eu acho que é preciso sujar as mãos e falar marxismo, e disputar marxismo, e defender e atacar o marxismo. Marxismo de Marx, marxismo insubmisso, marxismo selvagem. 

Toda uma geração de jovens marxistas e que se reivindicam marxistas (ou comunistas) está aí para teorizar, organizar e lutar com Marx, lutar, teorizar e organizar junto com um marxismo que adere tranquilamente às seis críticas. Para ficar apenas com cupinchas da idade, eu poderia citar as teses de doutorado de Alexandre Mendes (com Negri e Foucault) ou Jean Tible (em contraste com os anarquistas, e com Davi Kopenawa), mas também a heterodoxia in progress com João Telésforo (experiência boliviana), Mayra Cotta (Pachukanis e Alexandra K.), Carolina Vestena(pós-colonialismos), Bruno Tarin (comunismo nas redes) e muitos outros.

Talvez Marx, que também era contra marxistas, hoje, brincasse que os críticos ao marxismo descrito acima, muitas vezes com ar superior, debochados, como se falassem de algo ultrapassado e vulgar; no fundo, esses críticos é que estão agora aderindo, e assim, insuspeitadamente, um século depois, renovam e reativam a sua força teórica, através das entrelinhas recalcadas de seus desvirtuadores.

Não há mundo comum: é preciso compô-lo

Não há mundo comum. Jamais houve. O pluralismo está conosco para sempre. Pluralismo de culturas, sim, das ideologias, das opiniões, dos sentimentos, das religiões, das paixões, mas também pluralismo das naturezas, das relações com os mundos vivos, materiais e também com os mundos espirituais. Nenhum acordo possível sobre o que compõe o mundo, sobre os seres que o habitam, que o habitaram, que devem habitá-lo. Os desacordos não são superficiais, passageiros, devidos a simples erros de pedagogia ou de comunicação, mas fundamentais. Eles ferem as culturas e as naturezas, as metafísicas práticas, vividas, vivas, ativas. Inútil, por consequência, dizer: “Nós talvez diferimos superficialmente por nossas opiniões, nossas ideias, nossas paixões, mas, no fundo, somos todos semelhantes, nossa natureza é a mesma e aceitamos colocar de lado tudo o que nos separa, e então iremos partilhar o mesmo mundo, habitar a mesma morada universal”. Não, se nós colocamos de lado o que nos separa, não há nada que nos resta para colocar em comum. O pluralismo fere muito profundamente. O universo é um pluriverso (James). A política, o que chamamos ordinariamente por esse nome, simplificou em demasia sua tarefa. Poderia haver pessoas que conhecem de antemão do que se compõe o mundo comum, e seria suficiente fazê-lo advir pela eliminação gradativa de tudo o que nos separa, de tudo o que nos coloca em desacordo. Seria suficiente colocar de lado as metafísicas particulares e entraríamos em acordo sobre certo número de princípios universais. Graças às vanguardas (de direita como de esquerda) entraríamos em acordo. Haveriam discussões, resistências, batalhas violentas, talvez, mas o sentido do progresso, a flecha do tempo, iria justo numa direção notável, caminharia direito: revelar sob os desacordos superficiais a irrupção progressiva, progressista, desse universal, desse mundo comum que está, no fundo, já aí, escondido, em cada um de nós. Saberíamos o que está no mundo e seria suficiente revelá-lo. 

A política seria uma ciência: uma ciência do mundo comum já presente, este que seria preciso apenas fazer advir lutando contra todos os desacordos superficiais daqueles que não compreendem que já estão profundamente em acordo. Em acordo pelas leis da economia; pelas leis da biologia; pelas leis da natureza; pelas leis da moral; pelas leis da religião revelada (esta e não outra); pelas leis da discussão racional; pelas leis da política – as leis, as duras leis da política. Mas, em todo caso, existiriam leis. Evidentemente, isso não é bem assim, uma vez que já há tantas leis, tantas ciências, tantos mundos comuns aí que há metafísicas caminhando ao lado do mundo. A política não é uma ciência, jamais poderá sê-lo, com qualquer nome que dermos a ela e a qualquer ciência que nos confessarmos. É uma arte, ou, ainda, artes, o que chamamos justamente as artes política. As artes pelas quais procuramos compor de modo progressivo o mundo comum. O mundo comum deve ser composto, tudo está aí. Ele já não está enterrado na natureza, em um universal, dissimulado sob os véus amassados das ideologias e das crenças as quais bastaria deixar de lado para que o acordo se faça. Ele deve ser feito, deve ser criado, deve ser instaurado. E, portanto, pode ser perdido. Aí está toda a diferença: se o mundo comum deve ser composto, podemos falhar na sua composição. A flecha do tempo avança, ou retrocede, ou se interrompe, de acordo com a maneira que o compomos. Nada de inevitável. Nada de inelutável. 

Nenhum sentido da história. E, ao mesmo tempo, sim, nós o compomos de maneira progressiva. Mas não é o mesmo progresso de antes, quando acreditávamos “na” ciência política. Sempre há “homens e mulheres de progresso”, progressistas e reacionários, mas, não obstante, isso depende do modo que conseguem ou não essa composição, a qual não tem mais nada de inevitável ou de inelutável. E, portanto, pode acontecer de nos enganarmos a todo instante quando marcamos com uma cruz aqueles que são do lado bom e aqueles que são do lado mau da história. Os lados têm uma furiosa tendência a variar, as partes a mudar de campo, sem falar das consequências inesperadas de nossas ações que multiplicam as hesitações sobre o sentido e o percurso da composição. As artes políticas devem hesitar, tatear, experimentar, retomar, sempre recomeçar, refrescar continuamente seu trabalho de composição. Cada objeto de preocupação, cada caso, cada coisa, cada “issue”, cada preocupação: será preciso recomeçar. Não há nada que possamos transportar tal e qual de uma situação a outra; a cada vez será preciso ajustar e não aplicar, descobrir e não deduzir, especificar e não normalizar, descrever – antes de tudo, descrever. São artes, justamente, artifícios, astúcias, competências, artesanatos, práticas – não ciências. [...] As artes políticas estão tão longe da ciência (política) quanto das artes. E ainda mais longe do que chamamos de arte pública, a criação de uma esfera pública: como se soubéssemos o que é o público! Como se o público não fosse um fantasma, um ser oculto, um ser eclipsado, capaz de aparecer, talvez, mas também de desaparecer, de se eclipsar – como hoje, quando o público parece ter desaparecido para sempre (Dewey). 

É por que o público deve ser composto, caso por caso, questão por questão, preocupação por preocupação, que não há de fato um público – assim como já não há um mundo aqui, que seria preciso revelar. O público pode desaparecer a todo instante se falhamos na sua composição. Nada de mais frágil do que o público (Lippmann). Fazer advir o espírito público é infinitamente mais difícil, mais raro e mais próprio a todos os tipos de manipulação do que virar a jogo: “Espírito, és tu?”. Silêncio para toda resposta – e não tomemos os ruídos de pedestais como sua mensagem criptografada. De que se compõe, hoje, o que chamamos comumente a política? De um repertório patético de imitações de imitações de imitações daquilo que um dia foram, há dezenas de anos, melhor, de séculos, grandes invenções, grandes instaurações de obras coletivas. Um repertório de paixões, de atitudes, de palavras históricas que se reduz sem cessar a cada gasto, cada vez mais inútil, que se torna menos legível em cada passagem, como uma fotocópia da fotocópia da fotocópia. Há um mundo, um pluriverso a ser composto e temos, para afrontá-lo, três ou quatro paixões, duas ou três reações, cinco ou seis sentimentos automáticos, algumas indignações, um pequeno número de reflexos condicionados, algumas atitudes bem intencionadas, um punhado de críticas já feitas. De um lado, uma multidão, de outro, quatro ou cinco conceitos. E gostaríamos de compor a primeira com os segundos! Sem busca e sem obra – sem obra, novamente, sem retomar tudo fresco, mais uma vez, pois não há nenhum outro meio de compor o mundo comum, sabemos bem, do que o recompondo, do que retomando desde o início o movimento de composição.    


Bruno Latour. Il n’y a pas de monde commun: il faut le composer. In.: Multitudes. N. 45. Special, été 2011. Disponível em: http://www.multitudes.net/il-n-y-a-pas-de-monde-commun-il/ (Tradução: Vinícius N. Honesko)

26 junho 2014

Inútil revoltar-se? - Michel Foucault

As revoltas pertencem à história. Mas, em certo sentido, escapam dela. O impulso graças ao qual um simples indivíduo, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: “Não mais obedecerei” e lança o risco de suas vidas na face de uma autoridade que considera injusta me parece algo irredutível. Uma vez que nenhuma autoridade é capaz de fazê-lo totalmente impossível: Varsóvia sempre terá seu gueto em revolta e seus esgotos cheios de rebeldes. E porque o homem que se rebela é finalmente inexplicável, produz-se, para o homem apto a, “realmente”, preferir o risco de morte à certeza de ter que obedecer, uma torção violenta que interrompe o fluxo da história e suas longas cadeias de razões.

Todas as formas de liberdade estabelecida ou demandada, todos os direitos que se defende, mesmo aqueles que dizem respeito às coisas aparentemente menos importantes, sem dúvida tem aqui um ponto de sustentação último, mais sólido e próximo da experiência que os “direitos naturais”. Se as sociedades persistem e vivem, isto é, se os poderes existentes não são “completamente absolutos”, é porque, para aquém de qualquer submissão ou coerção e para além das ameaças e das intimidações, existe a possibilidade daquele momento em que a vida não pode mais ser comprada, quando não há nada que as autoridades possam fazer e quando, enfrentando a forca e as metralhadoras, as pessoas se revoltam.

Ninguém tem o direito de dizer: “Revolte-se; a libertação final de todos os homens depende disso.” Não estou de acordo, contudo, com quem diz: “É inútil para você revoltar-se; sempre vai dar no mesmo.” Não se deve dar ordens àqueles que arriscam suas vidas diante de um poder. Revoltar-se é ou não um direito? Deixemos a questão em aberto. As pessoas se revoltam; isso é um fato. E é assim que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) é trazida para dentro da história, conferindo-lhe vida. Um condenado põe em perigo sua vida para protestar contra punições injustas; um louco não pode mais suportar ser confinado e humilhado; uma pessoa recusa o regime que a oprime. Isso não faz do primeiro inocente, não cura o segundo e não assegura à terceira o amanhã prometido. Ademais, ninguém é obrigado a ajudá-los. Ninguém é obrigado a declarar que essas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam a verdade. É suficiente que elas existam e que tenham contra si tudo que está determinado a silenciá-las até que haja um sentido em ouvi-las e em prestar atenção ao que querem dizer. Uma questão de ética? Talvez. Uma questão de realidade, sem dúvida. Todos os desencantos da história não alterarão a verdade: é por causa de tais vozes que o tempo dos seres humanos não tem a forma de uma evolução, mas sim, precisamente, de uma “história”.


Isso é inseparável de outro princípio: o poder que um homem exerce sobre outro é sempre perigoso. Não estou dizendo que o poder é, por natureza, mau; estou dizendo que o poder, com seus mecanismos, é infinito (o que não significa que ele é onipotente, muito pelo contrário). As regras para limitá-lo nunca são suficientemente severas; os princípios universais para desapossá-lo de todas as ocasiões de que apropria nunca serão suficientemente rigorosos. Contra o poder, deve-se, em um esforço incansável e interminável, definir leis invioláveis e direitos irrestritos.



24 junho 2014

Perguntaram-me seriamente sobre que autor brasileiro merece a Academia Brasileira de Letras. Respondi de prima: André Luiz, o espírito. André Luiz ditou para o médium Chico Xavier obras como Nosso Lar, Sol nas almas, Obreiros da vida eterna e Sexo e destino. Ninguém descreveu com mais precisão e rigor estilístico a vida no além túmulo. Considerando-se que a ABL é a casa dos imortais, a escolha de André Luiz é mais do que natural - já que o autor passou a escrever e virou imortal depois de morto. A se pensar, apenas, como fazer a cerimonia de posse de um espirito e a viabilidade de se colocar o fardão em um fantasma.


Luis Antonio Simas


Poética dos protestos entre nacional-popular e tropical-concreto

Por Everton Moraes, doutorando em história pela UFPR, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações
“A experiência da ocupação das ruas parece estar mais próxima do tropical-concreto do que do nacional-popular.”
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foto: Projeto HO
Toda uma série de discursos não cessa de falar da novidade indomável e da enorme dificuldade de explicar as manifestações que tomam de assalto as ruas do país desde junho de 2013. Não se sabe bem o que querem os manifestantes, já que as pautas são difusas e mutantes, ora reivindicando a redução da tarifa e a mudança da lógica da política de mobilidade urbana, ora com as “famílias” nas ruas gritando contra a corrupção, passando pela Copa do Mundo (com críticas que vão dos excessos nos gastos com os estádios até as desapropriações violentas realizadas em função das obras do evento); também não se sabe quem são os “verdadeiros” manifestantes, já que nem sempre parece fácil distinguir entre os violentos, os vândalos, os baderneiros e os “legítimos” cidadãos protestando “democraticamente”; nem se sabe, enfim, aonde pode levar a “crise de representação” que eles parecem escancarar e radicalizar.
Mas para além dessa leitura em que tudo é novo e ainda inenarrável, me proponho aqui a analisar como essas movimentações se relacionam com um certo passado, com certas memórias da resistência no Brasil. Penso sobretudo, em tradições de resistência que, apesar de possuírem origens remotas e difíceis de precisar, se consolidam e entram em uma disputa explícita por espaço na querela entre o “nacional-popular” e o “tropical-concreto”: de um lado, no caso da primeira, uma rigidez (às vezes quase militar), uma seriedade, uma confiança inabalável nos poderes da razão e da consciência, que acreditava que sua missão era levar a consciência da exploração e das possibilidades de transformação social para os “trabalhadores” explorados (estes desprovidos dessa consciência idealizada). Na qual era preciso falar a linguagem do “povo”, ser didático, dar-lhe a mão e ajudar-lhe a sair da condição de “subdesenvolvido” que o país lhe impunha. Essa esquerda talvez remonte aos Centros Populares de Cultura (CPCs), deixando marcas indeléveis em frações do Partido dos Trabalhadores e colocando o “desenvolvimento” como condição fundamental para a superação da desigualdade e a participação política comum.
De outro lado, no tropical-concreto (me refiro às experiências e trocas de neoconcretos e tropicalistas a partir do final da década de 1960 e não aos posteriores desdobramentos identitários e mercadológicos que reivindicaram uma herança associada ao nome ao “tropical”), nomes tão diferentes entre si quanto Caetano Veloso, Gilberto Gil, Hélio Oiticica, Haroldo de Campos, Torquato Neto e Waly Salomão, entre outros, apostavam em uma outra forma de resistir: alegre, festiva, não racionalista, não didática, que preferia antropofagizar o “povo” ao invés de “ensinar” lições; que se deixava afetar pelas potências “marginais”, essas que os adeptos do nacional-popular consideravam subdesenvolvidas e incapazes de transformar a história por si próprias.
Parangolés, suplementos culturais, festivais de música popular viravam o espaço de uma relação outra com o “público”, com a “realidade” do país, com a pobreza, com a alteridade etc. Apostar na alegria, na festa, na provocação, no desafio escandaloso mais do que no braço em riste, nos gritos de guerra, no embate armado contra o Estado. Mais do que buscar o “desenvolvimento” era preciso, segundo eles, criar as condições para o livre uso do comum, sem o qual qualquer desenvolvimento ficaria restrito a reiterar as forças dominantes. E era a partir dessa leitura micropolítica, ou antes, infrapolítica, que se buscava atuar frente a demandas macropolíticas como luta contra a ditadura ou a disputa entre “projetos” de Brasil.
Talvez seja interessante se perguntar como as manifestações que acontecem no Brasil, um pouco por toda a parte, desde junho de 2013, dialogam com essas duas memórias da resistência no Brasil. Como elas se relacionam com as potências nacional-populares ou as do tropical-concreto?
Não, certamente, para negar a novidade e a irredutibilidade das manifestações, mas porque talvez, a partir dessa pergunta, se possa pensar uma poética da resistência, ou antes, em termos de poéticas da resistência. Entendendo que estas são produzidas historicamente e orientam posturas e práticas adotadas durante os protestos. Penso que sua análise é fundamental não apenas para entender o que se passa com as manifestações, mas também para pensar o que estamos fazendo de nós mesmos enquanto “manifestantes” ou quais as implicações políticas e infrapolíticas do modo como nos relacionamos com as multidões que tomam de assalto as ruas do país.
A resistência nas manifestações se dá na própria prática do manifestar, isto é, na ocupação da rua, nas relações horizontais com outros manifestantes, na relação com a cidade, na invenção de novas táticas no calor do momento; mas também produz demandas frente ao Estado e suas instituições, como o Movimento Passe Livre (MPL) que, por exemplo, ao reivindicar a diminuição do preço do transporte urbano, tendo no horizonte a “tarifa zero”, vai do micropolítico ao macropolítico, lutando pelo direito comum de acessar a cidade como um instrumento fundamental para a participação política em sentido amplo. Assim, as manifestações seriam uma máquina de produzir corpos indóceis.
E ainda que os militantes do MPL demonstrem uma enorme habilidade de expor suas pautas, a consciência que está em jogo é muito mais a de se saber afetado e atravessado pelos diversos microfascismos que afetam o cotidiano de todos nós, muito mais do que uma consciência idealizada de um sujeito universal. Em suma, o manifestante é o “qualquer um” afetado pela gigantesca fábrica de miséria humana que é o capitalismo contemporâneo.
Apesar das tentativas de captura à direita e da crença de certas parcelas das esquerdas partidárias de que era fundamental estabelecer uma “liderança” e um processo de conscientização das “massas”, das leituras enviesadas e reducionistas da mídia ou mesmo da violenta repressão policial, as manifestações são um espaço de experimentação onde as mais contraditórias forças podem emergir; e é nessa experimentação que surgem as disputas entre forças estético-políticas.
Cabe então perguntar: que forças estão emergindo? Quais poéticas da resistência estão em jogo nessas manifestações?
O que, de alguma forma, emerge com as manifestações é a possibilidade de tecer uma outra relação entre as dimensões social, política, cultural e estética, isto é, realizar uma intervenção sem que haja a necessidade de líderes explicando didaticamente como devem agir os manifestantes, mas uma elevação destes a condição de agentes e não apenas objeto do discurso político de outrem. Nem mesmo do discurso das mídias oficiais, que apesar de produzirem narrativas que tentam capturar as múltiplas formas de resistência em linguagens previamente codificadas, perdem seu monopólio da “informação” com a emergência de uma miríade de filmagens e fotografias que produzem narrativas de resistência.
E ainda que as manifestações tragam signos ambíguos, paradoxais, a experiência da ocupação das ruas parece estar mais próxima do tropical-concreto do que do nacional-popular (apesar da presença de signos desta última estejam presentes), com toda a micropolítica simbolizada pela adoção da figura mitológico-política do “marginal”: aquele que, por estar à margem, tanto do “sistema” quanto do discurso das esquerdas tradicionais, opta por não seguir as regras vigentes no mundo social e político, ignorando a lógica da não-contradição, a prevalência da consciência, a racionalidade instrumental, o recurso obrigatório e prioritário as instituições tradicionais da luta política. As muitas “caras”, as demandas difusas, a ausência de um sujeito privilegiado, a não necessidade de uma consciência soberana e o imanentismo das manifestações são um exemplo disso.
Em suma, a transformação que esse personagem conceitual, o “marginal”, hoje transfigurado em uma multiplicidade de rostos, propicia, é o aparecimento de novas formas de resistir: o desejo concreto, não harmonioso dos oprimidos, ou mesmo seu dissenso, mais do que a bela consciência idealizada dos “engajados” no progresso da nação; a antropofagia que hibridiza estéticas distintas, mais do que a coerência e a linearidade do discurso desenvolvimentista das “esquerdas tradicionais”, que hoje se encarna o “governo”; a desrazão e o caos como forma de “desordenar” as formas de pensamento dominante. Como se os manifestantes estivessem tomados por um devir-marginal.
Mais do que desejar e lutar por uma nova sociedade, o marginal é aquele que sabota o funcionamento normal da sociedade atual. E esse caráter de “sabotagem” e de desorganização é fundamental para entender a poética das manifestações, isto é, entender que forma imprimem às suas práticas de protesto. Certamente não se trata mais daquela forma rígida, com uma ideia fixa de “desenvolvimento” econômico, que privilegiava um sujeito pseudo-popular como agente e apostava no combate a alienação através de uma racionalidade progressista. Ao contrário, a poética que parece estar em jogo é muito mais criativa, mutante, sabotadora, de-formante, muito mais do que formadora de identidade, capaz de fugir cada vez mais rápido de um Capital cada vez mais ágil em suas capturas.
Entender os manifestantes de hoje como reativadores das potências marginais de outros tempos não é reduzir o presente ao passado, ou hierarquizá-los de modo a exaurir a potência dos acontecimentos, mas abrir o presente à múltiplas possibilidades de releitura.
Por M. Foucault (via Eduardo Sterzi facebook)

Somos apenas indivíduos aqui, nãopessoas públicas ou relacionadas a governos, sem outro motivo parafalarmos, ou para falarmos juntos, que certa dificuldade compartilhada em tolerar o que está acontecendo.

[…]

Quem nos designou, então? Ninguém. E é precisamente isso que constitui nosso direito. Parece-me que necessitamos ter em mente três princípios que, acredito, guiam essa iniciativa e muitas outras que a precederam […].

1. Existe uma cidadania internacional que tem seus direitos e seus deveres e que obriga cada um de nós a falar sem hesitação contra todo abuso de poder, quem que sejam seus autores e suas vítimas. Afinal, somos todos membros da comunidade dos governados, obrigados, portanto, a mostrar mútua solidariedade.

2. Porque dizem estar preocupados com o bem-estar das sociedades, os governos se arrogam o direito dedesconsiderar como perdas e ganhos a infelicidade humana que suas decisões provocam ou que sua negligência permite. É um dever dessa cidadania internacional sempre apresentar o testemunho do sofrimento das pessoas aos olhos e ouvidos dos governos, sofrimentos a respeito dos quais é uma inverdade dizer que esses governos não são responsáveis. O sofrimento dos homens nunca deve ser um resíduo mudo da política. Ele fundamenta um direito absoluto a se pôr de pé e falar àqueles que detêm o poder.

3. Devemos recusar a divisão detrabalho que geralmente nos é proposta: os indivíduos podem ficar indignados e protestar; os governos refletirão e agirão. É verdade que os bons governos apreciam a santa indignação dos governados,desde que esta permaneça verbal. Penso que precisamos estar cônscios de que muito comumente são aqueles que governam que falam, são capazes tão somente de falar e não desejam nada além de falar. A experiência mostra que se pode e se deve rejeitar a função teórica da pura e simples indignação que é imposta a nós. A Anistia Internacional, a Terre des Hommes e os Médecins du monde são iniciativas que criaram este novo direito: o de qualquer indivíduo intervir efetivamente na esfera da política e da estratégia internacionais. A vontade dos indivíduos deve demarcar para si umlugar em uma realidade cujo monopólio os governos vêm tentandoconseguir – monopólio que precisamos arrancar deles pouco a poucoe dia a dia.

[A ocasião para esta exposição, publicada no Libération em junho de 1984, foi o anúncio em Genebra da criação de um Comitê Internacional contra Pirataria.]

[Sobre este artigo: traduzido a partir da tradução ao inglês de Robert Hurley et al. publicada no volume 3 de Essential Works of Michel Foucault (editado por James D. Faubion).]