30 novembro 2016

AS LINHAS DA ESTRATÉGIA SÃO TORTAS - Silvio Pedrosa
"A dificuldade da atual conjuntura tem como nó górdio o seguinte impasse: o governo Dilma nos legou um resultado econômico de empobrecimento generalizado (em 2015 a renda média caiu 5,4%, segundo o IBGE) e esse resultado ficou identificado não só com as políticas de um governo de esquerda, mas com o conjunto da esquerda que se uniu na hora derradeira ao governo. Não bastasse isso, estabeleceu-se a conexão entre a corrupção generalizada que a Lava-Jato expôs e as dificuldades financeiras e econômicas do país.
Então, por mais que a esquerda agora se esforce para tornar apocalíptica a imagem da PEC 241/55, ela não é vistá assim, porque a formatação da imagem da situação do país não passa por esses circuitos de entendimento da crise. A população estabeleceu, de fato, uma conexão estrita entre a PEC como uma medida necessária de ajuste das contas públicas e o pacote anti-corrupção como seu complemento necessário. O fato de que o PT tenha encampado os protestos contra a PEC, após entregar a maior recessão da história da nossa economia, e também a auto-anistia do caixa 2, apenas ajudaram a reforçar a imagem de justeza desse diagnóstico.
E, pensemos por um minuto, ele não é justo? Um dos graves problemas da esquerda, hoje, é ter abandonado completamente formulações sobre a corrupção como modo de governo. Apenas se naturalizou a questão como se não pudesse ser de outra maneira, enquanto a direita traçou sua estratégia a partir da captura da justa indignação com o sistema político.
Da mesma forma, o petismo conseguiu, a partir da sua hegemonia sobre as esquerdas emplacar um dilema abstrato e formalista que não permite pensar a Lava-Jato de um ponto de vista estratégico, apenas recusá-lá por inteiro em nome de uma defesa do "estado de direito" que faz a esquerda defender os privilégios de elites políticas que são verdadeiras máfias, constituídas a partir das tramas do financiamento eleitoral.
O que sobra? Apenas uma esquerda idealista, cuja forma de apresentação dos problemas diante da sociedade sempre parece ser desenhá-los a partir de um ponto de vista moral -- que mesmo quando tenta traçar as redes de interesses que os sustentam, acaba reificando o problema como se ele não fosse essencialmente político, constituído a partir das relações de força. O próprio enquadramento da visão popular sobre a corrupção como estritamente moral é uma moral tomada pelo avesso quando não se pretende mobilizar esse sentimento a partir de uma estratégia política, apenas conservar as coisas como elas são.

A justeza da visão popular sobre a conjuntura é tal que um dos únicos meios de se barrar a PEC 241/55, bem como outras reformas de Temer, é traçar uma estratégia a partir da exposição das tramas materiais do sistema político que se inscrevem sobre a rubrica da corrupção. Mobilizar pela queda de Renan Calheiros, Jucá e Temer é o que pode atrasar a tramitação dessas reformas, dando tempo para que outro ajuste seja apresentado. Operar uma separação entre a agenda anti-austeridade e a agenda anti-corrupção demonstra que na raiz das nossas derrotas está um problema grave de compreensão das forças e subjetividades que estão em campo no momento. Austeridade e corrupção são dois mecanismos interligados de bloqueio da democracia. O povo, no seu pragmatismo de sobrevivência, parece ter entendido isso melhor que a esquerda no seu idealismo catastrofista."

29 novembro 2016

"Trump e quem mais vier:

O pior não é a sede de sangue, nem o racismo, nem a xenofobia, nem os preconceitos, nem o ódio ancestral do homem pelo homem, o pior são as ressalvas e as justificativas e os eufemismos - ou seja, aquilo que faz o homem civilizado. Os norte-americanos - e muita gente ao redor do mundo - estão exaustos de tanta civilização."


Marcelo Mirisola

"Torcem o nariz pro Trump como torceram o nariz pra Geisy Arruda. A "inteligência" não admite nada diferente de espelho e reflexo condicionado. Nessas horas dá uma vergonha danada de ter me transformado naquilo que os místicos e os humoristas do século passado chamavam de "intelectual".
Mas graças a Deus e, apesar de tudo, não me vejo refletido no espelho dessa gente nojenta. Pau no rabo de todos vocês jabutizeiros, flipeiros e afins. 
A superioridade numérica sempre esteve ao lado de vocês. Vocês é que são os imbecis profetizados por Nelson Rodrigues, mas agora estão perdidinhos. Vocês nunca vão entender Nelson Rodrigues. 
Quando Obama foi eleito vocês acreditaram que ele ia salvar o mundo. Não salvou porra nenhuma, o mundo tá bem pior. Da mesma forma Trump não vai acabar com a porra do mundo - infelizmente não. 
E´o grotesco, é o aventureiro, é o animador de auditório - podem torcer esses narizinhos de cadáver com mestrado e doutorado - é o mediano sim. 
É a Uninove no poder - é isso que vocês não toleram. Geisy, te amo."


Marcelo Mirisola

10 novembro 2016


"Trump é o candidato dos bilionários e das oligarquias, mas também é o candidato da classe média empobrecida, dos trabalhadores pauperizados e dos miseráveis sem futuro. Parece paradoxal, não é? Mas todo bom paradoxo é no fundo apenas uma oposição fetichizada. 
A globalização neoliberal empurrou grande parte dos americanos à pobreza, quando não à miséria completa. Tais pessoas não entendem a dinâmica da sociedade capitalista, elas apenas raciocinam pelas aparências. E, nas aparências, uma coisa é fato: seus empregos foram "exportados", ao mesmo tempo que crescia a disputa dos subempregos com milhões de imigrantes vindos sobretudo da América Latina. Daí, a conclusão simples: a culpa da miséria é da globalização e da imigração. É preciso combater isso. 
Trump sacou o momento histórico. Sacou o enfraquecimento do sistema político americano, a rejeição ao marketing falso, à política conciliatória (Zizek chamou isso de fim do "discurso politicamente correto"). E sacou mais ainda que poderia crescer muito pela direita explorando o discurso nacionalista (make America great again) e xenófobo (fora latinos, vamos construir um muro na fronteira). Mesmo sendo um representante nato da oligarquia, conseguiu se camuflar bem ao enfrentar o establishment republicano e se apresentar como outsider. Seu passado político nulo muito contribuiu para isso. Para terminar, enfrentou Hillary, uma figura que não apenas representava, mas também encarnava a globalização neoliberal, ou seja, encarnava todo o ódio de grande parte da população. 
Marx disse no 18 de Brumário que uma das razões da vitória do sobrinho de Napoleão foi justamente o apoio maciço de camponeses pobres que sentiam os efeitos nefastos da economia francesa mas, por sua condição precária de classe, não conseguiam se organizar corretamente e vocalizar suas demandas. A saída, então, foi apoiar Luís Bonaparte para que ele falasse em seu nome. Não estou querendo dizer que Trump é igual a Luís Bonaparte ou que ele irá instaurar um regime ditatorial, apenas tentando compreender analogicamente o movimento de classe. Pois, se há algo que o neoliberalismo fez nas últimas décadas foi precarizar e fragmentar a classe trabalhadora a um ponto tal que ela não consegue mais se organizar de forma razoável. Sobra então apelar a "salvadores" que agiriam e falariam em seu nome. A movimentação em apoio a Sanders também segue a mesma lógica, mas aí com um matiz de esquerda. 
Fato é: não só nos EUA, não só no Brasil, mas no mundo, o neoliberalismo globalizado, tal como alicerçado nas últimas décadas, está se decompondo, e seu regime político está entrando em ruínas. Algo novo está por vir, mas até lá ainda veremos muitas figuras grotescas emergindo e muitas certezas caindo."


David Emanuel 

08 novembro 2016

Se tomarmos daí o devir-jovem que pode se liberar do encontro com aS finitudeS, se tomarmos ainda a necessidade de multiplicar modoS de resistênciaS, e ainda essaS transversalidadeS entre os acontecimentos micro e macro políticos aposto que atravessaremos melhor, e sobretudo sem multiplicar os gestos micro-facistas - embutidos como riscos dos refazimentos e finitudes - os desafios insurgentes: "Qual será a forma de resistência? A forma de resistência , na minha opinião, é sair das concepções universalistas e eternas no que diz respeito às relações sociais, humanas, universos de valores. (...). A resistência, nesse momento, não é apenas de grupos sociais, é uma resistência das pessoas que reconstroem a sensibilidade através da poesia, da música, pessoas que reconstroem o mundo através de uma relação amorosa, através de outros sistemas urbanos, de outros sistemas pedagógicos" (Guattari fala para Uno, 1992, IN: Confrontações, n-1 Edições, 2016).

06 novembro 2016

"Isolamento e privação de sono, entre outras, eram duas das técnicas de tortura utilizadas pelo governo americano na sua guerra contra o terror. Elas são também duas entre as estratégias de desocupação autorizadas por um juiz do Distrito Federal, Alex Costa de Oliveira, eufemisticamente nomeadas como "técnicas de convencimento" pelo magistrado (http://bit.ly/2farkJk).
À medida que engrossa o tom de voz com os estudantes, já ameaçando o uso de força para garantir a desocupação das escolas (http://bit.ly/2dZqGRo), Richa, o que Governa para os Ricos, usa táticas semelhantes, mas sem mandado, para forçar ("convencer", ele dirá) a desocupação do Núcleo Regional de Educação (http://bit.ly/2f6N7no).
Nos últimos meses, especialmente depois de consolidado o processo de impeachment, parte da esquerda passou a usar, sem dó nem piedade, o conceito de “Estado de exceção” na tentativa de explicar o momento que vivemos. O sentido, me parece, é mais ou menos claro: tentar associar o governo de Temer, o Ilegítimo, ao processo de ruptura democrática e ao risco de uma nova ditadura.
Mas não me parece que a forma como o conceito é apresentado em Benjamin e Agamben autorize esse uso. No segundo, principalmente, a noção de Estado de Exceção, muitíssimo a grosso modo, se refere mais a um instrumento que denuncia a matriz comum, a solidariedade entre democracia e totalitarismo, entre o Estado de Direito e o Estado de Exceção.
Mais especificamente, Benjamin e Agamben nos alertam para o quanto os Estados democráticos se valem, justamente, do aparato legal e jurídico e das instituições democráticas para justificar e legitimar o recurso à exceção – que foi o que o governo Dilma fez, em outro contexto, com a instalação das UPPs nas favelas cariocas e na repressão ao “Não vai ter Copa” em 2014, por exemplo.
Nos Estados Unidos da "guerra ao terror", em Brasília e em Curitiba, o que há de comum é, justamente, o contexto de continuidade democrática: não há ruptura, dirão os defensores da democracia e da legalidade, entre outras coisas porque acabamos de sair de uma eleição em que milhões de brasileiros escolheram, democraticamente, seus prefeitos e vereadores.
Um dos problemas do uso equivocado, irresponsável ou os dois do conceito, é que ele nos impede de ver o fundamental: o Estado de exceção é a regra. E seu caráter mais insidioso reside, principalmente, no fato de que não é preciso nenhuma ruptura democrática para que ele funcione.
Antes pelo contrário: é à contiguidade entre a democracia e a exceção que precisamos estar atentos."
Clóvis gruner 

05 novembro 2016

"Isto é sobre a capa da última Carta Capital, mas é sobre mais coisas também.
'Little Britain' era um programa ruim, mas continha um personagem genial: Daffyd Thomas, "o único gay" de um vilarejo no interior de Gales. Genial não pelo conteúdo, mas porque sua estrutura formal era imediatamente familiar para alguém com anos de socialização e militância na dita "esquerda". Daffyd, cuja auto-identidade consiste em ser oprimido por ser o único gay de seu vilarejo, é sistematicamente incapaz de ver que há outros gays a seu redor. Para dize-lo em termos formais: temos aí um sujeito S para quem a definição do conceito X é de tal maneira restritiva que o único indivíduo que corresponde ao conceito X é o próprio S. Mas Daffyd vai além e expõe o mecanismo psicológico por trás disso: o motivo pelo qual S não consegue reconhecer ninguém a não ser ele mesmo como X é que sua definição de X foi decalcada de sua própria identidade, e esta identidade inclui "ser o único X".
Todo mundo reconhece imediatamente esta patologia. É a pequena seita revolucionária que considera apóstatas todos os que não seguem exatamente a sua linha sobre a situação dos barqueiros do Volga ou a coletivização na Albânia. Eram os governistas em 2013 (e ainda agora), sem entender que era possível ser crítico ao governo sem ser a favor da oposição. São aqueles que hoje, em nome da necessidade de superar a bipolarização, apenas invertem o binarismo e enxergam criptogovernismo em toda e qualquer mobilização que aconteça a seu redor. E é a esquerda institucional que, sem entender que é possível rejeita-la sem nem por isso abraçar a direita com convicção, prefere culpar os pobres pela derrota ao invés de perguntar-se no que precisa mudar.
É, em resumo, Narciso sempre achando feio tudo aquilo que não reflete seu rosto.
Há uma sequência de lições bastante profundas em Daffyd. A base de toda bipolarização não está no seu conteúdo concreto ("PT x PSDB", "eu x meu vilarejo"), mas no pensamento binário: a ideia de que ou se é X ou não-X, não se admitindo nem graus, nem mistos, nem outros (Y, Z...). A base do binarismo, por sua vez, está em possuir um conceito demasiadamente restritivo de X. E a base desta limitação, por último, está na auto-identificação: o conceito é restrito porque o modelo do conceito sou eu.
Já que gostamos tanto de recomendar às pessoas que leiam livros, lembro aqui uma lição que Machado de Assis nos deixou em "O Alienista": quando nossos conceitos se tornam de tal maneira exigentes que nada corresponde a eles, a não ser talvez nós mesmos, há duas possibilidades -- ou está errado o mundo, ou estão errados nossos conceitos. Se o mundo em sua totalidade está errado, então estamos, como já vejo alguns concluírem por aí, totalmente perdidos. Se o problema são nossos conceitos, contudo, é preciso suspende-los e recomeçar o trabalho de, a partir de uma massa de coisas que só podemos perceber de maneira aproximada ou indistinta, forjar noções mais precisas.
Esta não é, ao contrário do que pode parecer, uma tarefa individual. Nada ajuda mais na formação de conceitos do que abandonar a contemplação e engajar-se com outros e outras em um projeto comum. A boa notícia é que, neste exato momento, coisas para fazer não faltam."

Rodrigo Nunes 

03 novembro 2016

"Há tempos acompanho as discussões virtuais em espaços ativistas e tenho me deparado com um gesto que vem me incomodando muito no que tange à questão da identidade periférica: alguns/mas militantes, ao referir-se a casos e/ou pessoas que carregam elementos privilegiados em relação à classe social, evocam a magic card do “mas na perifa...” (e suas variantes “mas as mina periférica”, “mas na quebrada”, etc etc) para legitimar certo discurso ancorado, principalmente, no fetichismo da miséria - essa que a esquerda USP tanto adora reiterar em suas falas e panfletos, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, afirma que cotas raciais é uma ação pequeno-burguesa. Então fala-se em “periferia” (no singular mesmo) para evocar um espaço que comporta certa homogeneidade identitária para caber em certo tipo de discurso.
Nada mais perigoso do que pensar em universalidades e, aqui, mais perigoso ainda pensar numa periferia homogênea - ou numa identidade periférica homogênea. Pr’além do fato óbvio de que houve uma ampliação de acesso a bens e serviços por parte de uma população a quem isso é historicamente negada (esse mesmo fato que tornou possível narrativas como o “Que horas ela volta?”), as periferias são plurais e abarcam pluralidades, o que torna cada vez mais difícil defini-la - talvez fosse relativamente fácil há dez ou quinze anos atrás.
Eu sugiro que vocês se aventurem a ler alguma antologia literária RECENTE de autores/as periféricos/as, busquem suas produções e biografias e tentem traçar ali algum tipo de homogeneidade que abarque essa noção de periferia que a maioria de vocês tem introjetada no imaginário: escuridão, miséria, subalternização, etc. Principalmente porque a projeção da identidade periférica surge exatamente para mostrar que a(s) periferia(s) é(são) outra(s) coisa(s) pr’além do que limitadamente sonha a vanguarda do movimento estudantil.
Tenho consciência de que a discussão de identidades e homogeneidades é bem mais complexa do que essas poucas linhas traçadas em status de facebook: eu bem li a Spivak falar em essencialismo enquanto medida estratégica para conquista de direitos por parte de um certo contingente que a reivindica; mas também não deixo de alertar que esse gesto produz silenciamento que, por sua vez, invisibiliza resistências.
Existe miséria na periferia, mas também há articulação política: feministas, anarquistas, socialistas, LGBTs, movimento por creches, cursinhos populares, saraus, etc. Da mesma forma que existe sim conservador, machista, homofóbico, racista - inclusive gente que compra o discurso PSDBista. Afinal, se há pluralidades há também um campo de disputa ideológica em curso.

Jurema Werneck, feminista negra, afirma que “mulheres negras não existem”, complementando que esses sujeitos são constituintes de “demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento de condições adversas” impostas pela sociedade racializada. Da mesma forma - e dada as devidas proporções - sugiro também que periféricos (e [pior ainda] periféricAs) não existem, uma vez que se tratam de sujeitos identitários e políticos que surgem também a partir de novas demandas e, sobretudo, do embate com discursos que insistem em relegá-los à existência da miséria, do silêncio e ausência da construção de suas próprias subjetividades."


Bianca Gonçalves 
"Foucault fala que com o crescimento da população e a sofisticação do sistema capitalista o poder disciplinar deixa de dar conta de todas as transgressões, tornando difícil o controle da população. Entra em cena uma nova organização do poder, que mantém o status quo, mas fagocita discursos transgressores, normatiza e neutraliza. Uma vez que ele é parte do sistema, deixa de ser uma ameaça e passa a funcionar como ferramenta de manutenção do poder. Ao mesmo tempo se mantém espaços de disciplina. As escolas para disciplinar mentes e corpos, por exemplo. As prisões para excluir aqueles que não seguem a norma e que a lógica do poder considera que deva permanecer marginalizado, um lembrete para a população sobre o que acontece quando você se recusa a dançar conforme a música. E uma vez preso, você entra num ciclo de marginalização e exclusão difícil de quebrar. Seguindo essa lógica, seus direitos são sempre alienaveis, e você só os tem se estiver incluso dentro do sistema. 
Ele usa uma analogia de luz e sombra, o que tá fora do alcance do poder está na sombra, não pode ser visto nem controlado. É transgressor. Mas a estrutura se encarrega de impedir que qualquer coisa que esteja na sombra, também esteja desprovido de qualquer garantia de direitos. Buscamos então adentrar a luz, para ter direitos, mas, no momento que somos incluídos, também passamos a fazer parte do sistema. 
Susan Faludi fala sobre Backlash, mostrando com exemplos, a trajetória do movimento feminista (e um pouco dos Direitos Civis) a partir dos anos oitenta. Como as ideias foram ganhando espaço dentro da mídia, das instituições acadêmicas, no espaço público, para depois ser atacada paulatinamente até chegar num discurso de que o feminismo já não era mais necessário, e depois de que o feminismo era perigoso. Praticamente diziam: as mulheres já conquistaram seus direitos e continuam infelizes, o feminismo é o culpado, precisamos retomar a feminilidade tradicional. Uma geração cresceu ouvindo que a mulher moderna podia tudo e que feminismo era uma coisa de mulheres histéricas que só querem se fazer de vítimas e obter vantagens. Pra ela, uma onda de conquistas sociais sempre tem um contra ataque reacionário que busca primeiros neutralizar as lutas sociais e depois combatê-las. 
Agamben fala sobre o Homo Sacer. Diz que pra manter a ordem vigente depois do trauma do holocausto, foi necessário criar um dispositivo que garantisse o direito das pessoas à vida. Os direitos humanos garantia direitos inalienáveis a todos os seres humanos, então, para manter uma lógica de exclusão e marginalização indispensável para a manutenção do sistema, entra em cena o Homo Sacer, populações desumanizadas com base em discursos racistas, xenófobos, machistas, etc, ou simplesmente com base no discurso do medo e da necessidade da "segurança nacional". Esses discursos banalizam a violência contra essa população, as desumanizam e tornam as violações contra seus direitos socialmente aceitáveis. O famoso "direitos humanos para humanos direitos". Basicamente você categoriza quem é humano o suficiente para ter seus direitos garantidos.

Isso me faz pensar em quais são as reais possibilidades de mudança quando batalhamos para no inserir no sistema. Quais as garantias que temos mesmo depois de conquistar certos espaços. Que direitos temos hoje que são realmente inalienáveis. 
Entendo a necessidade de sobrevivência e de acesso à determinadas estruturas, mas esse acesso e essa sobrevivência são por si só, revolucionárias?
Mesmo considerando que estamos, historicamente, à margem da sociedade. Lutar para sermos incluídos e integrados nela é a melhor solução? Ou melhor, é uma solução possível? Porque eu acho que existe uma preocupação muito maior por parte do poder em "integrar" uma estética, uma linguagem, um discurso (e transformar isso em produtos que podem ser passivamente consumidos), do que pessoas. 
Quais são os limites dessa luta. Até onde podemos conquistar? E essas conquistas serão reais ou ferramentas de negociação para a manutenção do poder?"

Isabela Sena 

"Sobre por que o discurso do golpe e as culture wars entre coxinhas e petralhas foram sintomas do niilismo comunicativo que se seguiu à pacificação das jornadas de junho de 2013, reclamando num dos polos uma unidade de classe que no fundo era apenas uma unidade identitária afiançada pela elite universitária/cultural e grupos com interesses corporativos na manutenção do governo, e sobre como a crítica (em regra, a mera denúncia reativa) contra a ascensão evangélica embute uma visão ironicamente teológica na ideia de esquerda e de estado progressista, convido à leitura desta crítica que escrevi sobre o filme "Aquarius", link abaixo, que, me parece, antecipou a composição social do voto nas duas maiores metrópoles brasileiras, no Freixo e no Haddad, e traz alguns antídotos ao rol de lamúrias circulares e acusações inúteis ante a iniludível derrota. Como primeiras impressões diante da aparente confirmação do diagnóstico desse texto, eu diria que a insistência na "unidade das esquerdas", em "barrar a onda conservadora" e na "defesa do estado laico" tem soterrado a problematização fundamental dos termos "estado", "esquerdas" e "progresso" (para não falar de "unidade"), debaixo de uma massa interminável de denúncias em tom de escândalo, lacrações intrabolhas e um auto-comprazimento psicanalítico, que se desdobra num moto contínuo de textões e artigos de jornal que não dizem nada. Eu colocaria, além disso, que a miséria da esquerda pós-2013 não é simplesmente prática, mas teórica, e que antes de sair fazendo um mistificado "trabalho de base" (sempiterno refúgio cepecista que postula um Outro), o caso é refazer suas referências teóricas (a leitura de "Sobre a Questão Judaica", para começar), e abandonar de vez seus ídolos intelectuais e culturais, que não só erraram espetacularmente em tudo, como tudo indica continuarão errando por muito tempo. Sem reciclar a teoria e largar o entulho narrativo e simbólico, mover-se continuará uma tarefa quimérica."



1. Discurso do golpe. narrativa construída sob encomenda pelo governismo em final de feira, nas várias versões: golpe imperialista, pós-moderno, brando, neoliberal, judicial, midiático ou parlamentar, cuja última linha consistia em dizer que a presidente era honesta e que "impeachment sem crime de responsabilidade é golpe". O apelo à legalidade em meio a escândalos de ilegalidade do PT e a hipérbole conferiram-lhe um caráter irremediavelmente farsesco. 

2. Culture wars entre coxinhas e petralhas. Batalha de Stalingrado memética baseada numa contraposição artificial entre duas identidades, opondo o palhaço sério do esquerdismo cessante e o anticomunismo raivoso de uma direita simétrica, enquanto o grosso das mobilizações entre 2014 e 2016 foram indignados ante a crise econômica, política e urbana.

3. Jornadas de junho de 2013. Mais colossal protesto de classe da história do Brasil, articulado a um ciclo global de mobilizações, e concentrado em grandes metrópoles sob o efeito de pressões descomunais do urbano e da saturação do modelo político-econômico de desenvolvimento nacional. A referência "jornadas de junho" aponta para o levante proletário de 1848, primeira revolução moderna.

4. Niilismo comunicativo. Momento em que as narrativas passam a girar sobre um vazio, transpondo as relações de força a relações morais em termos de justiça ou injustiça, certo ou errado. O núcleo móvel do vazio então passa a distribuir as significações segundo uma lei da falta. Existem teorias neogramscianas que defendem a repolitização do significante vazio, porém, no Brasil, essa estratégia se reduz a apelos autorreferenciais de "saída à esquerda" ou "retorno ao PT" (amiúde esses dois apelos coincidem).

5. Unidade identitária. Unidade baseada na fixação de identidades em vez da diferenciação produzida pelas minorias. Discurso que prioriza o estático e o imóvel, em detrimento da mudança e do contágio. Pilar do discurso conservador, desde Edmund Burke.

6. Ascensão evangélica. Crescimento em quantidade e diversidade de denominações religiosas pentecostais, de modo articulado à expansão do capitalismo no Brasil nos anos 2000-2010 e da formação de uma nova composição de classe, dita "nova classe média", iniciada com o Plano Real e acelerada com o arranjo lulista.

7. Aquarius. Filme dirigido por Kleber Mendonça Filho em 2016, autor também de "O Som ao Redor" (2013).

8. Freixo. Marcelo Freixo. Candidato do PSOL à prefeitura do Rio em 2016, derrotado por Marcelo Crivella (PRB) por grande margem, no segundo turno.

9. Haddad. Fernando Haddad. Prefeito cessante (2012-16) e candidato do PT à prefeitura de São Paulo em 2016, derrotado por grande margem já em primeiro turno, por João Dória Jr. (PSDB).

10. Cepecismo. CPC da UNE: Centro Popular de Cultura. Corrente que preconizava a "subida do morro" pela classe média intelectualizada, no começo dos anos 60, para promover eventos culturais, pedagogia do oprimido, cinema engajado e teatro de arena.

11. "Sobre a questão judaica". Um dos primeiros textos políticos do jovem Marx, escrito quando ele tinha 25 anos, polemiza com os jovens hegelianos de esquerda e sua concepção de estado moderno laico, mostrando que há mais teologia em "estado" do que na questão de ser laico ou não. Promove a emancipação humana em relação ao estado em vez da emancipação cidadã por meio dele.

Bruno Cava