02 outubro 2018

"Pessoas de fora da área da história costumam repetir o que chamamos de “sentido ciceroniano” da memória. Cícero chamou à História “mestra da vida”. Haveria uma reserva moral perceptível no desenrolar dos fatos. O tempo garantiria a retirada das paixões. Só a tinta seca permitiria avaliar o quadro. A serenidade conferida pela distância dos fatos e a verificação cirúrgica das intenções, possibilitaria ao historiador assumir a toga isenta de juiz do mundo pretérito. Tal como um magistrado sério, quem escrevesse sobre o passado não se afogaria nos desequilíbrios partidários do torvelinho atual. Fleuma, a virtude exaltada pelos ingleses; fleuma como sinônimo de tranquilidade e equilíbrio, seria o traço dominante e desejável ao prolatar sentenças.
Objetividade e discernimento são, de fato, atributos de um bom texto histórico. Mas a história não é um tribunal, muito menos um juiz a indicar certo e errado em meio a opiniões. O grande Marc Bloch já insistia, numa obra escrita num campo de concentração nazista (um lugar bom para se dizer o contrário), que a história não deveria julgar. História não tem sentido moral. Pior: nada garante que o estudo do passado evite erros do presente, até porque os fatos não se repetem, são sempre únicos.
 São os fatos e posições do presente que dizem se Che Guevara foi um herói (o “maior homem da história” para Sartre) ou um canalha assassino (para outros). Cada tribunal da História terá sempre o juiz do seu tempo, o júri e os advogados da sua historicidade específica. Nunca existirá isenção. Sempre vicejará a subjetividade. Neutralidade é um desejo e uma meta, jamais uma realidade integral.
Nem tragédia e nem farsa, como pensou Marx: a história é apenas uma sucessão caótica de acontecimentos destituída de lógica ou moral. Somos náufragos no gigantesco oceano dos fatos, dando ao passado direções póstumas a partir de morais presentes.
Não se trata de relativismo extremado, mas de reconhecer que o certo e o errado são determinados historicamente."

Leandro Karnal