2015 estourou feito tiro de AK-47 - e seus estilhaços ricochetearam a
partir do 11º arrondissement parisiense, na manhã de 7 de janeiro,
quando três terroristas abriram fogo contra a redação do Charlie Hebdo.
Entre 11 feridos e 12 mortos - incluindo Stéphane Charbonnier (o Charb,
diretor do semanário satírico desde 2009), Georges Wolinski (“o”
Wolinski), Jean Cabut (Cabu) e Bernard Velhac (Tignous) -, manifestações
de solidariedade marcaram as páginas internacionais nos últimos dias.
Além de vigílias Paris afora, tributos proliferaram internet adentro:
primeiro, je suis Charlie, em homenagem aos cartunistas assassinados; no
paralelo, not in my name, vindo de jovens muçulmanos, criticando as
motivações dos autores do atentado - que teriam ligações com a Al-Qaeda
no Iêmen.
Difícil dizer quem riu por último. Lembrada como uma revista
provocativa, satírica, “subversiva”, anticlerical e às vezes
antirreligiosa, Charlie Hebdo ironicamente foi quase “sacralizada” como
símbolo da liberdade de imprensa. Ironicamente, a última charge
rabiscada por Charb trazia um jihadista e a provocação: “França segue
sem atentados. Atenção, esperemos até o fim de janeiro para desejar
feliz ano-novo”. Ironicamente, Ahmed Merabet, o policial executado por
terroristas na Rue Nicolas Appert, era muçulmano, detalhe que evocou nas
mídias digitais as palavras atribuídas a Voltaire: “Posso não concordar
com uma só palavra sua, mas defenderei até a morte seu direito de
dizê-la”. Ironicamente, saiu pela culatra a tentativa de silenciar um
semanário polêmico, que se tornou alvo da fúria religiosa por publicar
charges de Maomé: dos 60 mil habituais, a próxima edição saltou para 1
milhão de exemplares, graças a uma vaquinha milionária feita por Le
Monde, Radio France, The Guardian, entre outros. Ironicamente, no dia 7
era lançado Soumission, controverso romance do escritor francês Michel
Houellebecq, que retrata uma França transformada num Estado islâmico
após a vitória de um novo partido em 2022 - muitos críticos consideraram
o livro islamofóbico.
Entre tantas ironias, Michael Löwy destaca outra: o atentado
contra um semanário de esquerda (lembrado por traços satíricos, mas
progressistas, libertários e democráticos, herdeiros da esquerda
francesa, hostis a extremismos) “instrumentalizado” a ponto de favorecer
a extrema direita, acirrando ainda mais campanhas discriminatórias e
islamofóbicas. “São dois males. Por um lado, um crime contra a liberdade
de imprensa, de fundo fundamentalista religioso. Por outro, uma
ultradireita a manipulá-lo. Muito foi dito a respeito do atentado, mas
acredito que o importante a destacar é que se trata de uma revista de
esquerda, num contexto de direitização europeia muito forte”, critica.
Diretor do Centre d’Études Interdisciplinaires des Faits
Religieux (CEIFR) na École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS) e diretor emérito de pesquisas do Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS), o sociólogo franco-brasileiro conversou
com o Aliás na quinta-feira. Instalado no 13º arrondissement, Löwy
lamentou profundamente as mortes. O intelectual lia episodicamente o
semanário, mas não raro encontrava suas caricaturas reimpressas noutras
publicações, folheando livros e folhetins trotskistas - e conhecia
pessoalmente Charb, que ilustrou o livro Marx, Manual de Instruções
(Boitempo, 2013), de seu amigo Daniel Bensaïd, com quem assinou
Marxismo, Modernidade e Utopia (2000).
Autor ainda de Walter Benjamin: Aviso de Incêndio (2005) e
Lucien Goldmann ou a Dialética da Totalidade (2009), Löwy considera o
momento perigoso, polarizado por extremos, ideológicos e religiosos: “É
uma armadilha”. Sua impressão pessoal: “Um clima de tristeza profunda e
de indignação”. Sua palavra final? “Infâmia”.
Prof. Löwy, pela primeira vez um atentado à redação de
Charlie Hebdo foi levado às últimas consequências, provocando 12
mortes. Como interpretar o que aconteceu?
Neste momento, só uma palavra me vem à mente para descrever o
que aconteceu: infâmia. Foi um crime odioso, contra a liberdade
artística, a liberdade de imprensa, a liberdade de pensamento. Para mim
foi tanto mais odioso, pois as vítimas eram artistas e jornalistas
conhecidos na esquerda francesa, extremamente antirracistas,
antifascistas, anticolonialistas. Minha última lembrança, que agora me
volta à memória, é a recente participação desses cartunistas num álbum
em homenagem aos argelinos anticolonialistas assassinados pela polícia
francesa na década de 1960 (no dia 17 de outubro de 1961, uma
manifestação pacífica se tornou palco de um massacre brutal de mais de
200 argelinos na capital francesa). Por isso, considero especialmente
“infame” e revoltante que eles tenham se tornado alvo desse atentado,
que levou a intolerância religiosa às últimas consequências, absurda e
irracionalmente. O crime é absurdo, mas é igualmente absurdo atribuir a
responsabilidade a milhões de muçulmanos, que vivem sua religião
pacífica e tranquilamente. É uma armadilha - e precisamos lutar para que
o mundo não caia nela. Se o presente nos indigna, o futuro nos preocupa.
A mídia internacional focou a questão a partir de duas
perspectivas principais: a liberdade de expressão e o fundamentalismo
religioso. Muito se lembrou o caráter satírico de Charlie Hebdo, famoso
por críticas a diversas religiões - não só a islâmica. Entretanto, eu
queria abordar o caráter político da revista. O que marcava a linha da
publicação?
Era um periódico muito lido, principalmente por jovens. É um
paradoxo, uma ironia essa agressão acontecer justamente contra
personalidades reconhecidamente da esquerda francesa, contrárias ao
conservadorismo clerical, ao imperialismo, ao fascismo, ao
neocolonialismo. Aliás, o último número da revista trazia uma caricatura
do escritor Michel Houellebecq, que lançou um livro por muitos
considerado islamofóbico. Noutra página, interna, diversas caricaturas
contra a religião católica. Enfim, não era algo contra o islamismo. Eles
eram anticlericais, ateístas e às vezes antirreligiosos. Conheci
pessoalmente alguns desses artistas. Charb, por exemplo, ilustrou um
livro de Daniel Bensaïd sobre Marx. Sim, Charb tinha proximidade com a
esquerda francesa radical. Agora, a esquerda também foi muito presente,
mobilizando diversas manifestações (Marine Le Pen não foi convidada para
a marcha in memoriam marcada para este domingo).
O atentado não favorece o discurso de ódio da extrema direita, que era tão criticada pela revista?
Sim, mas é preciso considerar o momento francês, em que uma
onda islamofóbica está amalgamando os muçulmanos, misturando os
muçulmanos pacíficos e os fanáticos integristas (uma minoria) e os
jihadistas (uma minoria ainda menor). Nesse amálgama, “os” muçulmanos
todos se tornam acusados da autoria de crimes cometidos por terroristas.
É uma campanha antimuçulmana e extremamente racista, com alta
repercussão na mídia, com impulso de certos intelectuais, jornalistas e
políticos - a Frente Nacional de Marine Le Pen é o maior exemplo. Isso
tem estimulado atitudes xenófobas, atitudes negativas contra imigrantes
africanos, asiáticos, islâmicos, enfim, os “não europeus”. Quer dizer,
vale para alguns europeus: há seculos na Europa, os ciganos também são
alvo de discriminação. Manifestações islamofóbicas também marcaram os
últimos tempos, com atividades politicamente racistas. No fim, o
atentado ao Charlie Hebdo favorece a campanha dessa ala fascista. O
crime está sendo instrumentalizado para tal. São duas catástrofes. Por
um lado, um crime contra a liberdade de imprensa, de fundo
fundamentalista religioso. Por outro, uma ultradireita a manipulá-lo.
Muito foi dito a respeito do atentado, mas acredito que o importante a
destacar é que se trata de uma revista de esquerda, num contexto de
direitização europeia muito forte.
Diversas vozes lamentaram que a liberdade de
expressão, um dos valores máximos da civilização ocidental, foi ferida
‘barbaramente’. Volta o discurso d'O Choque de Civilizações, tão
martelado após o 11 de Setembro?
Justamente. Há quem se interesse por defender a tese do “choque
de civilizações” (do teórico americano Samuel P. Huntington, para quem,
pós-Guerra Fria, a cultura, as identidades culturais e religiosas
seriam o principal gatilho para conflitos no mundo contemporâneo - e não
a política ou a economia). Dois polos tentam promover a ideia do
choque. Por um lado, radicais e fundamentalistas do Oriente. Por outro,
conservadores e reacionários do Ocidente. Os dois têm interesse em
acirrar uma guerra de “civilizações”, não só porque corresponde à sua
ideologia fascista, mas porque o ódio entre etnias e religiões é o
terreno que lhes permite se desenvolver. Há uma espécie de cumplicidade
entre eles, o reforço de um conduz ao reforço do outro, numa espiral
infernal de intolerância e guerra. Só uma aliança internacionalista de
todas as cores, etnias e religiões contra um inimigo comum - o sistema
capitalista - pode neutralizar esse processo monstruoso. É importante
que as forças progressistas, libertárias e democráticas se oponham a
isso, lembrando que o grande confronto de nosso tempo não é entre Islã e
Ocidente. O real conflito de nossa época é entre progresso e reação,
exploradores e explorados, capital e trabalho.
Religiões têm tabus, às vezes muito fortes. Não
respeitar esses tabus pode enfurecer quem neles insiste. Respeitar pode
conflitar com outros valores, como a liberdade de expressão. Como
navegar entre essas pressões contraditórias?
Realmente é uma contradição muito complicada, muito complexa.
Em última análise, acredito que a liberdade de imprensa e a liberdade de
expressão devam ser considerados princípios fundamentais. Entretanto,
há formas de expressão que realmente resvalam na incitação ao ódio e
deve haver leis contra elas. Na França, há. Quer dizer, é crime
estimular o ódio contra um grupo religioso ou étnico ou o que seja. Não
era o que fazia Charlie Hebdo - uma coisa é incitar o ódio contra
religiões, outra coisa é ironizá-las satiricamente. Além disso, as
religiões são diferentes. Dentro do judaísmo, do islamismo, do
cristianismo há correntes regressivas, reacionárias e intolerantes, que
inclusive culminam em crimes. Mas há, sim, correntes progressistas e
democráticas - em certos casos, mesmo revolucionárias.
Salman Rushdie, também ameaçado pelos islamitas,
disse: ‘As religiões, como todas as outras ideias, merecem críticas,
sátiras e, sim, nossa falta de respeito e de medo’.
Concorda com o autor d'Os Versos Satânicos?
A sátira faz parte da natureza de uma imprensa livre,
irreverente, independente. E isso deve valer para qualquer tema.
Qualquer um deve poder ser satirizado - o rei, a presidente, o profeta.
Charlie Hebdo é herdeiro de uma velha tradição da esquerda francesa
anticlerical, antirreligiosa, ateísta. Pessoalmente, confesso que eu não
me inquieto nesse combate às religiões. Talvez por minha experiência
como brasileiro, vejo a religião com olhos um pouco diferentes dos
franceses. De qualquer maneira, é preciso dizer: não é essa a questão.
link:aqui