07 junho 2012


Como viver sem desconhecido diante de nós?

os homens de hoje em dia querem que o poema seja à imagem das suas vidas, com tão poucas considerações, tão pouco espaço, consumidas de intolerância.

Porque já não lhes é permitido agir supremamente, nessa preocupação fatal com a auto-destruição através dos seus semelhantes, porque a sua riqueza inerte os refreia e os amarra, os homens de hoje em dia, debilitado o instinto, perde, muito embora se conservem vivos, a própria poeira do seu nome nascido do chamamento do porvir e da angústia da retenção, o poema, elevando-se do seu poço de lama e de estrelas, testemunhará, quase silenciosamente, que nada havia nele que não existisse verdadeiramente noutro sítio, neste rebelde e solitário mundo de contradições.

René Char, Furor e mistério
"Já se disse que o silêncio era uma força; num sentido completamente diferente, ele é uma força, e terrível, à disposição daqueles que são amados. Uma força que aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto alguém a aproximar-se de um ser como o que dele o separa, e que barreira existe mais intransponível que o silêncio? Já se disse também que o silêncio era um suplício, e capaz de enlouquecer aquele que nas prisões a ele estava obrigado. Mas que suplício - maior que o de guardar silêncio - é o de sofrer o silêncio de quem se ama! Robert dizia de si para si: «Que estará ela a fazer para estar assim calada? Estará por certo a enganar-me com outros...» Dizia ainda: «Que fiz para ela estar assim calada? Provavelmente odeia-me, e para sempre.» E acusava-se a si mesmo. Assim, com efeito, o silêncio o punha louco de ciúme e de remorso. De resto, mais cruel que o das prisões, tal silêncio é ele mesmo uma prisão. Uma clausura imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, aquela fatia interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Haverá luz mais terrível que o silêncio, que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada uma delas entregando-se a alguma outra traição? Algumas vezes, numa brusca distensão, Robert acreditava que esse silêncio iria cessar daí a pouco, que a esperada carta iria chegar. Via-a a chegar, espiava cada ruído, a sua sede estava já saciada, murmurava: «A carta! A carta!» Depois de ter assim entrevisto um oásis imaginário de ternura tornava a dar consigo patinhando no deserto real do silêncio sem fim.
Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efetuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor. Forçava-se contudo a não lhe escrever (pensando acaso que o tormento era menos cruel de viver sem a amante que com ela em certas condições, ou que, depois da maneira como se haviam separado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que acreditava que ela sentia por ele, senão de amor, pelo menos de estima e respeito). “


Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido

04 fevereiro 2012

Morreu ontem a mãe da Barbie,a boneca adolescente.
À semelhança de Atena,


Barbie saiu armada dum cérebro, não divino, mas industrioso,
com a longa cabeleira e a azúlea mirada.
Morreu a mãe da Barbie, a filha
que nunca será órfã, pequeno duende
de sutiã 38 e de 33 polegadas
de altura. Trinta e três polegadas
multidesejantes de sonho
anatomicamente impossível.
Morreu a mãe da Barbie, que
faz balé, esqui, patins em linha e
todos os desportos radicais e tem
um namorado elegante que jamais
a trairá e amigos tão anatomicamente
imperfeitos como ela.
Morreu a mãe da Barbie, que vai
a todas as festas com muitos
vestidos de gala e emagreceu
há uns anos, qual Naomi Campbell, para
ser consumida pela boa
consciência racial do Ocidente.
Morreu a mãe da Barbie, que jamais
a viu, assim anatomicamente imutável,
padecer de uma gravidez adolescente.
A Barbie é sabida e deve ter tido educação sexual.
Que fará ela com o Ken
no regresso de tantas festas?
Nem paixão nem desgosto nem fome
ou uma boa sova dos adultos alteram
a sua fábula de plástico, muito menos
fabulosa do que a de Branca de Neve ou a
da Bela Adormecida, onde existiam
humanas bruxas, vencidas maldições
e príncipes que davam beijos para acordar.
Morreu a mãe da Barbie, cedo demais
para inventar uma Barbie de burka,
ou com explosivos escondidos no cinto.
No fim da vida continuava a vender milhões
de próteses mamárias, na seqüência da sua
própria mastectomia.
Coisas sem brilho,
impossíveis de acontecer à Barbie.
de Inês Lourenço