22 fevereiro 2017

A Guerra dos Turbante

Mário Maestri

Já tivemos a “Guerra das Laranjas”, no período colonial, com diversos mortos e, século mais tarde, já em plena República, a “Guerra das Lagostas”, essa felizmente apenas folclórica. Vivemos agora, quando o mundo do trabalho conhece no Brasil ataque de intensidade inaudita, um novo e estranho confronto, a “batalha dos turbantes”, de conteúdo sobretudo ideológico e sentido não desprezível, já que expressa e alimenta a fragilidade do movimento social no Brasil. 

Em geral, os termos da declaração de guerra foram os seguintes. Eu sou negra, uso turbante. Tu é branca e necessariamente racista, mesmo quando não sabes. Portanto, tira a mão de meu turbante. Se não o fizeres, serás liquidada com a acusação de “apropriação cultural”, ou seja, adesão simbólica à exploração racial e econômica que teus ancestrais realizaram aos meus, no passado, e que sigo sendo objeto, por parte dos brancos, no presente. 
O que talvez mais impacta na presente “guerra dos turbantes” não é a verbalização de tal disparate, mas a repercussão que ele alcança nos meios da esquerda e progressistas aos quais é dirigido, meios vinculados e comprometidos com a luta anti-racista. Nesses segmento, alcança, não raro, ampla adesão, em geral acompanhada de não sempre verbalizada desconfiança para com o sentido real de tal proposta, que anatematiza com a acusação de racista a todos os que não o aceitam.
História e Memória 
Dizem que o Diabo sabe por que é velho, não por que é Diabo. Assisti no Rio de Janeiro, em inícios dos anos 1980, a chegada do talvez primeiro missionário negro estadunidense da Fundação Ford - rosto gentil do Departamento de Estado USA - oferecendo bolsas para estudar o escravismo e a África Negra naquele país. A proposta chamou-me a atenção pois, apenas chegado de sete anos de exílio, era então um dos poucos africanistas em um mercado universitário que desprezava aquela formação. O que me ensejou indiscutível espanto e compreensível apreensão foi o fato de que o formulário de candidatura exigia foto, já que o financiamento era, ainda que não explicitamente, exclusivo para candidatos negros. Se isso hoje pode parecer normal, naquele então causava ampla e geral surpresa e, até mesmo, indignação. 
Naqueles anos finais da ditadura militar, dominava o movimento negro que se organizava as tendência de esquerda revolucionária, com destaque para a Convergência Socialista, onde militara, havia até poucos meses. Na CS, conheci grandes companheiros e militantes negros, como o João, no Rio Grande do Sul, o Flavinho, o Hamilton e muitos outros, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Todos eles vinculavam estreitamente as lutas anti-racista e social, vistas como indissoluvelmente imbricadas. Impunha-se matar o dragão da maldade racista, que oprimia sobretudo os trabalhadores e populares negros, na luta contra suas modernas raízes de classe capitalistas. 
Eram anos em que, junto com os Panteras Negras estadunidenses, as direções negras gritavam: - Nada de cotas! - Nada de migalhas, para alguns poucos privilegiados. Escola de qualidade, pública e universal para todos os jovem negro. Mesmo que no início se obtivesse pouco, e não tudo, deveria ser para todos, sem privilégios e exceções. Naquele então, pouca atenção se dava às propostas inaceitáveis que chegavam diretamente dos Estado Unidos de consolidar a sociedade capitalista e a exploração, pondo na vitrine algumas caras negras. 
Por esses paradoxos da história, defendi desavisado, em reunião da regional rio-grandense da Convergência Socialista, a política das cotas, na primeira vez que a discutimos, em 1979, creio. Quase apanhei. O João, operário metalúrgico negro, muito respeitado, liquidou minha frágil defesa, explicando, com exemplos de seu cotidiano, a exigência de que a população negra mais explorada fosse contemplada e jamais esquecida, desde o primeiro momento. Apontou aquela proposta como própria dos segmentos médios negros colaboracionistas.

Luta Racial, Luta Social
A fusão da luta racial e social era antiga e tradicional política da esquerda comunista. Ainda que muito transitoriamente, nos anos 1930, comunistas brasileiros discutiram e enunciaram a proposta de um Estado negro independente na Bahia, certamente em tentativa de transplantação apressada para os Trópicos das repúblicas autônomas soviéticas. Em 1929, o primeiro operário candidato à presidência do Brasil foi um comunista negro, o marmorista Minervino de Oliveira, como lembra sempre o historiador Muniz Ferreira. José da Silva, comunista, foi o único “negro retinto” eleito à constituinte de 1945 e, como tal, destratado pela imprensa burguesa. Carlos Maringhella, dirigente tradicional do PCB, era filho de operário italiano e neto por parte de mãe de trabalhadores escravizados. Em geral, esse passado é desconhecido pelos militantes de esquerda, que assimilam, por ignorância, a acusação de “insensibilidade marxista” à questão racial. 
Em verdade, a própria consciência teórica da importância singular e, em alguns casos, da dominância do escravismo em nosso passado foi em grande parte obra de intelectuais e de militantes comunistas, marxistas e esquerdistas, de todos os sabores. Entre os mais destacados podemos citar Astrogildo Pereira; Duviano Ramos; Benjamin Perret; Clóvis Moura; Jorge Amado; Édison Carneiro; Décio Freitas, Emília Viotti da Costa. Alguns deles propuseram desde sempre as formas de resistência dos cativos contra a escravidão como formas fundamentais da luta de classes no Brasil. Ou seja, o âmago de nossa história seria, para eles, a saga da oposição inquebrantável do escravizado ao escravizador.
Em inícios de 1980, anos gloriosos, o movimento negro em organização e a luta contra o racismo sofriam a forte influência positiva das classes trabalhadoras em ofensiva e dos segmentos político-ideológicos que se reivindicavam do mundo do trabalho. Em 1979, vivemos verdadeiro “Ano Vermelho”, com vastíssimo renascimento das lutas sindicais do Brasil. Nos anos seguintes, fundavam-se o PT aguerrido e anti-capitalista e a CUT classista e combativa. Foi nessa conjuntura de ofensiva do movimento social que nasceu o Movimento Negro Unificado, sob o forte influxo positivo assinalado.
Maré Neo-Liberal
Tudo isso, porém, faz já parte da história. Em inícios dos anos 1980, em derrota epocal, que pesa até hoje sobre o mundo do trabalho e a sociedade mundial como um todo, a vitória da maré contra-revolucionária mundial fez retroceder as organizações, as lutas e a consciências das classes trabalhadoras e subalternizadas. Triunfaram e tripudiaram as visões pró-liberais, conservadoras, colaboracionistas, irracionalistas, anti-operárias, sociais-democratas. Eram os tempos do “fim da história”, em que refluiu nas ciências sociais o estudo resistência dos trabalhadores escravizados, das lutas dos operários, das mulheres populares, dos camponeses, etc.
No novo contexto, socialismo, revolução, solidariedade, fim da opressão e exploração, uma sociedade sem racismo e opressão, etc. transformaram-se em verdadeiras aberrações indecentes, naturalizando-se a opressão. O individualismo e o social-darwinismo transformaram-se em axiomas social. O sucesso pessoal passou a ser o norte fixo da bússola de legiões de políticos, ativista, sindicalistas. No PT e na CUT, triunfaram as propostas colaboracionistas que transformaram a militância política em caminho - direto ou torto - para o sucesso individual. 
No PT, pôs-se fim ao partido dos núcleos em prol do partido dos parlamentares, dos administradores, dos capas-petras. Em nome da ascensão social jamais realmente vista de segmentos populares, no seio e sob o império da sociedade de classes, regou-se com a abundância a a horta do grande capital industrial e sobretudo bancário. No frigir dos ovos, militantes e sindicalistas metamorfosearam-se em carreristas, intermediário e agenciadores do grande capital. Alguns terminaram fazendo milhões, apenas conferenciando! Apenas hoje temos a dimensão jamais imaginada de um processo de corrupção em geral já conhecido desde os primeiros momentos.
Negros de Sucesso
Acompanhando a debacle das idéias e lutas sociais, triunfaram igualmente no movimento negro organizado, dominado agora por seus segmentos médios, as propostas racialistas, pró-burguesas e antisocialistas, com seu corolário de integração à sociedade de classe e racial. Em forma sumária, propunha-se que o racismo não era expressão e reprodução da sociedade de classe. Não haveria exploradores e explorados. Havia apenas negros, explorados, e brancos, exploradores. Tout court! Esse movimento foi acompanhado de forte deslocamento da proposta de representação identitária. Abandonou-se como figura paradigmática e referencial o trabalhador feitorizado que, com seu trabalho e luta construíram a nação, sem gozar do produto de seu esforço, pelo negro de sucesso, mesmo se, no passado, se transformava em escravizador. No frigir dos ovos, trocava-se Zumbi por Pelé. E, muito logo, procedeu-se literal encobrimento da história da escravidão, como algo vergonhoso, procurando-se concatenação do passado do negro brasileiro diretamente com uma sociedade africana imaginada e idealizado. Nos últimos anos, os estudos sobre a escravidão desapareceram tendencialmente enquanto os sobre a África multiplicaram-se, em geral desconectados da experiencia escravista colonial.
Havia que criar, a todo custo, uma consciência, uma organização e uma representatividade racial destacadas e em oposição ao resto do movimento social. Agora, o que imperava era o “nós” e o “vocês”! Havia que parir, nem que fosse a forceps, consciência racialista anti-branco multitudinária por sobre as determinações de classe. Com ela, construiria-se a autoridade de direção negra que negociasse com o Estado, em nome do racismo e de suas sequelas, não a emancipação da população negra explorada, mas a promoção de indivíduos singulares. Não se tratava, jamais, de por fim à sociedade de classes branca, mas apenas de integrar alguns negros privilegiados a ela. Não se queria virar a mesa dos privilegiados, mas apenas alguns lugares no ajantarado dos bem servidos.
Um ministro, um general, um juiz, um burguês negro eram propostos como uma conquista histórica para o movimento, mesmo que nesse processo se consolidasse a exploração social e racial geral. Lutava-se para que, também no Brasil, tivéssemos os nossos Colin Power, as nosssas Oprah Winfrey e Condoleezza Rice e, sonho dos sonhos, algum dia, um Barak Obama! Tudo igual ao proposto pela cartilha dos segmentos negros integrados e pró-imperialistas sobretudo do Partido Democrata estadunidense.
Tudo pela Auto-Estima
As promoções isoladas e a conta-gota, enquanto a massa negra vegetava submergida na miséria material e espiritual, foram defendidas como imprescindíveis à promoção da “auto-estima” da população brasileira com afro-ascendência. Era como dezenas de milhares de operários negros, apinhados nos transportes coletivos, em direção do trabalho duro e enfadonho, gritassem de orgulho, ao verem um burguês afro-ascendência sentado no banco de trás de um mercedes! O PT satisfez parcialmente essa expectativa com, entre outras iniciativas, a nomeação de alguns ministros, com destaque para a indicação de Joaquim Barbosa ao Superior Tribunal Federal, devido apenas ao fato de ser indiscutivelmente negro. E deu no que deu! 
A reconversão pró-burguesa e anti-operária do movimento negro organizado foi toda ela comandada pelo imperialismo estadunidense. As ditas elites brasileiras não estavam, definitivamente, a altura de uma operação tão refinada. Em fins dos anos 1970, Abdias do Nascimento chegava ao Brasil de um pretendido auto-exílio, de dez anos, nos … USA! Em verdade, ele viajara aquele país a convite de universidade, ali permanecendo nos anos seguintes devido às oportunidades oferecidas. Jamais participara de organização de esquerda ou de oposição à ditadura militar. 
No passado distante, entre outras atividades políticas secundárias, Abdias aderira ao fascismo tupiniquim, tendo sido, inclusive, amigo de Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira. Apenas desceu do avião, ele começou a disparar contra a esquerda marxista, acusando-a de racista. Para a alegria dos ditadores de plantão. No seu retorno, foi acolhido e apadrinhado por Leonel Brizola, que, diga-se de passagem, mais branco não podia ser. O caudilho rio-grandense tudo fez para promovê-lo como parlamentar. Principal líder das propostas racialistas e socialmente assimilacionistas, Abdias morreu aos 94, militando no PDT.
Os Anos Dourados
O movimento negro organizado, sob o controle e influência dos segmentos médios, conheceu verdadeiros anos dourados, nos quais consolidou suas políticas racialsitas e social inegracionistas, quando o PT, já na presidência da República, abraçou plenamente as propostas de promoção étnica seletiva e restritiva como parte de sua demagogia social-liberal. De certo modo, o lulismo colhia o que o Brizola plantara! Sob o reino petista, as “cotas” e as “políticas compensatórias" transformaram-se na bandeira triunfante da promoção exemplar e seletiva , enquanto a imensa maioria dos jovens brasileiros, com destaque para os negros, era mantida na ignorância, na exploração, na pobreza, na alienação. Nos anos de reino petista, prosseguiu o massacre dos populares jovens, com destaque para os negros. 
O resultado dessas políticas foram pífios, a não ser para os contemplados. Em nosso país de 200 milhões de habitantes, apenas número escasso de médicos negros cotistas, quanto muito, foram formados, anualmente, como demonstração maior do conquistado. - Não é melhor isto do que nada? - respondiam as lideranças negras e petistas à pergunta sobre os milhões de jovens brasileiros de todas as cores marginalizados. Talvez a resposta tenha chegado nas asas dos aviões que derramaram sobre o Brasil borbotões de médicos negros cubanos, formados em um país de extrema pobreza de recursos, se comparado ao Brasil. Um pequeno país pobre que garante o ensino, não para alguns, mas para todos os jovens que desejem.
Resultados Pífios
Nesses quase quarenta anos envolvido em tais questões, três momentos paradigmáticos da hegemonia da política de racialização neo-liberal me golpearam fortemente. O primeiro foi o literal ostracismo político em que morreu Clóvis Moura, por parte do segmento dominante do movimento negro organizado, reconvertido ao neo-racialismo pró-burguês e pró-capitalista. Ele, que por primeiro iluminou, já nos anos 1950, a dominância da escravidão na antiga formação social brasileira, e realizou talvez a obra mais completa sobre a questão negra no Brasil, amargou com a dignidade que era sua o literal arquivamento a que sofreu. 
Uma vez perguntei-lhe: - Clóvis, meu velho, por que nunca te propuseram para a Fundação Palmares? - o que sabia ter sido sempre um seu desejo, ainda que jamais verbalizado. - Maestri, não confiariam em um velho militante comunista como eu - foi a resposta que recebi. E jamais confiaram, efetivamente. Destaque-se, a bem da verdade, que, até além de sua prematura morte, Clóvis Moura recebeu o agradecido reconhecimento solidário do MST, em geral, e de Pedro Stédile, em particular.
O segundo momento foi certamente a visita ao Brasil de Hillary Clinton, secretária de Estado dos USA, em dezembro de 2013. Ela proferiu badalada palestra-debate, na Faculdade Zumbi dos Palmares, universidade privada para negros, fortemente inspirada e apoiada pelos estadunidenses. Com a mediação de William Waack e Maria Beltrão, da indefectível Globo, Hillary pontificou sobre as maravilhas das políticas de “compensação” estadunidenses e de suas cópias caboclas. 
Os elogios e salamaleques à dama de mãos ensanguentadas foram incessantes e sequer um entre as dezenas de estudantes e lideranças negras presentes levantou uma palavra, um cartaz, uma faixa, em solidariedade às centenas de milhares de jovens negros enviados para a prisão, como forma de contenção social, sobretudo durante a administração Bill Clinton. Ou para pedir a liberdade de presos políticos negros nos USA, alguns encarcerados há décadas. 
O terceiro e último fato que muito me impactou foi o enorme silêncio, da imensa maioria das lideranças dominantes do movimento negro incrustado no PT ou fora dele, sobre a miserável ocupação militar do Haiti comandada pelo Brasil, às ordens do imperialismo estadunidense. Agressão inaugurada precisamente no segundo centenário da vitória gloriosa da insurreição haitiana, em 1804. Revolução negra que resultou no primero estado americano livre da escravidão! Até hoje, as tropas de ocupação brasileiras lá seguem, sem praticamente oposição nacional consistente a sua ação criminal. 
Um Balanço Geral
A política de racialização procurou sempre a divisão radical do movimento social. Para tal, mobilizou-se por uma divisão inverossímil da sociedade brasileira em dois campos. No primeiro, estariam os “brancos” exploradores. Seriam, todos eles, descendentes de escravistas, criados e amamentados por mães-pretas. Ou trabalhadores imigrantes europeus, chegados após o fim da escravidão, também privilegiados pelo racismo, em verdade, não se sabe como ou por quê. Uma descrição desrespeitosa de milhões de brasileiros não negros que viveram e vivem apenas de seu trabalho explorado.
Do outro lado se encontrariam os “negros”, todos eles explorados, e jamais exploradores, totalmente desterrados em sua própria terra, ou seja, o Brasil, pois incapazes de reconstituírem suas raízes africanas. “[…] seres sem um pertencimento definido, sem raízes facilmente traçáveis, que não são mais de lá [da África] e nunca conseguiram se firmar completamente por aqui [no Brasil].” Como se a existência social dependesse das raízes étnicas distantes e não da vida no aqui e agora da existência social.
Procura-se incessantemente divisão da sociedade brasileira em facções étnicas incomunicáveis, cada uma encastelada em suas tradições, como já assinalado. Uma proposta amalucada que fatia o Brasil artificialmente em descendentes de italianos, de alemães, de judeus, de portugueses, de africanos, de asiáticos e assim vai. Cada etnia com seus representantes raciais, negociando com o Estado e entre as diversas etnias as reivindicações de seus nacionais. Um projeto que nega de per si a possibilidade de uma nacionalidade comum, mesmo assentada no mundo do trabalho e não da exploração.
Teríamos, portanto, simplificando, uma cultura negro-africano e uma cultura branco-européia. A pizza seria dos italianos; o turbante, dos afro-descendentes. Se a apropriação da primeira não traria problemas, pois produzida por população “branca” que se pressupõe ter sido e ser racista, a segunda deve ser monopólio intocado, já que expressa simbolicamente a resistência anti-racista, exclusiva e necessariamente negra, contra todos os brancos. Tudo isso no reino das fantasias ideológicas. A pizza, nas suas raízes mais recentes, é bom lembrar, não é produção cultural italiana, mas das classes populares napolitanas, o que é muito, mas muito diferente. Assim como a proposta de uma cultura africana unitária é produto de uma síntese falsa nascida da manipulação ideológica ou da ignorância sobre a história e a realidade da África Negra. 
Unidade Cultura Contraditória
Esse proposto fatiamento social étnico, verdadeira abstração fantasiosa, talvez seja possível de ser imaginada, em forma forçada e manipulada, para algumas regiões dos USA ou da África do Sul. Ele é totalmente artificial entre nós. Sobretudo, no Brasil, fora imigrantes europeus e africanos muito recentes, a imensa maioria dos ditos “brancos” tem um pé na África e na “maloca”, assim como os mais insuspeitos “negros” possuem raízes étnicas européias e indígenas. 
Procurar encontrar as raízes e locais de proveniência dos ancestrais, para multidões de brasileiros, é se abrir em um leque vertiginoso de origens africanas, européias, americanas, asiáticas, etc., nenhuma delas possíveis de serem apreendidas fora de suas diversidades internas. Em apenas quatro gerações, cada um de nós possui nada menos do que quatorze ancestrais! Mas, em verdade, a verdadeira manipulação não se dá na construção de uma população brasileira imaginária de raízes raciais puras quando, em sua imensa maioria, são resultado de inúmeros cruzamentos étnicos. 
As propostas racialistas pró-burguesas e pró-capitalistas procuram sobretudo o encobrimento das verdadeiras raízes de nossa sociedade, operação empreendida por praticamente todos os ideólogos das classes dominantes brasileiras, do passado e do presente. As origens basilares da nossa nacionalidade não são européias, africanas, americanas. Esses e outros aportes culturais menores foram metabolizados e recriados por mais de três séculos de ordem escravista colonial, resultando desse processo sociedade nacional determinada pelas fortes contradições sociais despóticas da organização escravista e de suas sequelas. Entre elas, a cultura e a tradição racista anti-negro.
É sandice maior propor a separação do afro e do europeu na cultura brasileira. Nos fatos, é o mesmo que pretender separa o hidrogênio do oxigênio e ainda beber água. Da simbiose escravista, terrível em suas contradições, nasceu nossa forma de falar, de comer, de dançar, de amar, de socializar. Da escravidão dependeu a própria unidade nacional brasileira. Se temos Brasil, para o bem e para o mal, devemos a ela. A sociedade escravista foi a casa que nos coube, onde fomos infantados. O berço que conformou as raízes que temos que defrontar, para superar o que o passado teve e nos legou de terrível iniquidade, retomada pelo presente.
Por além das múltiplas ascendências étnicas que portamos todos nós, algumas dominantes, outras subordinadas, somos, todos os brasileiros, descendentes de trabalhadores escravizados ou de escravizadores, segundo nosso pertencimento atual ao mundo do trabalho ou do capital, objetiva ou subjetivamente. Nesse sentido, podemos dizer que é, efetivamente, a cor do turbante que todos nós portamos, em forma consciente e inconsciente, que define nossa alma social. 
Um Novo Período 
Entretanto, mesmo os poucos privilégios permitidos pelas políticas racialistas já fazem parte também de um passado em superação. O capital imperialista pôs fim às concessões sociais pontuais que acompanhavam as políticas liberais. Políticas que justificaram e alimentaram em boa parte a era petista. Com elas estão sendo enviadas para as calendas as propostas “compensatórias” e as promoções sociais exemplares. Ato inicial do governo Temer foi pôr fim ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Muito logo, o financiamento nas universidades privadas serão feitos a juros de mercado, entregando-se com o diploma ao formado dívida que jamais poderá pagar, como habitual nos USA. Já se iniciou, também, o desmonte das escolas universitárias públicas, em perspectiva de privatização das mesmas.
Aquelas iniciativas e concessões pontuais, criadas para favorecer a dominação pacífica do movimento social, através da cooptação dos seus segmentos superiores e direções, são desprezíveis para gestão do Estado e da sociedade que abre confronto direto com os núcleos centrais do mundo social e do trabalho. Uma política, na procura desenfreada de lucro crescente para o grande capital, despreocupada com o literal processo de canibalização da sociedade. Hoje já nos defrontamos com uma nova ordem que, ainda mais do que ontem, golpeia a todos, com destaque indiscutível para os setores mais frágeis, entre eles, as populações negras marginalizadas. A união dos oprimidos segue sendo, mais agora do que antes, o único caminho a ser trilhado. A divisão social é criminal.
"TROUBLANT TURBANTE
essa não é mais um palpite sobre a mais última treta do FB, aquela do turbante. Dessa vez vou ficar FORA, no êxodo.
Claro, um dos determinantes malucos dessa treta (e muitas outras) é o ex-governismo e seu uso e abuso de narrativas falsas. Essas narrativas multiplicaram situações como essas, onde não se procura apreender o conflito e sua dimensões paradoxal, mas a "solução". Não há solução e o politicamente correto apenas se desdobra, em dois turbantes igualmente legítimos.
O que interessa, é a organização do conflito como base de renovação democrática, para além da frustração das vitimas (que reivindicam o turbante para si apenas) e da falsa consciência daqueles e daquelas que querem pedir desculpa por serem "brancas ou brancos" e usarem um turbante (antes foi a polémica com o Rafucko)

Não interessa nem a boa consciência do lugar de fala nem a falsa consciência do não-lugar de fala, O que interessa é a luta, quanto isso contribui a organizar (ou não) a democracia.O resto é reprodução do cinismo ex-governista e de uma ex-querda extenuada.
Para isso, é interessante talvez ler esse trecho de um autor africano que passou muito tempo nas prisões africanas (da Nigéria). 
Um belo dia, o Wole Soyinka escreveu (tradução livre):

<>.
Numa entrevista, o mesmo Wole escreveu sobre negritude:
<>.

(não conheço a obra inteira do Wole, apenas li algumas entrevistas, então, apenas estou usando essas citações que me parecem me adequadas)"

Giusepe Cocoo

19 fevereiro 2017

Trabalhadores de todo o mundo, unam-se e sigam os Indígenas!

Com os últimos locais tecnicamente capazes de abrigar hidrelétricas, as últimas reservas de petróleo e gás e algumas grandes jazidas de minério localizadas em terras indígenas; ou estando estas terras localizadas entre as fontes de água, matérias-primas e combustíveis fósseis e as indústrias que as utilizam, tornando quase impossível que a construção de aquedutos, oleodutos, gasodutos e mineriodutos não se dê por dentro dessas terras; ou simplesmente a fronteira agrícola avançando sobre elas; surge uma enorme contradição. As corporações farão tudo que puderem, atropelando legislações ambientais (ou modificando-as através dos governos e parlamentos) e direitos humanos, para terem acesso a tais "recursos", o que implica simplesmente a conclusão do genocídio dos povos originários, a fim de abrir caminho para devastação final de suas terras. Os povos indígenas, cada vez mais, se virão obrigados a colocar os próprios corpos diante das máquinas e da força militar (e mesmo paramilitar) mobilizada pelo capital, na repetição recorrente do que se vê em Dakota, com os Sioux de Standing Rock, com os Guarani-Kaiowá enfrentando o agronegócio, os Munduruku e Belo Monte, os indígenas equatorianos e a exploração de petróleo em Yasuni. É o que se vê mesmo aqui no Ceará em que o mais irracional assalto à água pública, para que esta alimente termelétricas e siderúrgica, se dá por meio de uma gigantesca adutora que começa em terras Pitaguary, atravessa terras Tapeba e termina em terras Anacé. Na vanguarda não apenas pela luta por sua existência, mas numa luta em que representam toda a humanidade - e porque não dizer toda a biota - pela sobrevivência, os povos indígenas têm chances escassas de, sozinhos, saírem vitoriosos, pois lhes faltam número, recursos, ainda que atinjam um patamar de consciência, mobilização e organização ainda bem maiores do que hoje, no que inevtitavelmente será uma tentativa cada vez mais frequente de bloquear, interromper ou mesmo sabotar e destruir tais infraestruturas. Seu isolamento pode lhes significar a vitória da morte: água para as indústrias e não para as pessoas, avanço do desmatamento e ecocídio, com a destruição final da vida silvestre e a culminância da sexta extinção, acesso aos estoques de carbono que em sendo queimados nos lançarão inevitavelmente num cataclisma de caos climático e oceanos ácidos. Daí, a grande massa de bilhões, a classe trabalhadora mundial precisa definitivamente entrar em cena, mas com uma missão qualitativamente diferente daquela que dela se esperava no século XIX e no início do século XX. Não é mais possível pensar em simplesmente apropriar-se coletivamente desse imenso aparelho "produtivo" industrial erigido sob domínio do capital, na tentativa deste de subjugar o sistema Terra (ou a Mãe Terra, ou Gaia, ou Pachamama). É preciso desligar as caldeiras das térmicas, desligar altos-fornos, paralisar linhas de montagens de automóveis e fechar válvulas de refinarias, desmontar a indústria de armas e reorganizar por completo a base de fornecimento de energia e de produção de bens materiais, para uma sociedade com menor demanda energética, uso muito mais racional e equilibrado de água, rumo a um sistema produtivo de ciclo fechado, mimetizando a biosfera ao ser capaz de reaproveitar cada átomo já extraído do subsolo utilizando as fontes renováveis, com ênfase no aproveitamento da fonte primária, o sol. Isso implica em não apenas ter consciência de classe, mas consciência de espécie e consciência de biota. Isso implica em romper o acordo com o capital não apenas no que diz respeito a quem controla os meios de produção e quem se apropria da riqueza, mas no sentido mais profundo de questionar os próprios conceitos de produção e riqueza como estabelecidos pelo mundo do capital. Chegamos ao Antropoceno com o capitalismo "transformando o índio em pobre", como nos indica Viveiros de Castro. Sobrevivermos a ele e liquidarmos o capital implica em superar revolucionariamente essa negação do indígena, do vínculo com a terra e o território, da ligação com o mundo natural e material; essa alienação profunda em relação às fontes do que consumimos e ao destino do que rejeitamos; no limite, recuperar essas conexões é condição basilar para que não sucumbamos à barbárie, à fome, à ruína e em última instância à extinção."
Alexandre Araujo
 "Merece as homenagens. Mas, durante o regime militar, absteve-se – chegou a sustentar que não houve censura de livros durante o dito regime – isso em julho 1981, em um encontro de escritores, UBE e SESC, eu estava lá, ele levou uma bronca do Péricles Prade (então presidente da UBE, havia atuado no caso Herzog) por isso. Não participou da visita ao Armando Falcão da Lygia, Nélida, Antonio Torres e outros escritores para protestar contra a censura. Nem de mais nada. Não acho que isso o reduza ou deva ser cobrado. Tem o direito de tomar a posição que bem entender em cada circunstância. Já Roberto Freire era dirigente do PC, o Partidão, com militantes presos, torturados e até mortos. E daí? São as voltas que o planeta dá sobre si mesmo? Baudelaire e a defesa do direito de contradizer-se? Provavelmente. Se a reunião de 1981 fosse de adeptos do regime militar e não de opositores, então ele defenderia a redemocratização? Mas as manifestações sobre esse episódio da premiação, do Camões deveriam conter mais informação e menos demagogia. Tem gente que sabe muito bem do que estou falando e está omitindo, de ma fé. Estão inclusive enganando a garotada, o pessoal que chegou mais recentemente. Obliterar a história, esquecendo quem estava em qual lugar quando as coisas estiveram realmente feias, durante a vigência do golpe (daquele verdadeiro golpe) é péssimo, não se justifica de modo algum."