23 dezembro 2016

"A morte é uma coisa grande. É uma nova rede de relações com as ideias, os objetos, os costumes do morto. Ela é um novo arranjo do mundo. Nada mudou aparentemente, mas tudo mudou. As páginas do livro são as mesmas, mas não o sentido do livro. Precisamos, para sentir a morte, imaginar as horas em que temos necessidade do morto. Então, ele nos faz falta. Imaginar as horas em que ele precisaria de nós. Mas ele não precisa mais de nós. Imaginar a hora da visita amiga. E descobri-la oca. É preciso ver a vida em perspectiva."
Antoine de Saint-Exupéry, Piloto de guerra, 2015 [1941], p. 36.
"Existe sempre um algoritmo para prever um aspecto do comportamento humano: o possível coincide cada vez mais com o provável, e entender se algo é mais ou menos possível se tornou uma mera questão de potência de cálculo. O diretor da Uber, em resposta a uma pergunta sobre o aumento dos custos para o usuário, certa vez declarou à revista Wired o seguinte: 'Nós não fixamos os preços. É o mercado que fixa o preço. Nós temos os algoritmos para determinar o que é o mercado'."
Trecho de Emanuelle Braga, "Política do algoritmo", artigo da excelente edição recente da Piseagrama.

19 dezembro 2016

Entrevista com Marie-José Mondzain

Entrevista com Marie-José Mondzain
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P: A imagem se tornou, nos últimos anos, um dos temas teóricos em voga: dela não se fala apenas em termos de história da arte, mas também em termos sociológicos, de teoria das mídias e de filosofia política. Em uma das suas entrevistas precedentes, a senhora menciona que na época em que o tema da imagem não estava tão na moda era preferível falar de semiologia, do “campo de especialidade que se desenvolve entre a filosofia e a gestão dos signos sociais”, e que, durante o reinado da semiologia, a imagem era abordada em termos de leitura: “lia-se” as imagens. A senhora poderia indicar por que a semiologia da imagem finalmente perdeu seu crédito? O que supostamente a substitui, no nível do pensamento contemporâneo da imagem?
Marie-José Mondzain: O controle industrial e comercial das imagens está inteiramente centrado na ideia de que é preciso que elas sejam de todo co-extensíveis ao discurso que as habita – é assim que se vendem ideias, pessoas, coisas. A quantidade de produções visíveis não tem nada a ver com o excesso de imagem que designei como seu próprio, como sua propriedade. Minha relação com a semiologia e a linguística é de curiosidade, de interesse. Mas, ao mesmo tempo, sempre vejo que esses textos são – com frequência virtuosos do ponto de vista conceitual e que desenvolvem os instrumentos de uma microcirurgia dos objetos –, na maior parte dos casos, redigidos com um espírito de inteligibilidade ou de controle que não necessariamente revelam uma vontade de poder, mas que são, para mim, saberes acadêmicos. A imagem é tratada como um objeto, um objeto do saber que tem seus experts e é suscetível de especialidade.
Até um período relativamente recente – dado que a questão da imagem se tornou cada vez mais preponderante desde o início do século XX –, aqueles que escreviam sobre as imagens eram tanto os historiadores da arte quanto os industriais da imagem. Mas percebíamos que a filosofia aí não encontrava seu regime: deixamos a imagem se desenvolver sem colocar questões. Também estou muito interessada pelas leituras das imagens feitas por historiadores como Daniel Arasse ou Georges Didi-Huberman que, de fato, integraram aos seus modos de análise a dimensão propriamente filosófica. A leitura renovada de Aby Warburg permitiu uma espécie de oxigenação em relação ao aparato bem equipado dos semiólogos, dos estruturalistas, dos linguistas, que acabaram por asfixiar totalmente seu objeto ao reduzi-lo ao estado de coisa. Eu diria que, para certos analistas da imagem e da sua história, a redescoberta de Aby Warburg ou o retorno a Walter Benjamin são as aberturas libertadoras em relação à polissemia da imagem. Por polissemia quero dizer que a imagem é indecidível, jamais unívoca. Sua equivocidade, sua liberdade, seu excesso, nela se encontram como uma respiração. Saímos do laboratório instrumentalizado e do senhorio.
Mas por que também não estou na mesma posição que esses pensadores? De início, porque não sou historiadora da arte e não realizei o mesmo trajeto a partir da filosofia. Considerando que a imagem havia sido causa de guerras, de destruições e de crimes, que pessoas são mortas por sua causa e que outras tomaram o poder com ela, optei por olhar para onde estavam aqueles que as faziam, aqueles que as queriam, aqueles que as destruíam, aqueles que as defendiam, e àqueles para quem eram verdadeiramente uma aposta de vida e morte. Cheguei a um terreno onde estava, de fato, sozinha. Sou parte do que se passa com a imagem nos monoteísmos. Era preciso, então, traduzir os textos; passei muito tempo na leitura e tradução desse primeiro material.
É por isso que, para responder a sua questão – é preciso uma nova leitura da imagem pois a semiologia não vale mais nada? –, não estou nesse regime da questão. Coloquei a questão na sua genealogia: como a questão da imagem foi posta? Em que momento a imagem se tornou uma questão que provoca aqui a repulsão, a delação, a idolatria, a glorificação política, e em outra parte a perversão? Em que momento essa questão foi atrelada? Passei tempos em lugares um pouco solitários, uma vez que se tratava do mundo proto-cristão, bizantino, iconoclasta, e me encontrei na comunidade científica dos filósofos da antiguidade, para os quais a imagem não era um bom objeto, e dos historiadores da Idade Média oriental, para quem a imagem era apenas um problema teológico. Construir um objeto filosófico nessas condições não era simples. Mas penso, em parte, ter conseguido, isto é, ter convencido de que havia uma construção filosófica do objeto chamado imagem naquele momento. E é desse momento que é preciso partir. Eis aí a gênese.
P: Passemos às questões de conceitos para mencionar seu percurso teórico e especificar o vocabulário “imagem, ícone, ídolo”, constitutivo de sua obra. Nos seus livros Image, icône, économie e Le commerce des regards, a senhora emprega os conceitos “ícone” e “ídolo” para falar da imagem e de suas raízes religiosas. Ainda que esses dois termos sejam muito próximos, eles são de significações opostas: a senhora indica que ícone, imagem da paz, dá sua legitimidade ao ídolo, o qual funciona como um funil do olhar. Ao mesmo tempo, a senhora afirma que “A imagem é independente do regime da verdade”. A senhora poderia especificar a distinção que aí faz entre o ícone, o ídolo e a imagem em geral?
Em vez de dizer a imagem em geral, diria que “imagem” é um termo genérico, designa o gênero cujas espécies seriam o ícone e o ídolo. Mas isso também não é de todo verdade.
Voltemos, assim, às palavras. Uma vez que estamos conversando em língua francesa, somos obrigados a passar por tal língua para falar de coisas que foram pensadas primeiramente em hebraico, em grego e, então, em latim. Esses termos não se recobrem de todo: a palavra “imagem” não é a tradução do latim “imago”, esta que não é a tradução do grego “eikon”. Então vamos, aqui também, tomar as coisas de modo histórico, ir ao terreno histórico onde as coisas se colocaram e aconteceram, em situação de crise, onde a imagem se constituiu como questão ao mesmo tempo filosófica e política. É importante saber que as coisas primeiramente foram ditas em grego. Mesmo que, nas igrejas ortodoxas, chamemos eikon os objetos que vemos nas igrejas ortodoxas e que são chamados “ícones”, a palavra eikon, em grego, não é um substantivo. Quando Platão ou, mais tarde, os padres da Igreja falam de eikon, eles não designam uma coisa. Eles designaram um modo de aparição no campo do visível, pois o eikon, em grego, é análogo a uma forma verbal no particípio presente. Quando um grego quer dizer a coisa, a coisa icônica, ele toma a raiz dessa palavra, eikon, e a coloca no neutro, pois eikon é uma ramificação verbal no particípio presente ativo e no feminino. Quando ele a coloca no neutro – para as coisas, em grego, o neutro termina normalmente com “ma” – ela se torna “eikonisma”, como “apeikasma”, “fantasma”. Tomemos o exemplo do verbo “fazer” (pratto, prattein): se você utiliza a palavra “práxis”, é a ação, é uma palavra no feminino, como “eikon”; mas a coisa é “pragma”, que deu pragmático, e práxis deu “prático”. O grego distingue o estatuto da coisa da ação que a traz à existência: “poiésis” é o gesto de criar, “poiéma” é o poema. Ao contrário, as palavras no neutro também terminam com “on” – como “eidolon”, que fez “ídolo” – e designam, no visível, as operações das coisas, dos objetos, na sua consistência opaca e presente, no seu efeito de real. Ergon não é poièsis, nem todo fabricante é poeta.
Voltemos agora ao eikon, que foi traduzido por “ícone”. Da minha parte, prefiro traduzir por “semblante”, pois a tradução literal de eikon é “semblante”[1], no particípio presente, é a “coisa aparente”. O segundo sentido da palavra eikon é “semelhante”[2]: “semblante”, “aparência do outro”, portanto, “semelhante”, “quanto ao retorno da aparência[3]”. É muito importante compreender que o grego diferencia as operações do visível das operações do sensível e que, se o platonismo rejeitou as imagens, em grande parte – salvo em alguns casos, como no Timeu, em que a imagem serve à visão cosmológica do mundo – é porque a aparência coloca um problema ontológico à filosofia. Pois se uma coisa que parece não é, ela não tem um estatuto ontológico de verdade. Ela é inapreensível. Platão não confunde eikon e eidolon, e coloca o eikon ao lado daquilo que parece. E, de fato, para ele é ainda ontologicamente insuficiente. É insuficiente porque sobre aquilo que parece não se pode construir um saber. O que Platão vê aí é de todo justo e eu o defendo: não há saber sobre a imagem. Para Platão é sua fraqueza, para mim é sua força e seu destino político. Como analisei em meu livro Le commerce des regards, a filosofia platônica só reconhece dignidade àquilo que permite construir um saber e uma verdade, associando o ser das coisas à verdade do discurso sobre tal ser das coisas, o que faz com que, ontologicamente, a imagem não possa ter seu lugar na dignidade metafísica de uma verdade sobre o ser. Mas Platão diz, apesar de tudo, que essa aparência não é não-ser: é uma insuficiência. O fato de que a aparência não seja nem ser nem não-ser coloca o próprio Platão em dificuldade: ele diz que é verdade que a imagem não é – Ontos mè onta. É ontologicamente que ela não tem ser. Assim, ela participa, ela é ao mesmo tempo on e mè onta, ela está entre o ser e o não-ser. O fato de ser “entre” é o modo do eikon: é ser “entre”, entre o ser e o nada, é esse modo de aparição do mundo que coloca o olhar em crise, que faz com que nós vejamos nos inquietemos, duvidemos, suspeitemos. Ao mesmo tempo, talvez isso tenha a ver – pensa Aristóteles, mais do que Platão – com os regimes daquilo que os homens partilham na cidade, das coisas pouco certas, verossimilhanças, dos regimes opinativos da palavra, das ignorâncias sobre o amanhã, das contingências, das fragilidades: partilhamos muito mais fragilidades e dúvidas do que certezas em uma cidade. Platão gostaria que o rei fosse filósofo e que o matemático fosse filósofo e, portanto, que o matemático fosse o rei e o filósofo, ou seja, ele gostaria que tudo isso fabricasse um poder um pouco sólido; enquanto o interesse do pensamento aristotélico buscava compreender a política como um regime de fragilidade e de dúvida, de inconstância, de ignorância, pois a vida política é temporal e, assim, ligada à morte do passado e à ignorância do futuro, e o presente era feito, trabalhado, por essa desaparição das coisas e por essa ignorância do que vem. E a imagem esta aí, entre todas essas coisas que são partilhadas pelos cidadãos. Portanto, o eikon, esse regime de aparência, antes de ter sido um objeto, foi designado pela língua grega, com desconfiança ou esperança, como um regime singular da aparência e da verossimilhança, da doxa e do endoxon.
Quanto aos ídolos, sem dúvidas é preciso esperar uma reflexão mais aprofundada dos Padres da Igreja para lhes dar um estatuto no coração do pensamento da imagem. O ídolo é um objeto que mediatiza as relações entre os viventes e os mortos, entre os poderes ocultos e as impotências reais. Ele não é o antônimo do ícone, antes do debate doutrinal sobre a imagem. Por razões que enunciei em minhas obras – a saber, que há uma crise do olhar na produção das imagens entre instâncias do poder –, sou tocada pelo fato de que a imagem, nesse debate, é denunciada, criticada ou defendida de acordo com a questão: “o eikon e o eidolon são a mesma coisa ou são coisas diferentes?” Os iconoclastas dizem que todo eikon não se deixa conhecer como eidolon, portanto, há idolatria. A resposta dos iconófilos, triunfante – e que penso ser extremamente interessante –, é que o único meio de salvar o regime da imagem é dizer que entre eikon e eidolon há incompatibilidade, uma distinção definitiva; há mesmo uma contradição. Eikon designa uma relação, eidolon designa um objeto. E, portanto, os iconófilos puderam dizer aos iconoclastas: vocês é que, ao destruírem os ícones, são idólatras, uma vez que diante da fragilidade e aparência do ícone vocês veem apenas o objeto. Assim, vocês têm um olhar idólatra para aquilo que não deveria ser senão um objeto. É seu olhar que reifica o objeto da fragilidade, da aparência. Fazemos referência ao dois lados da questão sobre o ídolo. Mas se quisermos verdadeiramente responder a tais questões – “o que é um olhar que reifica?” e “o que é um olhar que respeita a fragilidade do ícone?” –, a cada vez, vamos encontrar apenas a palavra “imagem” por ser lida. Daí a reflexão sobre a “imagem”.
Ora, quando em francês dizemos “imagem”, há um desconforto – que encontramos também nas línguas anglo-saxônicas, as quais não nos auxiliam muito –, pois a grande reflexão de fundação é feita em grego e encontrou a sutileza de um desdobramento plural das palavras em latim. O francês exige muita explicação aí onde o grego, que a respeito disso também se explicou, encontra palavras para especificar os regimes: tanto articulados quando incompatíveis uns com os outros. Se pesquisarmos sobre o latim “imago” teremos mais nuances, sabendo que o interessante do latim imago é que é muito ligado às práticas funerárias e, portanto, sem dúvida ligado à experiência da morte, do desaparecimento e do que é retido daqueles que não estão mais aqui. Mas percebemos que a imago flutuou entre os latinos, tanto que, no latim medieval, palavras diferentes circularam e se esforçaram para dar conta da dimensão espiritual da imago. Santo Agostinho e os padres latinos, necessariamente, precisam se ocupar da imagem por razões teológicas evidentes, uma vez que a encarnação é uma estrita questão de visibilidade da imagem. Encontraremos reflexões muito sutis e apaixonantes a respeito de “signum”, de “species”, “figura”, “fictio”, “res picta”, a coisa pintada, “res ficta”, a coisa imaginada. Entre “imago” e “imagines” acontecerão também idas e vindas.
Assim, como dar conta dessas vibrações lexicais quando escrevemos em francês? E quem escreve em francês? Todo esse tempo que passei trabalhando entre noções gregas que faziam distinções de extrema sutileza, para, em seguida, falar de imagem a meus contemporâneos, era preciso retrabalhar os efeitos do próprio vocabulário. A maior parte do tempo fui obrigada a dizer: chamo “visibilidades” o modo no qual aparecem no campo do visível objetos que ainda esperam sua qualificação por um olhar. Irei chamar “imagem” o modo de aparição frágil de uma aparência que se constitui a olhares subjetivos, em uma subjetivação do olhar. A “imagem” é efetivamente, no meu léxico, o que constitui o sujeito. O eikon é o modo de aparição dos signos que permite a estes se constituir para permitir a partilha do simbólico. O “ídolo” é o modo sob o qual pode totalmente se afundar e se aniquilar a questão do desejo, quando o desejo de ver dá a si mesmo o objeto de sua completa satisfação, digamos, de seu gozo. E, assim, quando os antigos criticam o ídolo, é preciso não se esquecer jamais de que há essa suspeita, de todo legítima, em relação a objetos que se consomem e que consomem o sujeito. O ídolo é então aquilo que ameaça a subjetividade, uma vez que essa relação é de consumo passional, fusional e fantasmática. Nesse sentido, o desejo de destruição é inseparável do destino dos ídolos. Finalmente, quando coloco “imagens” no plural, designo o conjunto de produções do visível às quais ainda não dei qualificação, ainda não sabendo a quais operações do olhar elas vão dar lugar.
P: Várias vezes a senhora colocou em evidência o fato de que a imagem encontra seu lugar entre a visão e a representação, que ela necessita de uma construção, uma formação prévia do olhar de um sujeito falante (e que ela é, nesse sentido, inacessível aos olhares dos outros mamíferos, por exemplo). Trata-se, assim, no caso do olhar humano, de uma competência cultural. A senhora poderia especificar qual é a natureza da relação entre o sujeito e a imagem?
Nas nossas sociedades de hoje, encontramo-nos diante da designação massiva da palavra “imagem” a tudo o que é produzido no visível: fotos, obras de arte, publicidades, televisão, cinema, documentos. Todos são “imagens”. Sim, mas em que são eles imagens? Sob qual título? Pelo meu trabalho, gostaria de dar conta dos regimes de pensamento que foram fundadores em relação à definição da imagem: fundadores não quanto ao seu estatuto de objeto, mas quanto àquilo a que ela remete nas operações do olhar a ela dirigido por um sujeito. As coisas se esclarecem a partir do momento em que classificamos a imagem na relação que ela tem com o olhar do sujeito, com o cruzamento de olhares e com a troca, a circulação de signos, distinta do comércio das coisas, daquilo que chamo o comércio de olhares. É o olhar do sujeito que dá à imagem seu estatuto de “eikon”, de “eidolon”, de “fantasmata”, de “fantasma”; é a maneira de construir o olhar que reifica ou não seu objeto. Posso tomar os maiores lugares do olhar e da aparição frágil da história da arte e deles fazer objetos idolátricos. E é justo por isso que os artistas surrealistas, em particular, os dadaístas, lutaram contra a arte burguesa, necessariamente idólatra e que reifica a arte como mercadoria. Por meio dos objetos de arte, eles jogaram e atacaram os ídolos da cultura burguesa para mostrar que estes são operações do olhar que foram lentamente desqualificadas pelo comércio dos objetos. Eis as coisas que nos concernem de modo vital hoje.
Minha abordagem faz um apelo a cada um de nós, enquanto sujeitos, a nossa potência subjetiva de qualificação do visível; a neste reconhecer signos em um campo de signos que circulam; a dizer que o que chamamos de imagem pode ser, ou não, constituinte ou destituinte dos sujeitos que as olham.
É aí que as coisas se complicam na definição, pois é preciso explicar em que, antropologicamente, a imagem é constituinte da relação entre os sujeitos, e do próprio sujeito. A fim de dar conta da abordagem patrística e dos efeitos bastante modernos que ela poderia ter para nós, e do interesse que por ela poderíamos ter para nutrir nosso pensamento da imagem, o problema mencionado me obrigou a me dirigir à antropologia e à psicanálise. Ambas me fizeram ver como, genealogicamente – do ponto de vista filogenético (a constituição da humanidade) de um lado, ou ontogenético (a constituição do sujeito humano na sua individualidade e singularidade) do outro –, a questão da imagem era parte envolvida na gênese do sujeito. E assim compreendia que um sujeito que era privado de imagens, que não podia construir uma imagem de si, havia produzido na nossa sociedade, tão plena de imagens, uma verdadeira patologia da imagem. Isto é, que havia um sofrimento, uma patologia, um abuso do olhar, que fazia com que houvesse uma destituição da imagem, um abuso do narcisismo primário: como nos constituímos a nós mesmos na imagem que temos de si em relação a um outro sujeito, em relação ao olhar de um outro sujeito? A psicanálise, a psicopatologia, os textos sobre a psicose, muito me esclareceram sobre o fato de que a imagem era uma aposta constituinte para os sujeitos na sua relação matricial, na sua origem. Filogeneticamente, também, percebia que, no fundo, a própria humanidade assinalava-se como humanidade por inscrição dos signos que, antes de dar testemunho de uma linguagem ou mesmo de uma escritura, designavam o modus imaginis, o modo da imagem, como primeiro gesto de separação. Tornando-se a condição necessária ao acesso de cada um de nós às operações simbólicas da palavra, a imagem pode ser um separador, um operador de separação. Um bebê, por exemplo, que não tem nenhum meio de construir e apreender sua própria imagem – sinestésica e visual ao mesmo tempo – é uma criança que jamais terá acesso à palavra. E, assim, nos autismos, nas afasias, nas psicoses infantis, tratamos e retomamos as coisas pela questão da imagem: fazemos desenhar. Recomeçamos pela construção da imagem.
Se o sujeito se constrói, então compreendemos que o que os Padres designavam pela palavra eikon era algo constituinte das relações entre os sujeitos. Desse modo, o que é constituinte do político, isto é, do viver juntos, no sentido grego, assim o é porque é constituinte dos procedimentos, dos protocolos de subjetivação. Não há sujeito sem imagem. É muito importante. O ídolo torna-se, no seu processo de reificação, muito mais o modo pelo qual o visível não produz o sujeito, mas o reduz ao estado de objeto: o ídolo é o que reifica o sujeito, ao ser uma reificação da imagem.
É nesse sentido que digo que há uma verdadeira patologia da imagem, a qual faz com que aqueles que não têm imagem de si mesmos, senão por meio de objetos, sejam reduzidos ao estado de objeto e persuadidos de que é a apropriação e o consumo dos objetos que vão lhes permitir construir uma imagem de si mesmos. Do ponto de vista inicial do sofrimento social de hoje, pedir o reconhecimento de identidade peloo consumo dos objetos produz violências. Isto é, alguém que não tem nenhum meio de se fazer reconhecer em um campo social por um outro olhar, procura chamar a atenção desse olhar pelo consumo de objetos que lhe dão uma identidade em relação ao olhar do outro. Para ele serão precisos Nike, Lacoste etc.. O consumo das marcas torna-se um marcador identitário. De uma só vez, vamos nos tornar qualificados, identificados, pelos objetos que estamos à altura de consumir. Fazemos de nós mesmos objetos – e pensamos ser esse tornar-se objeto o único meio de obter o olhar do outro e um processo de reconhecimento, portanto, de dignidade. Estamos em uma história de loucos: as pessoas tornam-se criminosas porque não têm nenhuma imagem de si mesmas. Estão em uma tal desqualificação interna que vem como uma dor absoluta, que engendra uma violência absoluta, que dá vontade de matar, de morrer.
P: Com o objetivo de especificar o papel cultural do “eikon”, voltemos mais uma vez à terminologia. No seu livro Image, icône, économie, a senhora dirige sua atenção para o fato de que, nos contextos não cristãos (clássicos e pagãos), a palavra “oikonomia” designava tudo o que era gestão e administração, ao mesmo tempo dos bens (economia) e das visibilidades (ikonomia). A senhora assinala igualmente que o termo “economia” tornou-se, no momento da crise iconoclasta bizantina, o leitmotiv da defesa icônica. A senhora poderia elucidar as razões dessa retomada do termo “economia” no contexto cristão?
Para mim, foi uma descoberta saber que os Padres da Igreja tinham, depois de São Paulo, construído toda a doutrina do “eikon” sobre algo que eles opunham à “teologia”. A imagem é uma relação econômica, isto é, anti-teológica. A economia é a dimensão real, histórica, é a dimensão temporal do olhar. Ela designa essa negociação ininterrupta dos olhares entre o que está presente e o que está ausente. É dizer que só há vida dos signos numa relação com a ausência e em uma separação da presença. É magnífico que “a economia” tenha se tornado o conceito operatório dessa construção, pois isso toca a totalidade das trocas humanas e vai, efetivamente, do comércio e circulação de signos até o comércio das coisas e a circulação das mercadorias. A mesma palavra! A que isso se refere? À nossa responsabilidade ética e política no campo do visível. Cabe a nós escolher. Os objetos, nisso, não podem nada. Eles não fazem nada, eles não matam, eles esperam.
Ora, a palavra “economia” não é uma invenção dos cristãos, mas é retomada do grego clássico: foi muito utilizada por Xenofonte, por Aristóteles. Ela designa toda a gestão e administração doméstica e, em Aristóteles, é tomada nas suas relações com a administração da cidade. Como, para Aristóteles, o modelo familial permanece o modelo da economia política, passamos da gestão e administração do patrimônio pelo pai, à gestão e administração dos bens e serviços no campo social. E mesmo o “oikonomos” era já um intendente. É ele que está encarregado de gerir, administrar, regular, compatibilizar, velar, pelo equilíbrio na produção, na difusão, no gasto.
A palavra “economia” foi traduzida ao latim essencialmente por duas palavras: “dispositio” e “dispensatio”. “Dispositio” é como o grego “systema”; é o conceito de organização que está por trás e a partir do qual encontramos o sentido na “oikonomia”: a organização. O grande “oikonomos” na teologia é Deus, o grande organizador, o ordenador do mundo, o arquiteto cosmológico. É também por que a economia foi identificada tão rapidamente com a providência, com o “cosmos”, em grego, querendo dizer ao mesmo tempo a ordem, a beleza e o mundo. Estamos em um mundo onde só podemos admirar e anotar a inteligibilidade, a regularidade, a ordem e a beleza – “cosmos”. A origem desse “cosmos” é um “oikonomos”: uma entidade, um princípio de organização racional e estético sem falha. É por isso que “oikonomia” se tornou “pronoia”, providência.
Mas, a partir do momento em que essa providência, no mundo cristão, entregou-se ao exercício histórico admirável da economia, produzido pela imaginação cristã da encarnação, a providência e a ordem do mundo foram mudadas. Em todos os casos, eles se implementam sobre um outro regime do que o que conhecemos da teologia cosmológica: aquele da história dos homens como gasto de Deus (Dispensatio). Tal mudança é devida à encarnação, esta que consiste em duas coisas fundamentais. Um, a temporalização da divindade que nasce, vive e morre: a divindade se torna temporal e histórica; dois, a divindade, que não é visível, torna-se visível. Temporalização e visibilidade são as duas características da encarnação. A partir do momento em que é Deus que a quis, em que é a providência que organiza isso, será preciso integrar essa história, essa narração, à “oikonomia”, e dizer que esse fenômeno da encarnação faz parte do plano geral da divindade, que se torna um plano não simplesmente invisível, inteligível e cósmico, mas histórico e vivível.
Assim, “eikonomia” – cuja homofonia, em grego, com “oikonomia” assinalei, pois, para os grego, “oi” e “ei” são ambos pronunciados “i” –, o direito do ícone, a lei do ícone, é também a lei da casa, a nova habitação. Ele se fez Verbo, Ele se fez Pai e Ele veio habitar entre nós. Desse modo, essa lei da habitação, do “oikos” e do ícone, que são completamente homofônicos; e, penso, não apenas homofônicos: eles são sinônimos. Não podemos separar o registro icônico do registro histórico e do registro providencial, de gestão e de administração do mundo. Apenas – como compreenderam muito bem os latinos ao dizer que há não somente “dispositio”, reorganização, mas também “dispensatio”, gasto – essa economia é, ao mesmo tempo, em um regime computável, um investimento, com tudo o que isso representa de perdas e benefícios. E, numa boa economia, é preciso que o gasto seja um investimento que traga benefícios. Por consequência, a ressurreição é o modo pelo qual a perda será superada por um benefício incalculável, incomensurável, que é a Redenção. Há aí uma economia, um investimento e um gasto – pois não é pouca coisa enviar um filho, uma imagem, e entregá-lo à paixão e à morte: é um grande risco econômico assumido pela própria divindade. Mas tal risco é bem gerido, uma vez que isso dura até agora e que é um caso que não conheceu a bancarrota.
P: A aposta de seu livro Image, icône, économie era a de desvelar as fontes do imaginário contemporâneo na querela iconoclasta na época bizantina (725-843). Ainda que falemos com frequência em relação às “guerras das imagens” do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, em Nova York, poderíamos mencionar também a recente lide seguida à publicação das caricaturas de Maomé em um jornal dinamarquês. Para a senhora, podemos identificar a censura contemporânea à iconoclastia bizantina? Há diferenças entre essas duas estratégias de eliminação das imagens?
Todo poder tem suas imagens e recusa ao contra-poder ter sua visibilidade. Aqui estamos perto da problemática iconoclasta: quem toma o poder tem o monopólio da imagem e de sua significação. E, portanto, interrompe a busca icônica do outro, ou o censura.
Entretanto, a iconoclastia bizantina não era uma censura: era uma maneira de destruir uma instância de poder, recusando as imagens àqueles que delas se serviam para tomar o poder, justo por reconhecer que tal era o poder das imagens. Essa prática consistiu em suprimir imagens retirando uma categoria do poder que se queria eliminar, mas para substitui-lo por imagens do poder que se queria constituir. E aquele que as destruiu, ao mesmo tempo, compreendeu bem que as imagens tinham um poder, uma vez que atribuiu a si mesmo o poder de fazer suas próprias imagens. Os iconoclastas não são an-icônicos: eles são contra as imagens religiosas, as imagens no campo da Igreja, para desenvolver um imaginário profano, um imaginário do poder; há até mesmo uma arte iconoclasta. Assim, não se trata de uma eliminação das imagens, mas de uma eliminação do outro enquanto utiliza suas imagens para tomar o poder.
Ademais, em Bizâncio, a imagem não é um pretexto. Ao contrário, ela é a aposta do poder e a própria razão da crise: todos queriam tomar o poder com suas próprias imagens e suprimir as imagens do outro para tomar-lhe o poder. Isso quer dizer que a imagem é, nesse momento, reconhecida como portadora de um poder de convicção, de submissão e de representação do poder do qual se quer privar seu adversário.
Quando as caricaturas de Maomé são proibidas, isso não é feito por que se quer tomar o poder, suprimir um poder às imagens. É em um contexto de todo diverso, em uma outra paisagem política, que é a do terror ideológico. Muitos não foram enganados por esse história de censura das caricaturas de Maomé, dizendo que a produção e a denúncia das caricaturas eram uma operação de propaganda nos dois sentidos. A questão da imagem era aí extremamente secundária: nem mesmo eram caricaturas que faziam rir, com algum um interesse gráfico. Apenas se aproveitou de uma manchete visual por meio da caricatura para inflamar um conflito ideológico que é somente a máscara de um conflito de tipo econômico. O Islã e as convicções religiosas são hoje a aposta sob a qual se opõem potências econômicas no mercado do ópio, do petróleo, das armas. Ora, em vez de dizer que, neste momento, as pessoas morrem por causa do ópio, do petróleo e do mercado das armas, criou-se uma martiriologia terrificante, ao dizer que as pessoas se matam porque há um choque de culturas, uma incompatibilidade de culturas. Mesmo no momento das caricaturas de Maomé, dizia-se que o conflito advinha da fratura cultural entre os regimes de religiões. Ora, para mim, tudo isso era apenas simulacro, uma montagem teatral para esconder as apostas políticas do conflito.
Tomemos um outro exemplo, aquele dos Budas de Bamiyan: eles estavam ali há muitos séculos, em um país islâmico que, até aí, neles não viam inconvenientes. Para eles eram ídolos, o Deus dos outros, e isso não lhes concernia uma vez que não retirava atenção das sua própria divindade. Somente a partir do momento em que o outro se tornou inimigo eles notaram que aqueles Budas de Bamiyan faziam parte do patrimônio mundial da cultura, defendido pela Unesco, representante da cultura ocidental com a qual eles estão em guerra. Decidiram atacar o Ocidente, tocá-lo onde declara seus mais altos valores. A saber, não quiseram matar o budismo, mas atacar a ideia que o Ocidente faz da obra de arte e do patrimônio cultural. É também por isso que filmaram a cena da destruição. Eu recebi uma imagem em que o filme da destruição é objeto de um auto-de-fé: filma-se o auto-de-fé do filme para fazer um filme de auto-de-fé das imagens.
Estamos aí em uma espécie de circularidade das visibilidades – e o 11 de setembro de 2001 foi a fórmula exemplar do mesmo princípio – que é: uma vez que vocês são uma sociedade espetacular, nós também iremos fazer espetáculo e fazer de vocês os espectadores privilegiados da sua destruição… Eles sabem que Hollywood é inseparável dos modos narrativos escolhidos pelo Pentágono para construir suas narrações guerreiras e sua legitimidade. São os cenaristas de Hollywood que fornecem ao Pentágono os cenários para contar aos jovens soldados e convencê-los da grandeza heroica e legítima de seu sacrifício no Iraque. As pessoas gostam que para elas sejam contadas suas histórias. George Bush disse em um discurso: “People like stories”. Então a eles contamos histórias. E como os militares não sabem contar histórias, pedimos para que Hollywood escreva histórias que iremos contar aos militares. No mundo islâmico, em guerra econômica e financeira com os Estados Unidos, acontece de modo similar. Estamos em uma gestão espetacular: a organização econômica e industrial do espetáculo torna-se o sujeito de narrações que são lendas – no sentido em que fazemos lendas em torno de imagens, para torná-las compreensíveis – que precisam ser contadas para legitimar operações estritamente imperialistas, de um lado e do outro. O ícone de Bin Laden é inesgotável dos dois lados.
Assim como a imagem foi verdadeiramente uma grande aposta no momento da guerra iconoclasta, também a gestão industrial do espetáculo coloca-se como pano de fundo aos verdadeiros contextos do conflito. Mas também não é o contrário da iconoclastia, porque na questão da iconoclastia, a denúncia dos ídolos faz parte da problemática escondida do poder. Hoje assistimos a uma gestão industrial dos ídolos. Cada um quebra os ídolos do outro pois o próprio dos ídolos, de modo contrário às imagens, é que podemos quebrá-los. Os Padres já haviam compreendido muito bem que não podemos quebrar a imagem, pois a imagem não é um objeto. Quando vocês destroem um ícone, vocês não destroem a imagem. Vocês atacam a sacralidade, mas isso não pode atacar a imagem: vocês destroem o objeto. A imagem é indestrutível.
P: Em 2002 a senhora participou de um projeto de exposição Iconoclash, concebido e realizado pelo filósofo Bruno Latour e pelo artista Peter Weibel. A aposta teórica da exposição era chamar a atenção para a problemática da produção e destruição das imagens existentes nos três domínios culturais diferentes: a ciência, a arte e a religião. A senhora era membra do comitê científico desse projeto; como a senhora o julgaria em face do pensamento teórico da imagem nos nossos dias?
Essa exposição, para mim, foi um pouco um problema, pois a problemática que Bruno Latour queria apresentar provinha diretamente de meu trabalho sobre a economia icônica e a iconoclastia. Sem dúvidas foi por isso que ele me associou ao projeto: porque a maneira com a qual abordei a questão da iconoclastia havia sugerido que ele poderia abordar o conjunto da problemática da imagem em campos diferentes sob o signo da positividade da própria destruição e da reversibilidade das interpretações da violência no campo da criação. Isso permitiu a ele – com a cumplicidade amigável de muitos teóricos e artistas – fazer uma exposição de todo atual, isto é, na qual era possível ver formas críticas, formas de ironia, formas de destruição, no sentido crítico e sarcástico, dadaísta, surrealista ou científico. Mas em vez de ser um espaço onde colocar em crise a crença em todos os níveis, por fim, isso produziu uma exposição de arte contemporânea: a enésima exposição de arte contemporânea na qual experts em arte contemporânea arranjaram-se, bem ou mal, para impor um certo número de artistas como emblemáticos dessa positividade da destruição e dessa turbulência. Penso que, apesar da abundância das obras e dos textos, isso dissimulou mal uma fraqueza teórica e uma organização consensual sobre a questão da destruição: a exposição Iconoclash atraiu o mundo, queria fazer sorrir e ser ao mesmo tempo muito epicurista e agradável, pois o projeto dizia respeito a um grupo de pessoas talentosas e cúmplices, as quais tinham estabelecida uma colaboração de longa data. Nada de conflitual, não podendo dar à manifestação sua dimensão verdadeiramente política. Por certo é muito excitante para Bruno Latour, que é de uma grande inteligência filosófico-especulativa, dizer que se tornou o curador que preside eventos de cultura e de arte que cobrem, cada vez mais, todos os campos: a religião, a ciência, a arte. É um poder. Mas ele estava proibido de falar do Islam em Iconoclash. O assunto é demasiado delicado! Enquanto poderíamos, ao contrário, ter feito uma seção extremamente interessante – sem indignidade, por outro lado – para dizer que era agora ou nunca o momento de produzir um espaço de reflexão positiva sobre a interdição e a destruição. Mas os responsáveis tinham medo de que os terroristas chegassem a Karlsruhe! Isso não desqualifica o que foi mostrado, mas devo dizer que a ambição da empresa revela um desejo de cobrir uma totalidade. Hoje as exposições são eventos no mercado da comunicação cultural. As ideias circulam, os objetos deixam-se reconhecer, mas não é certo que o pensamento tenha tido tempo de se renovar verdadeiramente. Em muitos casos, a publicação programática de um conceito não contribui ao avanço do pensamento. Entretanto, estamos contentes por ter visto objetos admiráveis que jamais teríamos podido ver de outro modo, pois se encontram do outro lado do mundo ou são desconhecidos da maior parte das pessoas… E mesmo se o objeto parece incongruente nesse lugar, e se o curador da exposição decidiu fazer dela algo completamente diferente, podemos nos contentar por tê-la visto.
O historiador pode fazer várias ligações, pode se tornar expert das articulações entre as imagens: por exemplo, entre os magníficos quadros do século XV que estavam em Iconoclash. Não tenho nada contra, mas, torná-los solidários a um sistema é esquecer que eles excedem tal sistema. E quando eles são co-extensivos ao sistema, eles não são mais operantes. É por isso que as exposições temáticas são tomadas por um paradoxo interno: serem obrigadas a justificar a co-extensividade do conceito aos objetos que são apresentados e, se os objetos forem muito bem escolhidos, eles excedem em muito o projeto. Assim, eles fazem aparecer o caráter inoperante.
O que acho mais interessante, como modo de reunião dos objetos, é a exposição das coleções de alto nível. Somos convidados a seguir um olhar colecionador que pôde, durante uma vida, comprar coisas: tentamos entrar na história de um olhar, apreender o fio de uma sensibilidade com suas aberturas, seus riscos, seus transbordamentos. Vi a exposição da doação Daniel Cordier, em Toulouse, onde está tudo o que ele acumulou durante sua vida: pode ter aí um tronco de árvore, um objeto das Novas Hébridas, um talismã, um objeto da vida quotidiana, um quadro de Matta, desenhos de Henri Michaux. História de um olhar que se exerce em toda uma vida. Há obras de arte no meio de tudo aquilo que uma vida pôde recolher de bonito, de surpreendente, de improvável ou de inquietante.
P: Finalmente, eu me permitiria colocar-lhe uma última questão concernente à fotografia. No seu livro Image, icône, économie a senhora fala da fotografia a fim de colocá-la em paralelo com a imagem aquiropita (a imagem que não é feita pela mão do homem). A senhora assinala que, uma vez que todo gesto fotográfico coloca a questão da impressão, a invenção da fotografia foi acolhida como confirmação da possibilidade de produzir a imagem aquiropita pelo artefato e de fabricar as impressões fetiches, tais como o Santo Sudário e o Véu de Verônica. A senhora poderia indicar qual a natureza da relação entre essas imagens supostamente “verdadeiras” e a demanda de veracidade da fotografia documental?
A questão da impressão é muito ligada ao fato de que o texto ao qual você faz alusão é consagrado à construção do Santo Sudário de Turim. Portanto, a uma fotografia de tipo impressa e na qual se joga com a impressão fotográfica e a impressão de um corpo real. Dizendo que a fotografia, que já é uma impressão, tinha fotografado uma impressão que, ela mesma, era o negativo de uma fotografia. É, verdadeiramente, a fotografia sobreposta, em uma perspectiva indicial da fotografia. Hoje, a maior parte da produção fotográfica é digital, portanto, não mais indicial. Ela é por pixels, segundo um sistema binário, e permite todas as manipulações.
No que diz respeito à veracidade da fotografia, ainda na época em que era indicial, era já uma arte do falso, no sentido do simulacro habitado pela crença do espectador. As imagens não têm realidade ontológica. Eu disse há pouco, mesmo antes de falarmos sobre fotografia: o estatuto do eikon é uma aparência. Assim, o fato de que a fotografia possa ser uma punção em um estado do mundo não dá a prova desse estado do mundo por causa da fotografia.
Para compreender melhor, remeto a um filme de Jean Eustache que se chama Les photos d’Alix. Esse filme, absolutamente genial, consiste em mostrar uma jovem fotógrafa que mostra a um jovem, filho de Jean Eustache, fotos que ela tirou. Ela diz o que há, a data, a hora, o lugar, a estação, os nomes, quem são as pessoas que vemos na foto. Há, portanto, uma relação com o real: compreendemos que ela tirou essas fotografias em Londres, há três meses, de noite etc.. Mas quando vemos a foto, não vemos nada correspondente àquilo que ela diz. No início, há uma correspondência um pouco vaga, mas a credibilidade cresce. Em seguida, progressivamente, no correr dos 18 minutos e 18 fotos, estamos no fim do filme e vemos um quarto, uma escrivaninha diante de uma janela, o que há sobre a escrivaninha, uma lâmpada, um espelho. Ela diz: “ah, esta foto eu tirei há três meses em Fez, é um pôr-do-sol em Fez”. “Podemos reconhecer Fez”, dirá ela, e vemos a escrivaninha e a janela etc..
Esse filme mostra bem que a foto remete a estados do mundo. Em um momento, ela diz “eis uma foto”: vemos que tal foto é tirada dentro de um carro, o condutor é então tomado pelas costas, há o retrovisor e, no retrovisor, vemos longe ao fundo. “Esta é uma lembrança da infância, é a foto de meu pai, enfim, de meu padrasto, tal como eu sempre o vi; viajávamos juntos, era os Estados Unidos, entre São Francisco e não sei mais onde, enfim, era os Estados Unidos; eu estava atrás, via suas duas grandes mãos no volante e só via, de seu rosto, aquilo que se mostrava no retrovisor. É uma lembrança da infância.” E ela diz: “É uma lembrança da infância mas não como as crianças delas se lembram, e é por isso que esta foto é uma lembrança. Enfim, é a foto que fiz recentemente, de uma lembrança que tive.” Pouco a pouco percebemos que estamos vendo uma foto de infância, mas não como são as fotos de infância: ela fotografou há um mês uma lembrança da infância. Não vemos nem seu pai nem os Estados Unidos: a foto está na provocação da palavra à cegueira que exige a composição do olhar. O objeto que vemos flutua entre eles como um espectro de um mundo que não existe mais, de sua infância, de um pai que não está mais aí, de um país: não vemos por que, sobre essa foto, ela tem necessidade de dizer que foi há anos, nos Estados Unidos, uma vez que fora há um mês, na memória dessa viagem que fez com seu pai. Esse filme é uma obra-prima sobre a desrealização do olhar em face da imagem.
Aliás, o que ela diz, tecnicamente, sobre os objetos é verdade. Por exemplo, em certo momento, vemos uma foto como duas botas, como as de Van Gogh. Antes que as vejamos, vemos a fotógrafa dizer “bem, é uma foto que tirei em Londres, em um pub, gosto muito dos pubs”, e, de pronto, vemos a foto que mostra, ao lado das botas, um vazio. Ela diz: “eu estava em pé, com esses dois homens; com este – ela mostra um sapato –, com este eu perdi contato, o outro é ainda um amigo, gosto muito da atmosfera dos pubs”. Ela conta uma história. E então, repentinamente, diz: “o que me importava nessa foto era, efetivamente, trabalhar com a falta de foco na parte de baixo – que está desfocada – e com essa luz branca – de fato, tudo está branco – que descia desde o canto – e também aí, realmente, há uma luz branca –, é uma lembrança da Inglaterra”. Sem parar, estamos entre o que vemos e o que ela diz mas não vemos: a referência ao quadro de Van Gogh e o que ela mostra ao jovem, o que ela faz entender ao mostrar-lhe. Essa mudança do que damos a ver, do que damos a entender, do que fazemos crer, é o regime da fotografia, compreendido neste o da fotografia documental.
O que dizemos, o que escrevemos, o que contamos, de modo intrínseco faz parte daquilo que fazemos ver. Se mostramos a foto sem dizer nada, sem palavra, como um material bruto, nós a damos à visão de um outro sem construir uma relação entre o ver e o fazer ver por meio da palavra e da partilha da crença. A foto não prova o real, mas ela sempre coloca em jogo, como toda imagem, a relação de confiança e de crença que um olhar tem em relação a um outro olhar.
No meu trabalho sobre o fotojornalismo, dou uma grande importância ao que é dito do país e do momento em que uma foto foi tirada, àquilo que me dão a ver, à razão pela qual tal foto fora tirada, e ao que ela pode significar para quem a tirou. Em muitos casos, penso ser a foto inútil, desinteressante ou excessiva, pois não se dirige mais a mim como alguém que partilharia a possibilidade de construir, ao mesmo tempo, o que ela quer dizer. Ainda que tenha necessidade de um efeito real, a imagem o excede, e é sobre tal excesso que se constrói a liberdade do outro, a quem nos endereçamos. Mas se essa liberdade é deixada, é preciso ver sobre qual base de partilha: há aí um caminho dos regimes de crença diferentes que podem ir da credulidade à confiança, e da confiança a uma necessidade de liberdade.
Acabo de escrever um texto em que homenageio Sophie Ristelhueber, pois penso que em seu trabalho sobre o Iraque e a Palestina – no qual não vemos nem a guerra, nem o guerreiros, nem as vítimas – ela não mostra cenas, nem teatraliza o conflito. Pelo contrário, é o que ela não mostra que faz ver e, portanto, compreender. Ela se considera totalmente oposta às fotos do fotojornalismo: não é uma reportagem, é um objeto político e, ao mesmo tempo, suficientemente artístico, pois ela compõe, trabalha, ela faz as coisas não importa como.
Acho que isso nos esclarece também sobre o que temos direito de exigir dos fotojornalistas que trabalham demasiadamente, como na revista Choc, por exemplo, em que vemos até onde pode ir a obscenidade na apreensão do real. A obscenidade do real pode ser algo lamentavelmente trivial: é a pretensão de tudo mostrar, em vez de retirar. Assim, como diz Comolli para o cinema documentário: “quando vou fazer um documentário, começo por me perguntar sobre o que não vou mostrar. Começo decidindo o que não mostrarei.” Começamos pela retirada, depois vemos o que deixamos a ver: construímos o fora de campo. E para a fotografia é o mesmo: é preciso sempre construir seu fora de campo.
Entrevista publicada originalmente em: http://sens-public.org/spip.php?article500&lang=fr

"Tudo sofisticadamente pensado, realizado e engatilhado, o local - cenário - do crime, a casual (?) presença do fotógrafo-jornalista - que evidentemente não se furta e fotografa um fato "fotogênico" - a disseminação rápida das imagens nas redes sociais e jornais, tudo isso vai reafirmando o óbvio: que um ato terrorista é também sempre um ato espetacular. Marie-José Mondzain utiliza uma palavra para falar de nossa relação frenética com as visibilidades hoje, iconocracia. A iconocracia seria um culto cotidiano e incessante das visibilidades, uma espécie de vício cego e cegante diante de tudo aquilo que circula e se oferece à nossa visão, a iconocracia se articula a dois outros regimes: a iconofobia - o regime que instaura o medo diante daquilo que supostamente as imagens podem fazer/causar -, e a fobocracia, regime em que o medo se alimenta da produção e circulação de imagens para melhor dominar, manipular e subjugar. Para Mondzain esses dois regimes, um "da imagem do medo e outro do medo da imagem" se baseiam numa mesma concepção de poder ancorada no sequestro do sensível ou no sequestro de nossa relação sensível - crítica e aberta - com o sensível."

Laura Erber 
"No primeiro semestre de 2015, quando ia se compondo o vasto campo de pré-candidatos republicanos à Presidência, Donald Trump recebeu apoio deliberado, programado, inequívoco de ninguém menos que ... Hillary Clinton! Isso mesmo. Mais emails vazados pelo Wikileaks (cópia segue abaixo) revelam que a campanha de Hillary concebeu a "brilhante" estratégia de reforçar as candidaturas republicanas consideradas extremistas (Ted Cruz, Donald Trump, Ben Carson) como forma de empurrar o partido adversário para a direita e assim inviabilizar os candidatos republicanos mais centristas, para supostamente melhor ocupar esse espaço.
Funcionou que foi uma beleza, como se viu.
Mutatis mutandi, a campanha de Hillary deu a Donald Trump a mesma mãozinha que Dilma Rousseff deu a Aécio Neves em 2014. Como todo mundo se lembra, a campanha de Dilma queria enfrentar Aécio, e não Marina, no segundo turno, para melhor poder pintar seu adversário como a direita bicho-papão. No primeiro, dedicou-se a difamar e destruir Marina de todas as formas possíveis, em uma das mais sujas campanhas eleitorais da história brasileira. Conseguiu enfrentar o adversário que queria no segundo turno. A tática deu certo e ela venceu as eleições, mas depois pagou o preço por tê-lo fortalecido.
Essa estratégia inventada pelos Clinton, de empurrar o tabuleiro político cada vez mais para a direita, para depois tentar fazer seu próprio reacionarismo parecer um centro razoável, já tem até um nome dicionarizado em inglês: "triangulation". No email que segue abaixo, nota-se que a campanha da gênia tinha como prioridade, já em abril de 2015, o fortalecimento de Donald Trump. Hillary pagou o preço antes que Dilma.
E aqui nos EUA você ouve, todo santo dia, apoiadores de Hillary colocando a culpa pela derrota no FBI, nos Verdes, na Rússia ou na mídia."

Idelber Avelar
"Está mesmo se consolidando uma tecnologia afetivo-política de produção de subjetividades impotentes, frágeis, infantilizadas e birrentas na esteira do resultado da eleição aqui nos EUA. Os amigos dizem estar "de luto", mas nada em seu discurso ou comportamento sugere que estejam mesmo realizando o trabalho do luto -- porque o luto, ao contrário da melancolia, é um trabalho, não uma simples condição.
No texto clássico de Freud, a melancolia é aquilo que acontece quando o sujeito sofre uma perda mas é incapaz de realizar o luto, incapaz de separar-se a si próprio do objeto perdido, de tal forma que ele começa a ver a si mesmo como parte daquele objeto que se foi. O resultado é que o mundo parece ter sido perdido, com a consequente queda no abismo da paralisia. As raízes disso são antigas e vêm de longe, claro, mas os últimos cinco dias foram o solo perfeito para que frutificasse esse discurso do medo e da impotência
Para o melancólico, qualquer acontecimento no mundo será uma confirmação de seu estado. Não importa que todos os indícios demonstrem que Bernie Sanders, um candidato bem à esquerda de Clinton, teria batido Trump com facilidade -- isso não muda a convicção do melancólico de que os eleitores de Trump são racistas movidos pelo ódio. Não importa que todas as evidências demonstrem que Elizabeth Warren teria batido Trump até mesmo no Meio Oeste --- isso não muda a convicção de que "não quiseram elegê-la porque era mulher". Não importa que você demonstre que a representação de Clinton na imprensa era infinitamente mais positiva que a de Trump -- o melancólico está convicto de que a culpa é da mídia. Não importa que você apresente pesquisa empírica que mostra que caso não tivesse havido nenhum candidato de terceiro partido, a derrota de Hillary teria sido pior, já que Trump teria colhido mais eleitores ali do que ela. Para o melancólico, a culpa é da Jill Stein.
Todo mundo é culpado, menos a própria candidata que perdeu, e que há 25 anos vem mentindo consistentemente, mudando de posição sobre tudo segundo a conveniência, fazendo campanhas eleitorais sistematicamente difamatórias, liderando bombardeios a outros países e favorecendo bancos, companhias de seguro, o lobby do petróleo e o lobby da guerra, exatamente tudo o que os eleitores deste ano queriam rejeitar.
Tenho visto alguns dos meus heróis intelectuais produzindo textos que parecem saídos da pena de um garoto de 10 anos de idade dando birra para não enxergar um fato. Por outro lado, cada incidente que acontece no país -- e boa parte deles nem aconteceu, como mostra a proliferação de fanfics depois desmentidas -- é apresentado como confirmação do apocalipse fantasiado pelo melancólico. Aquelas velhas balizas mais ou menos universalmente aceitas para o trabalho intelectual -- observação empírica, análise cuidadosa com atenção à nuance etc. -- viraram, na pluma de muitos de meus colegas, "relativização do horror". Manchetes com fatos horríveis? Posso produzir pilhas também, com qualquer data à sua escolha.
Essa terapia coletiva em que os círculos intelectuais dos EUA estão se transformando, em que você tem que tomar cuidado para não ferir marmanjos que têm estabilidade no emprego e ganham 150 mil mangos por ano, é só isso: denegação mesmo. Estão se apaixonando pelo papel de vítima."


Idelber Avelar

18 dezembro 2016

15 dezembro 2016

"Estava aqui pensando em coisas que poderiam integrar uma plataforma que se contrapusesse às tendências atuais do capitalismo, nos seus dois modelos (desenvolvimentismo e neoliberalismo), e cheguei à conclusão que boa parte era viável em 2010 se a continuação do Governo Lula tivesse ido para outro caminho que não o projeto Brasil Maior. A maioria nem dependeria do Congresso. Algumas dessas coisas já estavam nascendo, outras envolveriam ruptura:
a) em vez de empréstimos e estímulos para gigantes da economia, implementar o programa de renda mínima cidadã; 
b) em vez de isenções fiscais, aumentar a taxação de carros e financiar transporte público de qualidade (não necessariamente estatal); 
c) deixar para a iniciativa privada financiar a infraestrutura, mantendo rígida regulação ambiental e respeitados territórios indígenas e quilombolas; 
d) em vez de despejar centenas de milhares de reais em programas sem foco (como o Ciência sem Fronteiras), traçar como meta principal do governo -- sua "bandeira" -- a recuperação da escola pública, inclusive revisando o pacto federativo, se necessário; 
e) criar uma regulação baseada no compartilhamento e colaboração para o mundo virtual, permitindo que o Brasil fosse um território livre da tirania do copyright;
f) investir em políticas culturais que valorizem autonomia local, como já eram os Pontos de Cultura, fomentando no Brasil uma nova indústria criativa da bricolagem;
g) criar regulações trabalhistas específicas para micronegócios de empreendedores com menor renda, permitindo uma maior formalização; 
h) revisar a matriz produtiva dos alimentos no Brasil, proibindo ou diminuindo drasticamente o uso dos agrotóxicos e substituindo os transgênicos;
i) ambos produtos, de g) e h), poderiam receber um selo de qualidade (algo como "Selo Brasil") que significaria produção limpa e comércio justo, colocando-se como contraponto da produção asiática baseada na exploração da mão-de-obra e poluição ambiental; 
j) fazer o "Minha Casa Minha Vida" de outra forma totalmente diferente, fomentando financiamento de pequenas cooperativas de construção dos próprios locais e colocando uma matriz de código aberto para que arquitetos e urbanistas pudessem aperfeiçoar a qualidade dos imóveis;
l) cortar instituições públicas sem eficiência que só servem de cabide de emprego para partidos políticos; 
m) manter o equilíbrio fiscal e controle da inflação, apostando que os novos experimentos microeconômicos seriam mais efetivos que o velho estatismo desenvolvimentista;
n) propor plebiscito sobre descriminalização das drogas;
m) limpar a matriz energética do país, fazendo com que a Petrobrás se deslocasse nos investimentos para energias solar e eólica, aos poucos abandonando combustíveis fósseis; 
o) fazer uma ampla simplificação da parte burocrática do país, colocando o princípio da boa-fé como norte principal da fé público e enfraquecendo os cartórios; 
p) propor uma reforma previdenciária com teto único universal, que corte todos os privilégios existentes, com idade menor possível (segundo cálculos atuariais) e seguindo um meta razoável para que a pessoa implemente o valor total;
q) propor uma reforma tributária justa, com especial ênfase na correção da injustiça entre classes e redistribuição federalista dos valores;
r) propor uma reforma política que contemplasse candidaturas independentes e ampliação do espaço da democracia direta; 
s) assumir o risco de perder a eleição seguinte."

Moyses Pinto
"Vou colar a frase da primeira imagem abaixo novamente, só por via das dúvidas:
"Não estava programado mas foi um gesto de indignação das pessoas. Fiesp representa o que não presta no Brasil. O dano na fachada da Fiesp é muito pouco perto do dano que a Fiesp está causando há muito tempo ao povo do Brasil." ¹
Agora, esta é a frase do PSOL Ceará, que inclusive corrobora com muito do que eu tenho escutado de organizações partidárias:
"Usar as manifestações de massas como escudo ou conduzi-las para confrontos com o aparelho repressivo não planejados e acordados com aqueles que democraticamente construíram os protesto não passa de oportunismo, da mesma família do aparelhamento partidário." ²
Se a ação direta "não foi programada", e foi compreendida como "gesto de indignação", então por que essa preocupação em repudiar "confrontos com o aparelho repressivo não planejados e acordados"? Oras, do que se trata, então, esta flagrante contradição entre discursos?
Tendo visto o vídeo da ação direta contra a FIESP, pode-se perceber que não foram "mascarados" nem gente vestida de preto quem promoveu a ação. Foi gente "de vermelho". Isto é ruim? Claro que não. A FIESP merecia muito mais. Se eu tivesse como opinar, sugeriria que se montasse uma milícia popular, retirasse todas as pessoas do prédio e implodiria aquela merda. Pelo contrário, portanto: achei a ação até pouco. Quisera eu que a galera "de vermelho" (na qual me incluo, enquanto comunista) tivesse mais coragem de fazer mais ação direta.
Mas por que, então, essa contradição discursiva? Por que raios a militância partidária tem estado tão preocupada em apontar o dedo para a ação direta anarquista, enquanto justifica a ação direta não-planejada pela militância partidária ou de movimentos com os quais ela fecha?
Especulo alguns motivos:
1. Porque a militância partidária e seus satélites querem estar bem na foto pra grande mídia. E toda vez que nega isto a gente é obrigada a lembrar que Boulos e Duvivier são colunistas da Folha. A grande mídia é a vanguarda da criminalização da ação direta, e parte da população - em especial classes média e alta - tem visto com maus olhos os atos de depredação de objetos. Aquela militância, na dificuldade de se conectar com grande parte da classe trabalhadora (parte da qual inclusive tem sido conquistada pela direita e extrema-direita), portanto, passa a entender que é necessário ganhar a classe média, mais próxima e querida à institucionalidade burguesa, para então deter maior poder sobre a classe trabalhadora;
2. Porque nós, comunistas, temos um longo histórico de perda de controle para ações anarquistas. Kronstadt foi exemplo disto. E qual foi a nossa resposta? O massacre. Situações assim têm se repetido há décadas. Uma companheira anarquista disse, estes dias, com razão, sobre este tipo de comportamento: "essa gente odeia o que não consegue controlar". A partir de certo ponto, quando se perde o controle - mesmo de ações que tenham pouco de revolucionário como atos de rua -, boa parte dos setores comunistas passa a enxergar anarquistas como inimigos. Aqueles e aquelas que estiveram lutando ao nosso lado sempre que houve uma situação revolucionária. Nos dias de hoje isto se reflete em uma docilidade enorme perante a polícia do Estado, mas também em um policiamento violento contra ações diretas anarquistas. Quando a ação direta é "do nosso lado", então beleza, tá tudo certo, o Capital é de fato o inimigo afinal. Mas quando a ação direta não está sendo provocada pelas nossas fileiras, nossa resposta é a criminalização.
Não se trata, portanto, de uma separação entre "atos coordenados" e "atos aleatórios", mas sim de uma separação entre "atos nossos" e "atos dos outros". É aqui que mora o perigo para a esquerda. E é, por isto mesmo, que a galera que toma este segundo discurso passa a se comportar como seita - portanto "sectários" (termo que adoram empregar contra anarquistas).
Eu continuo sendo comunista. Subscrevo à tese de valor de Marx, bem como me faz mais sentido enxergar a história por uma ótica materialista do que idealista. E também acho que o Estado pode ser uma ferramenta útil para uma transição em direção ao Comunismo (sociedade sem classes nem Estado), caso o processo seja revolucionário. Mas, olha, cada vez tenho achado mais escrota essa militância comunista anti-anarquista. Porra, quem são nossos inimigos, caralho? A porra da FIESP e a porra do BACEN, ou as anarquistas?
Mas que merda. Melhorem aí dessa idiotice. E minha total solidariedade a anarquistas. Nesta treta eu fecho com vocês anarquistas."

Diogo Baeder
"1 - As conquistas sociais mais relevantes da história do Brasil remontam os governos Vargas e a constituição de 1988.

2 - Os governos do PT se apoiaram nas conquistas de Vargas e da constituição de 1988 sem consolidar nenhuma ação

3 - Embora tenha prometido a consolidação das leis sociais, o PT não fez nada pra concretizar isso, nem a lei de médios, tb prometida

4 - Pior, o PT abriu espaço com suas negociações e negociatas pra que a direita se reformulasse e o e nos golpeasse junto com as conquistas

5 - Fora que o PT iniciou as PEC 241/55 e a MP do ensino médio e também a PEC da reforma de previdência, mesmo um pouco menos radical

6 - Ou seja, o PT é parte do próprio golpe e do desmonte das conquistas. E ainda tem "esquerda" que protege esses fdp."


"INGENUIDADES NA GEOPOLÍTICA?

A miséria da esquerda dita "anti-imperialista" se mostra com clareza nessa espécie de simpatia estratégica pelo ditador Assad em meio à guerra civil síria. O argumento começa acusando os outros de ingenuidade, por não perceberem a big picture de um conflito global entre macroforças e estarem desinformados por mídias hegemônicas. O passo miserável não tarda: em meio às geometrias variáveis do conflito, identifica qual a posição dos Estados Unidos para se alinhar no que entendem como polo oposto, a posição "anti-imperialista". Daí é um passo até achar em Assad (pai e filho), filiado a um profundo nacionalismo de recorte racial, um baluarte contra o "Ocidente" e o ISIS. É o mesmo achatamento neoestalinista que identifica uma resistência antissistêmica em lordes mafiosos do capital como Putin ou Xi Jinping, como se os BRICS fossem um projeto de contrapoder mundial, ou que flertam com o populismo do concreto de Trump e o Tea Party, porque eles se opõem ao coração financeiro de Wall Street. Seria o mesmo que enxergar em Bolsonaro, no Brasil, uma posição forte contra a casta pemedebista, ou então apostar no fortalecimento da Igreja Universal contra o predomínio da Globo (e aí quando esta apoia o candidato das esquerdas, dá um nó na cabeça). Isso não é pensamento esclarecido e informado de disputa da hegemonia, mas hegemonismo histérico atrás de ídolos para dar algum sentido à morte do velho mundo. Aí ainda pulsa o coração oco de nostalgia da Guerra Fria, do mundo em duas cores, dos atalhos do anti-americanismo, um desejo mais ou menos secreto de pertencer a uma grande máquina civilizacional no palco da História, de ser uma engrenagem feliz, de ser soldado de uma Grande Causa (leitura recomendada: "O homem que amava os cachorros", L. Padura). Na Síria estamos numa dialética onde todos os piores estão juntos, as forças governistas, a FSA, o ISIS, o Front Sul, a Alcaida, a Turquia de Erdogan, os drones cirúrgicos americanos e os bombardeios arrasa-quarteirão russos (exceção nisso, os resistentes do Curdistão Sírio, ao norte). O que tem de pior no mundo se defronta arrastando o globo em sua tendência de aniquilação. Melhor pergunta do que tentar achar um lado para "curtir", para dar seu inútil apoio protocolar no Facebook - protegido pela simplória razão geopolítica dos anti-imperialistas - é voltar alguns anos e tentar compreender como a Síria acabou submetida a esse 'stalemate' de guerras vindas de todos os lados, justamente depois de ser o palco de um dos momentos mais potentes dos levantes da primavera árabe, que em 2011 se espraiou por 40 países na África e no Oriente Médio. Como a restauração dos protestos de massa pela queda do presidente Bashaar al-Assad, que os acusou desde o dia um de fantoches imperialistas e ligados ao terrorismo, e a seguir brutalmente os reprimiu, como essa contenção da mobilização democrática precipitou as condições para a guerra civil. Compreensão semelhante poderíamos buscar na Ucrânia insurgente da Praça Maidan, na Turquia do Parque Gezi e, mutatis mutandis, no Brasil de junho de 2013."

Buno Cava

14 dezembro 2016

"A cada revelação do modus operandi da nossa república o que fica mais e mais claro é que a democracia não pode ser nunca um regime, um sistema de regras e procedimentos. A democracia enquanto vetor de mobilização da sociedade diante daquilo que ela é e que pretende ser só existe quando o regime, no qual uma única empreiteira paga 7 milhões de reais por lei, é questionado diretamente pelo povo em movimento. Existe apenas o movimento de democratização ou de fechamento autoritário. Essa é a verdade comum que as lutas ensinam, a constatação de que o direito só funciona como jurisprudência, nunca como norma. Quando cerramos fileiras em torno de abstrações como a "lei", o "estado de direito", a "democracia" ou mesmo a "esquerda", estamos derrotados de antemão, porque nada disso existe, são conceitos vazios sem que o concreto das lutas os faça funcionar. E numa sociedade neoescravagista como o Brasil, na qual há centenas de milhares de presos sem julgamento e a violência assassina da polícia militar é o modo naturalizado de regulação da pobreza, defender essas abstrações, além de equivocado, soa como verdadeiro escárnio, ainda que involuntário. Democratizar a república depende da construção de novas relações de força, sem as quais o comando capitalista fica nu. Essa é a nossa atual situação; o comando está completamente exposto e funcionando de modo completamente arbitrário."

Silvio Pedrosa 

12 dezembro 2016

MENINA,
Pare: de se perguntar sobre o sentido da vida. E então o sentido dela te encontrará.
Chega: de pensar sobre os motivos que levam as pessoas a te amar.
Aceite: simplesmente você é amável.
Saiba: essa história de desconfiar daquilo que você já sabia desde o começo e mesmo assim se atirar em precipícios disfarçados de entrelinhas, só pra depois você poder dizer pra você mesma “viu só como nada dá certo pra mim” - já deu. Ok?
Confie: a sua intuição funciona.
Acredite: o mundo está repleto de gente que te quer bem.
Conforme-se: você é uma pessoa incrível, mas não tão incrível assim, está cheia de defeitos.
Respeite: ainda que você ame os seus defeitos, nem todos irão amá-los. E tá tudo bem.
Pare: de exigir perfeições das pessoas ao seu redor.
Lembre-se: os vivos estão cheios de limitações. Só os mortos é que são suscetíveis a promessas de amores eternos que jamais se quebram.
Menina: seja você mesma, porém, não tanto. Guarde um pouco dos seus exageros para si.
Evite: se arrebentar na tentativa de evitar viver. Se for pra se arrebentar, que seja de viver.
Larga: desse preconceito com os meios-termos. Às vezes o oito é pouco e o oitenta é demais.
Creia: nem todo mundo gosta e nem vai gostar de você – e ainda assim você não se desintegrará. Há certas inimizades que são verdadeiros elogios à existência.
E, por fim, menina, lembre-se: se conselho fosse bom, a gente comia.

Ana Suy

Maria Filomena Molder: “Só começamos depois de continuar”


Num seminário disse que, para compreendermos a nossa existência, temos de compreender as suas condições concretas. Isto é o oposto do que se pensa da filosofia: uma disciplina que paira acima do concreto. 
É verdade. Por um lado, há na filosofia esse momento destrutivo e analítico, sem o qual não há filosofia. E é por isso que muitos textos filosóficos parecem ilegíveis — é como querer ler uma partitura e não saber música. Mas há também, por exemplo em Wittgenstein, a noção de que o significado das palavras não pode ser compreendido antes de termos olhado com muita atenção para os seus usos. O significado abandonado a si próprio é opaco.
Mas qual o papel do filósofo? Há causas que a mobilizam, como a morte assistida ou o acordo ortográfico (AO). 
Sou a favor da morte assistida e contra a tentativa de impedir a liberdade de cada um em relação à sua própria morte. Estamos numa situação do ponto de vista tecnológico que faz com que aquilo que já não é vida humana seja prolongado de maneira indecente. E quem está prestes a ficar numa situação dessas deve poder dizer que não o quer. Não há nenhuma crença religiosa que se possa erigir em juiz da decisão de uma pessoa que não tem essa crença.
E porque é se opõe com tanta veemência ao AO? 
A ortografia não é a língua. Quando era pequenina havia muitos analfabetos que falavam um português maravilhoso. Porém, a língua não está separada da escrita. Nas “Investigações Filosóficas”, Wittgenstein diz: “Pensa que a imagem virtual da palavra nos é num grau semelhante tão familiar como a auditiva.” No AO, esta familiaridade foi quebrada por razões enganadoras. Convém não esquecer que se trata de um acordo, um compromisso de unificação do que não é unificável. E é um disparate, porque apregoa uma unificação que ele próprio não consegue: o próprio AO admite grafias diferentes para as mesmas palavras. Além disso, pela primeira vez, uma reforma ortográfica tem consequências no modo de dizer as palavras. O ‘p’ em ‘recepção’ tem uma função elucidativa da vogal aberta. Podia ter-se substituído por um acento grave no ‘e’, mas não se fez. A tendência do falante de português — não do brasileiro — será fechar essa vogal. A ortografia modificará a leitura e a linguagem falada. E já gera confusões, como vir no “Diário da República” escrito ‘fato’ em vez de ‘facto’.
Isso é ignorar o próprio AO...
Estou em crer que 99% das pessoas que o aplicam nunca o leram. O Frederico Lourenço, alguém que admiro, escreveu que sempre houve mudanças na ortografia e que já se perderam vestígios etimológicos. Tem razão. Mas há uma coisa que se chama memória. E porque muitos vestígios se perderam temos de anular os que restaram?
Isto leva-nos ao seu novo livro, onde escreve: “Primeira regra: continuar. Segunda regra: começar.” A ideia, muito presente em si, de que nada vem do nada. 
Essas regras vêm de um autor francês que estimo imenso e caiu no esquecimento, chamado Alain. E são mesmo regras para mim. Há uma história de infância que conto num dos meus livros. Eu brincava numa rua íngreme por trás da minha casa. Um dia subi-a, desci e fiz uma coisa que nunca tinha feito, que é olhar para o horizonte. E vi que estava lá o rio Tejo. Foi uma experiência muito forte, a de sentir que aquilo estava lá antes de o ter visto. Onde eu estava a começar, estava a continuar. Nós só começamos depois de continuar.
Numa conferência dizia que o leitor é aquele que relê. Que o ‘não entendo’ é não reconhecer que “a opacidade encontrada é a matriz de onde se tem de partir para voltar a ler”. É assim? 
E o maior engano é a empatia. A empatia é um instrumento de familiaridade imediata que pode impedir a compreensão. Sentimos tanto que aquilo é assim que não fazemos nenhuma análise. E a leitura inclui esse momento destrutivo da análise, a decomposição do que se tem. Enfrentar a opacidade implica destruir o texto.
Alberto Manguel contava que só conseguiu ler “A Divina Comédia” aos 60 anos, após muitas tentativas goradas. Quando é que se está pronto? 
Tem que ver com esperar a boa ocasião. Tenho muitas experiências semelhantes a essa. Também não li Dante quando era nova.
Mas leu Nietzsche insistentemente, mesmo sem perceber. Continuava. 
Li muito nova “A Origem da Tragédia” e “Assim Falava Zaratustra”. Era como provar um vinho estranho, uma comida desconhecida, que amargava a boca. Sem conseguir parar. Depois só o voltei a ler anos mais tarde. Em relação à “Divina Comédia”, já tinha 50 anos quando li a edição do Vasco Graça Moura. Fiquei absolutamente varada e não sei se teria conseguido lê-la mais nova. Não se sabe quando estamos prontos. Sei que estamos prontos para continuar e depois começar quando uma coisa nos toca. E isso não é empatia, é sentir que aquilo vai entrar na nossa vida. Por vezes, entrar num texto é entrar num descampado. Temos medo, mas continuamos.
Disse que há filósofos que lhe eram adversos e que não quis conhecer bem. Quais são? 
Um deles é Heidegger. Li-o na minha juventude com entusiasmo devorador, até sem saber alemão. Eu sei alemão, mas não sou sabida em alemão. Traduzo porque quero compreender melhor os textos e porque traduzir é o que me calha bem.
Esse gesto de tradução descreve-a, segundo Fernando Gil [que orientou a sua tese sobre Goethe]. 
Ele tinha razão. Estou sempre a traduzir, é algo assim como dar nome.
“Deixar cair isso de ser quem se é na língua materna”. Palavras suas. 
É encontrar o ‘ele’, o anónimo, em nós.
E o que não encontrou em Heidegger? 
É manipulador e eu detesto ser manipulada. Nunca poderei compreender porque é que a Hannah Arendt se apaixonou por ele, mas a paixão não é para se compreender. Ele é uma droga de alta potência, porque quem é apanhado não a larga. Transformou todos os filósofos gregos em alemães. Absorveu-os como se fossem ele: um homem do século XX, que considerava que o povo alemão tinha um destino e que a filosofia era o cumprimento desse destino. Os gregos são instrumentos dessa construção.
E quais os que quis estudar? Nas suas aulas costumava falar de pertença, de família. 
O primeiro foi Heraclito, enigmático, desprezador da multidão e convencido de que qualquer um pode ir ter com a profundidade da sua vida. O segundo, Giordano Bruno, homem do Renascimento, mandado matar por imaginar mundos infinitos. O terceiro, Kant, foi o descobridor do espaço e do tempo como intuições da nossa sensibilidade, uma revolução coperniciana, o mais honesto dos filósofos, depois de Espinosa e antes de Nietzsche. Todos os outros vieram na sequência destes, sabedores dos limites humanos, nenhum vilipendiando esses limites: Arendt, Walter Benjamin, Wittgenstein, Nietzsche, Fernando Gil, Giorgio Colli. Broch, que não é filósofo, mas um grande pensador — tal como Dante.
Porque se dedicou às relações entre a filosofia e a literatura? 
Porque adoro literatura e a filosofia é um género literário, inventado por Platão. Que se manteve, apesar de Aristóteles ter ido por outros caminhos. Sem diálogo vivo a filosofia enfraquece, o que se escreve perde massa muscular. Por isso é que a vida escolar é tão importante na filosofia. Hoje está reduzida a um espaço muito pequeno, mais ainda pelas facilidades tecnológicas que ajudam a criar falsas comunidades, em que as pessoas não estão à frente uma da outra. Não estar à frente uma da outra arranca o elemento tácito. Os gestos, os silêncios, ou o que não está a ser dito mas ambos sabemos.
Disse que a filosofia perdeu audibilidade. Não que perdeu voz, mas sim as condições para ser ouvida. 
A comunidade filosófica hoje é quase estritamente académica. O que significa que temos de proteger a filosofia na escola, porque é a única possibilidade de diálogo e de argumentação vivos. Ao mesmo tempo, como a escola é a única reserva que a filosofia tem, perde imenso. Porque a relação filosófica não se compadece com o sistema de avaliação e de organização das universidades.
E porque a filosofia leva tempo? 
É um modo de vida que segundo os moldes do nosso ensino começa a ser exercitado cedo demais. Plotino pensava que ninguém se devia dedicar à filosofia antes dos 28 anos. Na verdade, nós vivemos muito isolados, e todos os meios de aceder ao outro de maneira artificial aumentam o isolamento. São indutores falsos de proximidade espacial, e o espaço não é indiferente. O espaço da internet é uma coisa, este escritório é outra. A comunicação hoje restringe-se a um meio que anula o espaço como realidade qualitativa.
Permita-me insistir no papel do filósofo. Alguma vez pensou que a Europa estaria na situação em que está? 
Não suporto o modo como os governantes portugueses têm agido diante dos poderes da União Europeia. Comportamo-nos como escravos e fomos pensados para escravos. Não sei se a não adesão nos teria levado até ao ponto em que estamos. Sei é que a agricultura foi dizimada e as pescas controladas de forma doentia, que as fábricas de tecidos entraram em colapso. Os europeus, como bons europeus, compram os tecidos às vítimas chinesas e indianas. E alegremente falamos de tolerância e direitos humanos, mas praticamo-los pouco. A questão dos refugiados é muito complexa. Uma coisa é compaixão e a compreensão de que a situação dos refugiados foi criada por uma guerra da qual eles não serão responsáveis, outra é deslindar as origens dessa guerra: lá dentro estão franceses, americanos, alemães, italianos, russos... Não tenho ilusões, nem percebo porque é que a Europa, em termos de política externa, é superior a qualquer outro continente.
Percorremos vários assuntos, o que não está longe da sua visão da filosofia enquanto disciplina que interliga, que estuda as relações. “Rebuçados Venezianos”, o próximo livro, não tem que ver com isto?
A filosofia está sempre à procura dos seus conteúdos, pode fazer-se filosofia com qualquer coisa. “Rebuçados Venezianos” é o título de um texto sobre a obra de Luísa Correia Pereira, uma pintora de quem fui amiga. E este texto é póstumo — ela não o pôde ler. Uma vez, a Luísa comprou em Murano uns rebuçados feitos de vidro e ofereceu alguns ao Jorge [Molder, o marido], que os fotografou para a série “The Secret Agent”. Entretanto, ela fez um pequeno óleo chamado “Rebuçados Venezianos”, que nós comprámos. É um nome que implicava uma série de nexos. É como uma discussão entre mim e ela — em que ela ganhou. Entre a arte e a filosofia, a arte ganha.
Diz isso com convicção e alguma tristeza.
Vejo muito fracasso na vida. Há pouco tempo comprei um livro da Arendt com poemas dela. E há ali um poema que me impressionou imenso, em que ela fala de uma insatisfação inesperada consigo própria. Eu partilho dessa insatisfação.
Essa insatisfação, o que é?
Não sei. Deveria corresponder a qualquer coisa que não consigo fazer ou alcançar. Mas não sei o que é que não consigo alcançar.
Será a filosofia? 

Pode ser a filosofia.
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 28 maio 2016