30 julho 2016

Joan Brossa


A caça



via Facebook de Carlitos Azevedo

20 julho 2016

Réquiem para Pier Paolo Pasolini
(Eugénio de Andrade)
Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável. 
Era novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa: uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo – amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na
primeira
página, o sangue apodrece o brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meretíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Salò, não se importariam de
assinar.
Sea qual for a razão, e muitas há,
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua.
"A literatura participa da história, participando do movimento da linguagem que acontece primeiro nos jargões e não no papel. Neste sentido, é um assunto do povo, os analfabetos são a esperança da literatura. O trabalho com o desaparecimento do autor é o trabalho contra a desaparecimento do homem. O movimento da linguagem é alternativo: o silêncio da entropia ou o discurso universal que nada esquece e não exclui ninguém. A primeira forma da esperança é o medo, a primeira aparição do novo, o espanto."
Heiner Müller, "O espanto como primeira aparição do novo" In: Ingrid Koudela (org.) Heiner Müller: o espanto no teatro, 2003 [1979], p. 48.

Silvio Pedrosa

16 julho 2016


"O contraste entre a luta que precisa recusar a amnésia e o exercício do pensamento que demanda confiança é por vezes difícil de ser vivido. Mas que nunca nos aconteça de dizer ou isso ou aquilo, ou Marta ou Maria. Marta que se engaja, Maria que escuta. É uma armadilha. Não se esquecer jamais que este mundo obriga a lutar, que nada é 'normal', e jamais cessar de pensar juntas, de cultivar a insubmissão, mesmo em relação à nós mesmas, umas em relação às outras, pelas outras e graças às outras, não é esse afinal o sentido dessa aventura a ser incessantemente retomada que é o feminismo?"
Vinciane Despret e Isabelle Stengers
(Les faiseuses d'histoires - que font les femmes à la pensée?)

via: Laura Erber 
O QUE É POSSÍVEL
Uma noite clara se a mente fosse clara
Se a mente fosse simples, se a mente fosse despida
de tudo menos das necessidades mais clássicas:
colher-de-pau faca espelho
taça candeeiro cinzel
um pente passado pelo cabelo ao pé de uma janela
um lençol
atirado para trás por quem dorme
Uma noite clara em que dois planetas
parecem abraçar-se em que as ervas da terra
deslizam como seda à luz das estrelas
Se a mente fosse clara
e se a mente fosse simples podia pegar-se nesta mente
neste estado particular e dizer
'É assim que viveria se pudesse escolher:
isto é o que é possível'
Uma noite clara. Mas a mente
da mulher que imagina tudo isto a mente
que deixa que tudo isto seja possível
não é clara como a noite
nunca é simples não pode abraçar
as suas verdades como os planetas em trânsito se abraçam
não funciona tão fácil
mente o milagre
que dá fama à mente
ou lhe dava fama
não se torna abstracta e pura a seu bel-prazer
a mente desta mulher
não tão-pouco quer esse milagre
já que tem uma missão diferente
no universo
Se a mente fosse simples se a mente fosse despida
poderia parecer um quarto um interior varrido
mas como poderia isto agora ser possível
dadas as vozes das cidades-fantasma
as suas configurações minúsculas e vastas
a precisarem de ser decifradas
a noite oracular
com os seus sons desta acção
Se tudo pudesse alguma vez resumir-se a algo como
um pente passando pelo cabelo ao pé da janela
não mais do que isso
um lençol
atirado para trás por quem dorme
mas a mente da mulher que pensa isto está envolvida em lutas
está noutra missão
uma haste de erva pena de joio ressequido enraizado na neve
no ar gelado agitando-se uma varinha feroz grafando
O dedo dela seguindo também
as páginas de um livro
sabendo melhor do que o poema que lê
sabendo através do poema
através das vidraças emplumadas de gelo
o inverno
flectindo as garras
o vento-falcão
posto para matar
Adrienne Rich, 1980.
(do livro 'Uma paciência selvagem trouxe-me até aqui' na bela tradução de Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade, porém com terríveis deformações facebookianas na disposição dos versos e supressão de espaçamentos importantes...)

via Facebook: Laura Erber 

15 julho 2016

"grande parte das pessoas que procuram meu trabalho como astróloga estão muito fascinadas, amassadas e/ou erigidas por Saturno. tem gente que não pode nem ouvir falar dele que se recolhe, ou melhor, endurece.
entendo Saturno como o eixo, a linha invisível. Saturno é também a nossa moldura e ela despenca quando os remendos que a gente coloca na gente mesmo estão excedendo os limites da nossa integridade.
sendo um dos senhores do tempo e por excelência o velho, aquele que ensina, que cria a disciplina, Saturno é antes e depois de tudo um mestre. mas não se enganem, Saturno é onde precisamos descobrir a nossa capacidade de disciplina sem que esta seja regida pela normalidade social. Saturno não tolera os desleixados com o próprio caminho e amedronta os cumpridores de papéis.
cumprir um papel social é uma das máscaras de Saturno, que pode, ou não, vestir bem na nossa cara a ponto de nos identificarmos com ela, mas também pode se tornar uma armadura que criamos para nos defender do medo de não correspondermos. mas correspondermos ao quê? à fantasmas, projeções das nossas imperfeições que nos avaliam? ou a crueza radical da integridade? dizem que as coisas quão mais rentes dos ossos mais doem.
Saturno não perdoa ilusões. é uma espécie de ajuste de contas de nós com nós mesmos. assim, Saturno traz, muitas vezes, frustração, uma sensação constante de que precisamos cumprir com alguma coisa e que não vamos dar conta. e a gente só consegue cumprir o necessário quando nos livramos do excesso de peso de ter que cumprir. e aí, simplesmente, com o pouco limitado que cada um de nós é e pode, fazemos.
Saturno é dos ossos, das articulações, da pele. sendo a estrutura, facilmente é rígido e por isso costumo lembrar às pessoas saturninas que conheço o que tantas vezes diz o I Ching: que o rígido quebra enquanto o flexível entorta. seja como o bambu que balança com o vento sem se fraturar.
é a fronteira, Saturno. aquele lugar que se atravessarmos não sabemos o que será encontrado. onde não queremos que ninguém entre. e quando atravessarmos a fronteira, embora com medo, descobriremos quem somos. Saturno é a impossibilidade de se fugir de quem se é. costumamos carregar coisas demais, muito mais coisas do que precisamos e, assim, Saturno vem com a sua foice ceifando, porque menos é mais. a gente se sente perdendo alguma coisa, mas no fundo vamos ficar mais leves, mais precisos, só com o necessário.
costumo dizer que Saturno é um trilho e é por isso que em trânsitos intensos dele a gente se sente meio que arrastado pela vida. a intensidade em quilômetros ou metros desse arrastamento vai depender de quão longe/perto se está de si mesmo. mas não é, veja bem, uma questão de mérito ou culpa, é uma questão de responsabilidade.
sendo uma nuvem de chumbo, os por ele atravessados costumam chegar com uma epígrafe ao lado "os ombros suportam o mundo". a melancolia muitas vezes pode levar ao sofrimento naquele lugar onde Saturno está. a nuvem de chumbo também é uma imagem que eu uso pro luto. Saturno encerra, delimita, poda, finaliza. a nuvem de chumbo chove, desce pelos nossos ombros, atravessa os joelhos e pela sola dos pés nos enraíza ao chão do que somos. e eu diria: é mais prudente entrar descalça em si mesmo."


Julia Hansen

10 julho 2016

"O governo liberal não é aquele que se exerce de modo direto sobre o corpo de seus sujeitos ou que espera deles uma obediência filial. É um poder totalmente em contração, que prefere ordenar o espaço e reinar sobre interesses, mais do que sobre corpos. Um poder que vela, vigia e age de forma mínima, intervindo apenas onde o quadro é ameaçado, sobre aquilo que vai demasiado longe. Só se governam sujeitos livres, e tomados em massa. A liberdade individual não é algo que possamos acenar contra o governo, visto que ela constitui, de fato, o mecanismo sobre o qual ele se apoia, aquele que ele regula o mais delicadamente possível com o intuito de obter, na agregação de todas essas liberdades, o efeito de massa esperado. 'Ordo ab chao'. O governo é esta ordem à qual obedecemos “como comemos quando temos fome, como nos cobrimos quando temos frio”, esta servidão que eu coproduzo no próprio momento em que procuro minha felicidade, em que exerço minha “liberdade de expressão”. “A liberdade do mercado necessita de uma política ativa e extremamente vigilante”, especificava um dos fundadores do neoliberalismo. Para o indivíduo, não há liberdade a não ser vigiada. É o que os libertarianos, em seu infantilismo, jamais compreenderão, e é esta incompreensão que gera atração pela idiotice libertariana em determinados hackers. De um ser autenticamente livre, nem sequer se diz que é livre. Ele apenas é, existe, move-se conforme seu ser. Só se diz de um animal que ele está em liberdade quando cresce num meio já de todo controlado, esquadrinhado, civilizado: no parque das regras humanas onde se dá o safari. “Friend” e “free” em inglês, “Freund” e “frei” em alemão, provêm da mesma raiz indo-europeia que remete à ideia de um potência comum que cresce. Ser livre e estar ligado, são uma e a mesma coisa. Eu sou livre porque estou ligado, porque faço parte de uma realidade mais vasta do que eu. Na Roma Antiga, os filhos dos cidadãos eram os 'liberi': por meio deles, era Roma que crescia. E isso significa dizer que a liberdade individual do “eu faço o que eu quero” é uma piadinha e um embuste."

Aos nossos amigos
Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus [braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. Carlos Drummond de Andrade in 'O Corpo'.
Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus [braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. Carlos Drummond de Andrade in 'O Corpo'.

09 julho 2016

"Quem poderia hoje não ser democrata? A democracia, é notório, é o
poder do povo. Mas qual poder e qual povo? Na entrevista que
segue, aprofundando seus respectivos trabalhos, Miguel Abensour,
Jean-Luc Nancy e Jacques Rancière propõem três pensamentos
singulares da democracia que se juntam nisto: o povo é o sujeito de
uma exigência de igualdade; seu poder não é o de escolher chefes,
mas o de romper com as hierarquias constituídas. A democracia não
é um regime político, mas uma prática nunca acabada. Três convites
para defendê-la como tal."


aqui: aqui

via: Vinicius Honesko
"(...)
Nascemos e morremos e é sempre o mesmo sol lá fora
Inúmeras possibilidades há nesta ou em qualquer manhã
Há consultas marcadas nos dentistas
há saltos que se prendem nas calçadas 
orçamentos familiares prédios de rendimento óculos de publicidade
e calças que já vão ficando curtas
Importantes assuntos passam nas agendas de ano para ano
e muitas outras coisas fazem as pessoas infelizes
(...)"


Ruy Belo 


"Quando a estratégia do prazer era tão minuciosa e forte
que com a astúcia habitual da morte conspirava
mas sempre era possível a surpresa do prazer
independentemente da cíclica multiplicação das represálias
como narrar à noite a última aventura desse dia
ou apenas falar de uns olhos onde havia a água da doçura
e à volta um rosto paciente e sereníssimo
bastante para alguns planos de um filme a preto e branco
bastante pra pensar que apenas para o ver valeu a pena ter nascido"
Ruy Belo in  "A margem da alegria"  via Vinicius Honesko

06 julho 2016

Por Carlitos Azevedo

Ontem muita gente compartilhou uma frase de Felix Guattari que, questionado se não dava muita importância à poesia, respondeu que: "Não sou eu, são as crianças, os apaixonados, os loucos, todos aqueles para quem a poesia é como o ar que se respira." Hoje é aniversário da poeta Wislawa Szymborska, que sempre melhora o ar que se respira. Até fumando tem o cuidado de jogar as baforadas para os deuses (provavelmente porque já não pode, em honra deles, como Homero fazia na Ilíada, imolar trezentos bois).
ESTAÇÃO
Minha não-chegada na cidade X
ocorreu pontualmente.

Eu tinha te avisado
naquela carta não-enviada.

Assim, não estavas ali na hora exata,
exatamente como previsto.

O trem parou na plataforma 3.
Muitas pessoas desembarcaram.

A ausência da minha pessoa
seguiu a multidão até à saída.

Algumas mulheres me substituíram
rapidamente
em passos rápidos.

Uma delas foi recebida
por alguém que eu não conheço
mas que ela reconheceu
imediatamente.

Assim que se viram trocaram
um beijo que não era o nosso,
depois disso uma valise foi roubada,
uma valise que não era a minha.

A estação ferroviária de X
passou no exame
da existência objetiva.

Tudo estava no seu lugar.
Os detalhes correram ordenadamente
sobre os trilhos do previsto.

Mesmo nosso encontro
chegou a ocorrer.

Sem que, contudo, nossa
presença conseguisse alcançá-lo.

No paraíso perdido
das probabilidades.


*

ELOGIO DA IRMÃ
Minha irmã não escreve poemas,
e provavelmente nunca escreverá poemas.
Herdou isso de minha mãe, que não escrevia poemas,
ou de meu pai, que também não escrevia poemas.
Sob o teto de minha irmã me sinto segura:
o marido de minha irmã por nada neste mundo escreveria poemas.

As gavetas de minha irmã não guardam poemas antigos,
em seu bolso não há poemas recém-escritos.
E quando minha irmã me convida para almoçar
sei que não o faz com a intenção de me ler poemas novos.
Suas sopas são deliciosas e dispensam significados ocultos.
Seu café nunca se derrama sobre manuscritos.

Em muitas famílias ninguém escreve poemas,
mas se um de seus membros começa, costuma haver contágio.
Às vezes a poesia cai em cascata sobre as gerações
e dá origem a remoinhos capazes de tragar os sentimentos familiares.

Minha irmã pratica uma prosa oral muito bela
e sua obra literária completa se reduz aos cartões postais
com um texto no verso que a cada ano repete a mesma promessa:
quando voltar
contará 
tudo
“tudinho”.

*
AUTOTOMIA
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando-se semi-devorar pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela bifurca subitamente em naufrágio e resgate,
em despojo e promessa, no que foi e no que será.

Bem no meio do seu corpo se abre um precipício
com duas bordas, uma estranha à outra.

Numa das bordas, a morte, na outra, a vida.
Aqui, o desespero, ali, a coragem.

Se existe balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se justiça existe, ei-la aqui.

Morrer não mais que o necessário.
Renascer a partir do que se salvaguardou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo - e sussurro quebrado.
Em corpo - e poesia.

Aqui, a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o "não morrer completamente",
três palavras que são como as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.


04 julho 2016

O caracter destritutivo - Walter Benjamin

Poderia acontecer que alguém, olhando a sua vida em retrospectiva, chegasse à conclusão de que quase todos os vínculos mais profundos que nela lhe aconteceram partiram de pessoas cujo «carácter destrutivo» era unanimemente reconhecido. Um dia, talvez por acaso, faria esta constatação, e quanto mais violento fosse o choque sofrido, tanto maior a possibilidade de ele chegar a descrever esse carácter destrutivo.O carácter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; apenas uma actividade: esvaziar. A sua necessidade de ar puro e espaço livre é maior do que qualquer ódio.O carácter destrutivo é jovem e alegre: destruir rejuvenesce, porque remove vestígios da nossa própria idade; e alegra, porque toda a remoção significa para aquele que destrói uma redução total, e mesmo uma radiciação da sua própria situação. Somos levados ainda mais a uma tal imagem apolínea do destruidor se nos dermos conta de como o mundo se simplifica enormemente se for posta à prova a sua vocação para a destruição. É este o grande laço que envolve em consonância tudo o que existe. É um ponto de vista que proporciona ao carácter destrutivo um espectáculo da mais profunda harmonia.O carácter destrutivo está sempre disposto a trabalhar. É a natureza que lhe prescreve o ritmo, pelo menos indirectamente, pois tem de se antecipar a ela. De outro modo, será ela próprio a levar a cabo a destruição.O carácter destrutivo não tem ideais. Tem poucas necessidades, e muito menos a de saber o que ocupará o lugar da coisa destruída. Primeiro, pelo menos por alguns instantes, o espaço vazio, o lugar onde a coisa esteve, onde a vítima viveu. Haverá sempre alguém que precise dele sem o ocupar.O carácter destrutivo faz o seu trabalho, evita apenas o trabalho criativo. Do mesmo modo que o criador busca solidão, o destruidor tem sempre de estar rodeado de gente, de testemunhas da sua eficácia.O carácter destrutivo é um sinal. Do mesmo modo que uma referência trigonométrica está expostas ao vento por todos os lados, ele expõe-se de todos os lados ao palavreado. Não faz sentido protegê-lo disso.O carácter destrutivo não está nada interessado em ser compreendido. Considera todos os esforços nesse sentido como superficiais. A incompreensão não o afecta. Pelo contrário, provoca-a, tal como os oráculos, essas instituições estatais destrutivas, a provocaram em tempos. O mais pequeno-burguês de todos os fenómenos, a bisbilhotice, só acontece porque as pessoas não querem ser mal entendidas. O carácter destrutivo deixa que o interpretem mal; não fomenta a bisbilhotice.O carácter destrutivo é o inimigo do homem-estojo. O homem-estojo busca o seu conforto, e a sua concha é a quinta-essência dele. O interior da concha é o rasto revestido a veludo que ele deixou no mundo. O carácter destrutivo apaga até os vestígios da destruição.O carácter destrutivo está na linha da frente dos tradicionalistas. Alguns transmitem as coisas tornando-as intocáveis e conservando-as, outros as situações, tornando-as manejáveis e liquidando-as. Estes são os chamados destrutivos.O carácter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cuja afecção fundamental é a de uma desconfiança insuperável na marcha das coisas, e a disposição para, a cada momento, tomar consciência de que as coisas podem correr mal. Por isso, o carácter destrutivo é a imagem viva da fiabilidade.O carácter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas por isso mesmo vê caminhos por toda a parte, mesmo quando outros esbarram com muros e montanhas. Como, porém, vê por toda a parte um caminho, tem de estar sempre a remover coisas do caminho. Nem sempre com brutalidade, às vezes fá-lo com requinte. Como vê caminhos por toda a parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento pode saber o que o próximo trará. Converte em ruínas tudo o que existe, não pelas ruínas, mas pelo caminho que as atravessa.O carácter destrutivo não vive o sentimento de que a vida é digna de ser vivida, mas de que o suicídio não compensa.

02 julho 2016


"Figos frescos:
Quem sempre foi comedido a comer nunca soube o que é uma comida, nunca a conheceu a fundo. Desse modo conhece-se, quando muito, o prazer de comer, mas não a gula, o desvio da estrada plana do apetite, que conduz à selva da glutonice. Na glutonice juntam-se as duas coisas: a desmedida do desejo e a uniformidade daquilo que o sacia. Comer como um animal significa: de uma vez, sem deixar resto. Não há dúvida de que assim se chega ao mais fundo da coisa devorada do que pelo prazer de comer. Como quando se dá uma dentada na mortadela como se fosse um pão, como quando nos enfronhamos no melão como numa almofada, (...) ou esquecemos pura e simplesmente tudo o mais que neste mundo é comestível diante de uma bola de queijo flamengo. Como tive eu pela primeira vez uma experiência destas? Foi antes de uma decisão das mais difíceis. Tinha uma carta que, ou metia no correio, ou rasgava. Andava com ela no bolso há dois dias, mas nas últimas horas deixara de pensar nisso. (...) Eu segui vagarosamente o meu caminho, atordoado, quando dei com um carro cheio de figos, à sombra. Foi por puro ócio que me aproximei, foi por esbanjamento que comprei, por uns quantos 'soldi', um quarto de quilo. (...) Assim saí dali com figos nos bolsos das calças e do casaco, figos em ambas as mãos estendidas, figos na boca. Não podia parar de comer, tinha de procurar defender-me o mais depressa possível daquela massa de frutos rijos que me tinham assaltado. Mas aquilo já não era comida, era um banho, de tal modo o aroma resinoso me penetrava na roupa, se me pegava às mãos, enchia o ar através do qual eu ia arrastando o meu fardo. E a seguir veio o desfiladeiro do paladar, no qual, depois de vencidos o fastio e o enjoo, as últimas curvas, a vista se abre sobre uma inesperada paisagem do palato: uma maré de gula, insípida, contínua, esverdeada, que já só conhece as ondas fibrosas e pastosas da polpa dos frutos abertos, a transformação total do prazer em hábito, de hábito em vício. Senti subir em mim um ódio contra aqueles figos; tinha pressa em acabar com aquilo, libertar-me, afastar de mim aquelas coisas gordas que rebentavam, e comia para as destruir. A dentada tinha recuperado a sua mais remota vontade. Quando arranquei do fundo do bolso o último figo, a carta estava pegada a ele. O seu destino estava traçado, também ela tinha de ser sacrificada à grande limpeza: peguei nela e rasguei-a em mil pedaços."



Walter Benjamin

(via: Carlito Azevedo)

01 julho 2016

"O amor é um tema essencial, uma experiência total. O amor está ameaçado pela sociedade contemporânea. O amor é um gesto muito forte porque significa que é preciso aceitar que a existência de outra pessoa se converta em nossa preocupação. No amor, o fundamental está em que nos aproximamos do outro com a condição de aceita-lo em minha existência de forma completa, inteira. Isso é o que diferencia o amor do interesse sexual. Este se fixa sobre o que os psicanalistas chamaram de 'objetos parciais', ou seja, eu extraio do outro alguns emblemas fetiches que me interessam e que suscitam minha excitação desejante. [...] Está ameaçado porque o amor é gratuito e, desde o ponto de vista do materialismo democrático, injustificado. Por que deveria me expor ao sofrimento da aceitação da totalidade do outro? O melhor seria extrair dele o que melhor corresponde aos meus interesses imediatos e aos meus gostos e descartar o resto. [...] O amor deve reafirmar o fato de que está em ruptura com o conjunto das leis ordinárias do mundo contemporâneo. O amor deve ser reinventado como valor universal, como relação em direção da alteridade, daquilo que não sou eu e onde a generosidade é obrigatória", Alain Badiou

link: aqui

via: Daniela Lima