Uma tentativa de entender o
fenómeno do "Estado Islâmico".
Mais uma. Mais uma vez, o
presidente dos Estados Unidos mobiliza a coligação dos dispostos a entrar em
campo contra
“o mal" (Spiegel Online).
Desta vez é o grupo terrorista "Estado Islâmico" (EI) que deve ser derrotado
numa campanha de três anos, em cuja sua primeira fase a Força Aérea dos EUA vai
estender os ataques aéreos à Síria. Ao mesmo tempo, a Casa Branca exige ao
Congresso a bagatela de 500 milhões de dólares, a fim de "treinar e armar
rebeldes sírios moderados",
como informou a Reuters.
Esta abordagem faz lembrar uma
fase anterior da guerra civil síria, quando
os serviços secretos ocidentais,
em comunhão íntima com com os despotismos fundamentalistas do golfo, como a
Arábia Saudita, apoiaram a oposição síria,
apoio a partir do qual surgiu o Estado Islâmico, além de uma variedade de outras
milícias islamistas. E naturalmente que dentro do movimento de oposição síria
dominam justamente facções fundamentalistas que estão em concorrência com o
Estado Islâmico e lutam contra ele.
Um dos principais grupos
rebeldes sírios, por exemplo, é a aliança fundamentalista Frente Islâmica, cujo
líder
Hassan Abboud foi morto
recentemente num atentado supostamente realizado pelo EI.
A Frente Islâmica representa o maior contingente dentro dos rebeldes sírios – e
tem
contactos estreitos com o grupo
jihadista al-Nusra.
É esta mesma filial síria da
Al-Qaeda, o Jabhat al-Nusra, que vem tentando, depois de uma pesada
derrota contra o EI,
distanciar-se do Estado Islâmico
através da libertação de reféns norte-americanos. Consequentemente, esses
rebeldes "moderados" de futuro vão
completar a sua formação militar
no território da democracia de referência que é a Arábia Saudita.
Falando claramente: O Ocidente
está mais uma vez em vias de armar islamistas para combater islamistas – e, ao
mesmo tempo, prosseguir os seus interesses geopolíticos, que no caso da Síria
visam o derrube do regime de Assad. Coloca-se apenas a questão de saber que
grupo jihadista, que agora ainda faz parte da "oposição moderada", ficará mais
uma vez fora de controlo dentro de alguns anos e terá de ser eliminado por meio
duma intervenção militar. O Ocidente, na sua luta de moinhos de vento contra o
fundamentalismo islâmico, é como o célebre aprendiz de feiticeiro, que já não se
consegue livrar dos espíritos por ele convocados para fins de instrumentalização
nesta região abalada pela falência estatal.
Não é só a geopolítica do
Ocidente que dá força aos jihadistas. Países ocidentais também servem como um
importante campo de recrutamento para o EI. Cerca de 3.000 jihadistas da Europa
Ocidental, EUA, Canadá e Austrália combatem nas fileiras do Estado Islâmico
segundo a imprensa americana.
Dos cerca de 31.500 combatentes que se terão
juntado a esta estrutura
terrorista,
cerca de um terço terá sido recrutado no exterior – principalmente por meio de
uma
campanha de recrutamento
sofisticada.
Um bombista suicida do EI
aprisionado nas regiões autónomas curdas da Síria
relatou perante representantes
dos média um
fluxo constante de turistas jihadistas de todo o mundo que desejam juntar-se aos
grupos de combate deste exército terrorista:
"Há nacionalidades de todo o
mundo. Entre eles há muitos britânicos. Vêm de países asiáticos, da Europa e da
América. Vêm para aqui de toda a parte."
O EI, portanto, representa uma
espécie de subproduto da globalização capitalista em crise. Não se trata aqui de
uma insurgência nativa, tradicionalista e surgida das associações de clãs e
"tribos" regionais, mas de um exército de ocupação, globalizado ao mais alto
grau, que se constituíu nas regiões em colapso sócio-económico e político da
Mesopotâmia. Portanto, o Estado Islâmico massacra não só os "infiéis", mas
também os sunitas que se atrevem a opor-se ao domínio estrangeiro. Quase 700
membros de uma associação de clãs sunita no leste da Síria foram
literalmente abatidos pelo EI em
meados de Agosto,
depois de os seus líderes tribais terem recusado fidelidade aos jihadistas.
Mas qual é a natureza do
"domínio estrangeiro" que – pelo menos em sua liderança – a tropa jihadista, em
grande parte recém-chegada, procura construir nesta região em colapso? O que se
materializou na Mesopotâmia na forma do EI, é uma caricatura furiosa,
um negativo da forma mais
eficiente de organização
gerada pelo capitalismo tardio: as grandes empresas transnacionais. O Estado
Islâmico é uma altamente eficiente "máquina
de fazer dinheiro"
(Bloomberg), que conseguiu produzir um "fluxo de entradas de caixa" permanente
pela receita de contrabando de petróleo e de outros ramos de negócio do crime
organizado. "O Estado Islâmico é, provavelmente, o grupo terrorista mais rico
que já conheci", disse um analista americano à Bloomberg.
Esta empresa terrorista, que
publica regularmente "Relatórios
e Contas", tem
uma estrutura de comando interno altamente eficiente e uma
máquina militar muito eficaz,
dispõe de um departamento de relações públicas profissional, que se dedica com
muito sucesso a recrutar novos membros – e pratica o Lean Management dos
territórios conquistados, cuja
administração é deixada aos
dignitários locais,
desde que jurem fidelidade e prestem vassalagem ao “Califado”. As ramificações
internacionais desta "máquina de fazer dinheiro" jihadista não se limitam à sua
estrutura de associação, o financiamento inicial do EI foi realizado com o
apoio financeiro internacional
dos patrocinadores ricos dos Estados do Golfo.
A principal diferença entre a
grande empresa global e o Estado Islâmico é que a acumulação de capital é o fim
em si mesmo de todas as actividades das grandes empresas transnacionais. E todas
as devastações e destruições que o capitalismo tardio faz às pessoas e ao meio
ambiente são apenas subprodutos da busca cega e sem limites da valorização do
capital, em que consiste afinal o núcleo irracional do modo de produção
capitalista. Para o Estado Islâmico, no entanto, a acumulação de capital
representa apenas um meio para outro fim irracional, que consiste num trabalho
de destruição e aniquilação o mais eficiente possível. Não é senão isso que
apresentam os "Relatórios
e Contas" do
EI, que são listagens das operações terroristas de sucesso desta "empresa".
Portanto, a tendência implícita para a auto-destruição inerente ao capitalismo
no caso do EI vem abertamente à luz do dia, é tornada explícita.
Assim, o Estado Islâmico usa as
formas mais eficazes e os métodos de organização mais racionais, produzidos pelo
capitalismo tardio atormentado pela crise, para buscar um objetivo louco e
alucinado: a aniquilação literal de todos os infiéis. Aqui já se torna claro um
paralelo com o até agora maior colapso da civilização da história mundial, o
trabalho de aniquilação do nacional-socialismo alemão. Também os nazis fizeram
uso das formas e métodos de organização então mais modernos para criar como que
uma fábrica fordista de morte em Auschwitz, cujo "produto", produzido como numa
linha de montagem, era o fumo de corpos humanos queimados que subia dos
crematórios. Assim como os nazis, em delírio racista, construíram uma eficiente
fábrica negativa de destruição humana, para "limpar" o mundo de judeus, ciganos,
sub-humanos eslavos ou bolcheviques, também o EI se constitui sob a forma de
organização de uma grande empresa negativa, para prosseguir o seu objetivo louco
de um Califado mundial religiosamente puro. A racionalidade instrumental e a
racionalidade economicista do capitalismo ocidental, que é continuamente
melhorada com o propósito de uma acumulação mais eficiente de capital, viram
assim em barbárie nua e crua nas mãos do EI.
Na grande empresa terrorista
estabelecida pelo Estado Islâmico reflecte-se, assim, a irracionalidade em crise
da socialização capitalista. Entretanto parecem estar a chegar os primeiros
franchisings ao mercado do terror globalizado, tentando copiar a receita de
sucesso dos massacres do EI. Está em curso uma segunda onda de globalização da
barbárie jihadista. A "crescente popularidade" do EI no Sudeste Asiático poderia
arrastar consigo ameaças de segurança a longo prazo, alertou a
AlJazira
em meados de Julho. Na verdade, o grupo terrorista das Filipinas
Abu Sayyaf entrou recentemente
para o Estado Islâmico.
Os jihadistas da África Ocidental de Boko Haram, que segundo a Neewsweek
controlam um "território do tamanho da Irlanda", também tentam
imitar o procedimento do EI
com a declaração do seu "Califado" africano.
Pelo que concorrem os grupos
terroristas no mercado global do terror? Além das contribuições financeiras dos
patrocinadores ricos dos despotismos da Península Arábica, é sobretudo pela
mercadoria que o capitalismo tardio deita fora como supérflua: seres humanos.
Muitos dos ataques e acções espetaculares do EI – como por exemplo a recente
ocupação da barragem perto de Mosul – visavam precisamente um efeito
propagandístico, com o qual se pretende acelerar o recrutamento de novo material
humano. Com sucesso,
como mostra um estudo nos EUA.
Assim, em particular os talibãs afegãos, que estão sob enorme pressão militar,
sofreram um êxodo amargo de combatentes estrangeiros que agora rompem em
direcção à Síria e ao Iraque
para se juntarem aos jihadistas
locais:
"Lutadores do Uzbequistão, da
China e da Chechénia têm poucas chances de voltar aos seus países de origem, mas
sabem que são bem-vindos na Síria e no Iraque, onde Jabhat al-Nusra e o Estado
Islâmico lutam contra o presidente sírio Assad, um contra o outro, e no caso do
Estado Islâmico, contra os curdos, os iraquianos e até contra o Irão".
É a admissão do fracasso
completo da brutal "guerra contra o terror" ocidental, que acabou por ser
realizada utilizando métodos terroristas. Após cerca de 13 anos, surgiu uma
camada global de dezenas de milhares de guerreiros religiosos sem pátria, cuja
pátria é a "Guerra Santa". Em contraste com a rede global da Al-Qaeda, esta nova
geração de jihadistas está tentando conquistar e manter territórios nas áreas em
colapso do mercado mundial, para realizar os seus delírios de um Califado
global.
O Estado Islâmico, a nadar em
dinheiro, pode recorrer à multidão de jovens economicamente "supérfluos" que na
periferia do sistema capitalista mundial – e, cada vez mais, nos centros – levam
uma vida marginal e miserável. Um soldo de
poucas centenas de dólares por
mês e a
esperança de um paraíso no Além são suficientes em muitos casos para motivar
essa gente sem perspectivas, que vegeta no inferno de Estados e sociedades
falidos, para se juntarem às fileiras do EI.
Mas o que levou milhares de
muçulmanos do Ocidente a juntarem-se às redes terroristas jihadistas? Um estudo
do Instituto de Defesa da Constituição, analisou os currículos de cerca de 400
islamistas que se deslocaram da Alemanha para a "Guerra Santa", chega à
conclusão de que
os muçulmanos que se juntaram
aos jihadistas eram em grande parte marginalizados.
Apenas 12 por cento destes guerreiros religiosos tinham um emprego regular, a
esmagadora maioria dos quais no sector de baixos salários. Apenas seis por cento
tinham terminado um curso profissional e dois por cento uma licenciatura. Cerca
de um terço desses islamistas já antes tinha entrado em conflito com a lei,
principalmente em conexão com a pequena criminalidade típica de gueto. Na sua
maioria os que deixaram o país eram membros da camada mais baixa, que levavam
uma vida em condições precárias nas margens da legalidade nos guetos informais
de estrangeiros na RFA – até cairem no meio salafista. É significativo que
apenas em 23 por cento dos casos os pais desses guerreiros religiosos eram
praticantes de um Islão fundamentalista. Um bom exemplo de uma carreira, da
pequena criminalidade de miúdo de gueto a guerreiro religioso, é o caso do
rapper Denis Cuspert, que entretanto
terá ascendido ao círculo
restrito da liderança do EI.
Assim não são de modo nenhum os
muçulmanos agarrados à tradição que se juntam à guerra terrorista, como disse
também Tarfa Baghajati, presidente da Iniciativa dos Austríacos/as
Muçulmanos/as, em entrevista à Rádio Free Europe. Há uma série de factores a que
se deve o sucesso do recrutamento do EI na Europa, diz Baghajati:
"De destacar, em primeiro lugar,
que os jovens que se juntam a estes grupos não tinham anteriormente laços fortes
com o Islão nem com outros muçulmanos. Nunca tinham visitado mesquitas e alguns
deles nem sequer sabiam rezar. É por isso que a sua experiência religiosa tem
uma carga emocional muito forte... O segundo factor é que esses jovens não se
vêem como parte da sociedade ocidental. Eles não foram capazes se envolver
positivamente nela. Além disso há também a discriminação e indirectamente a
perseguição contra o Islão e contra os muçulmanos, subsumidas no conceito de
islamofobia".
Os muçulmanos recrutados pelo EI
nos países do Ocidente não se vêem como parte dessas sociedades, porque não o
são, porque eles são
excluídos pela sociedade do
trabalho capitalista em crise
através da marginalização económica e do racismo crescente. O aumento do racismo
e da extrema-direita causados pela crise por toda a Europa, que se manifesta nos
sucessos eleitorais da AfD alemã, do UKIP britânico ou da Frente Nacional
francesa, de facto visa em última análise a exclusão económica dos grupos que
não são considerados parte da "comunidade nacional" ("empregos primeiro para
quem é alemão"). A extrema-direita, que promove a exclusão de determinados
grupos da população, representa, portanto, uma arma ideológica na luta da
concorrência em crescimento devido à crise. Sem surpresa, portanto, a nível
europeu o EI conseguiu recrutar
o maior contingente de
combatentes em França,
o país dos banlieues e da Frente Nacional atormentado pela crise.
A viragem para o extremismo
islâmico entre os muçulmanos europeus representa, assim, um desenvolvimento
paralelo ao aumento provocado pela crise da extrema-direita na Europa. Jihadismo
militante e terrorista é, em última análise, uma modificação religiosamente
dissimulada da extrema-direita, uma espécie de fascismo clerical pós-moderno e
globalizado. Enquanto no Ocidente a identidade nacional serve de terreno fértil
para o crescimento das ideologias fascistas e de extrema-direita, no círculo
cultural árabe a religião funciona como esse mesmo terreno que produz fantasias
de aniquilamento. A categoria da raça, que incendiou a fúria destrutiva fascista
na Europa, foi substituída pela categoria dos "infiéis" no jihadismo
clerical-fascista.
Tanto o islamismo como a
extrema-direita europeia representam, além disso, um extremismo do “centro”, que
leva ao extremo de uma visão do
mundo fechada as ideias e opiniões ideológicas dominantes
na sociedade. No caso do Islão é a religião que ocupa uma posição hegemónica no
"centro" das sociedades árabes; no caso da extrema-direita, o que é levado ao
extremo é a identidade nacional, há muito transmutada na ideia da localização do
investimento económico. Ambas as ideologias também podem ser descritas como
pós-modernas, porque representam um escape ideal da crise e do fracasso da
modernidade capitalista.
O "extremismo do centro"
islamista em última instância também pode ser visto como uma variação do
fascismo clerical. O fascismo – seja o nacional-socialismo alemão, o fascismo
católico de Franco em Espanha, ou a ditadura fascista de Pinochet no Chile –
representa uma forma de crise da dominação capitalista abertamente terrorista.
As tendências de extrema-direita e fascistas ganham sempre impulso quando a
sociedade capitalista burguesa-liberal entra numa crise económica ou política
que ameaça a continuação de todo o sistema, ou até mesmo se apenas parece
ameaçar (a crise económica mundial em 1929, a vitória da Frente Popular em 1936
na Espanha ou a vitória eleitoral de Allende em 1970 no Chile).
Seja nas grandes cidades da
Europa ou nas regiões em colapso da Mesopotâmia – o processo de constituição da
extrema-direita, tanto racista como clerical, desenvolve-se em trajectórias
muito semelhantes. Em reacção aos choques da crise, à dissolução da ordem social
existente, começa muitas vezes uma produção reforçada de identidade nas
sociedades em causa. Se tudo se dissolve e entra em desordem, os indivíduos
predispostos à autoridade procuram um apoio – e só o conseguem encontrar na
identidade, no que aparentam ser: alemão, francês, sunita, xiita. O medo do
futuro e as rupturas incompreendidas levam à saudade de anteriores estados da
sociedade idilicamente imaginados; seja o Estado-nação racialmente puro ou o
Califado medieval.
A grande auto-ilusão nesta
devoção à política de identidade, é claro, está em que essas identidades já são
constituídas apenas em interação com a sociedade capitalista em crise e,
portanto, são apenas expressão identitária do processo de crise do capitalismo
tardio. O que é comumente entendido por "identidade alemã", na Alemanha S.A.
contemporânea, tem muito pouco a ver com a Alemanha do princípio do Império e
muito menos com a da Assembleia de Paulskirche [1848/1849, N.T.]. O mesmo se
aplica ao Islão, que muitas vezes era muito mais tolerante, especialmente no
início da Idade Média, do que gostariam de admitir os actuais combatentes
religiosos e os construtores pós-modernos do Califado. Basta lembrar aqui, a
título de exemplo, que os judeus da Espanha, especialmente na fase inicial do
domínio dos mouros (de 711 até à queda do Califado de Córdoba em 1031) gozavam
de ampla liberdade religiosa e segurança jurídica; só foram expulsos pelos Reis
Católicos após a reconquista definitiva en 1492.
A presente viragem induzida pela
crise para a identidade nacional ou religiosa, que é vista alucinadamente como
um continuum histórico e imutável, está quase sempre associada com a
personalidade autoritariamente estruturada das pessoas em causa. O islamista
pós-moderno submete-se à interpretação rígida do Alcorão de modo tão cego como
os partidos de direita pós-modernos aplicam as
sagradas leis do mercado e do
culto do capital
(na forma de uma nação reduzida à localização do investimento económico). Em
ambos os casos, a submissão leva ao ódio a todos aqueles que parecem não aplicar
isto do mesmo modo (infiéis, "parasitas sociais", desempregados etc).
Da consonância que caracteriza
tanto o facismo europeu como o islâmico, de submissão e de ódio, resulta que
esta submissão é comprada com a renúncia à pulsão. Os portadores destas
ideologias sofrem secretamente, sob as diretrizes e mandamentos aberrantes
ditados pelo serviço do fetiche, no Corão e no capital, situação em que a
personalidade autoritariamente estruturada exclui uma rebelião contra as fontes
do sofrimento. É por isso que a raiva assim reprimida é dirigida contra inimigos
externos imaginários. Também é inerente a ambas as ideologias uma ilusão de
pureza típica da fixação anal, que no caso da extrema-direita se aplica à defesa
contra os "parasitas" da pureza do povo, da nação, ou da localização do
investimento económico, enquanto no islamismo é distorcida pela mania da
preservação do culto religioso.
As disposições autoritárias que
impulsionam a extrema-direita, tanto árabe como europeia, são adquiridas logo na
primeira infância na família patriarcal ou de classe média, designada pelo
psicanalista Wilhelm Reich. no seu estudo
Psicologia de massas do
fascismo,
publicado em
1933, como a "célula embrionária do Estado autoritário". O Estado e a igreja
continuam a estruturação autoritária do indivíduo iniciada na familia
patriarcal-autoritária. Central aqui é a repressão sexual, como diz Reich:
"A estruturação autoritária do
ser humano... é feita centralmente pela ancoragem de inibição sexual e de medo
perante o material vivo das pulsões sexuais. Ou seja... a sexualidade é excluída
das trajetórias naturalmente dadas de satisfação pelo processo de repressão
sexual, assim trilhando caminhos de satisfação substitutiva de vários tipos. Por
exemplo, a agressão natural aumenta para o sadismo brutal".
Estas observações, tendo em
vista o nacional-socialismo alemão, também se aplicam, obviamente, à realidade
da vida de muitas pessoas nos países árabes em crise. Não é só no
tratamento brutal das mulheres
“raptadas” por
combatentes do Estado Islâmico que se expressa o "sadismo brutal" constituído
pela repressão sexual, também os brutais
ataques contra as mulheres
durante o levantamento no Egipto
foram alimentados por essa frustração sexual.
Em parte, o aumento nas últimas
décadas da pressão para o uso do véu em muitas sociedades islâmicas pode ser
atribuído à interação da dinâmica de crise económica e da islamização
relacionada com a crise. O Islão proíbe estritamente o sexo antes do casamento,
mas simultaneamente a crise da sociedade do trabalho capitalista produz no mundo
árabe um exército de jovens economicamente supérfluos, que simplesmente não
podem pagar a fundação de uma família. A repressão sexual ideologicamente
compelida pelo islamismo, portanto, perante o agravamento da crise resulta no
ódio exuberante às mulheres, cuja visão o islamista apenas consegue suportar,
sem ser dominado por sua pulsão sexual degenerada em mero sadismo, sob o véu de
rosto inteiro.
O banimento das mulheres do
espaço público visado pelo islamismo, no entanto, é impulsionado principalmente
por um outro factor, que resulta do falhanço da modernização capitalista desta
região periférica do mercado mundial. A imposição histórica do capitalismo foi
acompanhada pela "dissociação" de todos os domínios da reprodução social que não
podem ser absorvidos no processo de valorização do capital, como a lida da casa
e o trabalho com a família, que foram então atribuídos à esfera do "feminino". O
trabalho com a família e doméstico é até hoje considerado sem valor, uma vez que
não cria valor, não é directamente parte do processo de valorização do capital.
A esfera do trabalho criador de valor, pelo contrário, foi até bem dentro do
século XIX determinada como exclusivamente masculina; o homem "duro" e actuando
racionalmente teve de afirmar-se como ganha-pão no mercado, enquanto à mulher
era atribuída a esfera do privado, do sensual-irracional e do cuidar e tratar.
Esta cisão entre a esfera pública masculina do trabalho criador de valor (assim
como da política, da arte e da ciência) e a esfera privada feminina do trabalho
"sem valor" constituíu a base da discriminação das mulheres nos países
capitalistas, que apenas na primeira metade do século XX conseguiria ser
superada, pelo menos formalmente (o sufrágio feminino).
Na família patriarcal medieval –
que em mais de 90 por cento era de facto uma família de camponeses – também
havia uma divisão de trabalho entre marido e mulher, mas as suas actividades
estavam de igual modo viradas para a satisfação directa das necessidades e não
para a acumulação de capital. As categorias de valor e trabalho abstracto pura e
simplesmente não existiam, pelo que as actividades femininas também não tinham
de ser menorizadas. A demonização da mulher, do feminino sensual, começou na
Europa apenas no início da era moderna, na esteira do colapso da ordem social
feudal medieval e do surgimento dos primeiros começos da economia capitalista;
só esta trouxe consigo a dissociação, monstruosa e incompreendida para as
pessoas daquele tempo, da esfera do privado feminino relativamente ao regime
emergente da valorização do capital. A demonização das mulheres expressou-se na
caça às bruxas, que dominou com mão de ferro a Europa e a América do Norte do
século XVI ao século XVIII e de que foram vítimas dezenas de milhares de
mulheres e meninas. Central em quase todos os processos, que na maioria corriam
em tribunais seculares, era a acusação de que as supostas bruxas teriam
praticado relações sexuais com o diabo, ou com os demónios, a fim de ganharem os
seus "poderes sobrenaturais". E foi justamente a alucinada aplicação destas
forças demoníacas femininas que foi culpada pelo caos em que se encontravam as
sociedades proto-modernas em vias de transformação sistémica.
Não há acusação que coloque hoje
em maior perigo de vida uma mulher no Afeganistão, na Líbia ou na Arábia Saudita
do que a de relações sexuais extraconjugais. A transformação sistémica para o
capitalismo e para o mercado mundial, que levou séculos sangrentos a completar
na Europa, desabou na periferia com a intensidade de um desastre natural,
completou-se em muito menos tempo (algumas décadas), com a concomitante
dissociação dos domínios da vida conotados com o feminino e sem acesso à
valorização do capital – e teve consequentemente uma pressão ideológica para a
legitimidade muito mais elevada, presssão perante a qual as estruturas
patriarcais tradicionais tiveram de ser postas em concordância com as "novas"
formas capitalistas de socialização.
A grande diferença histórica
entre a Europa e a Arábia é que
a modernização capitalista
falhou entre o Hindu Kush e as Montanhas do Atlas.
Nestes países atingidos pela crise, que muitas vezes já estão afectados pelo
dsmoronamento do Estado, já não se vai estabelecer qualquer sociedade
capitalista do trabalho funcional, capaz de promover a secularização dessas
sociedades. O fracasso da modernização e a dinâmica de crise que com ele se
espalha levam assim a um endurecimento da ideologia de crise islamista e do
autêntico tabu do feminino: Como se a ocultação total e o banimento total da
mulher da vida pública permitissem aos homens, apesar da crise global do
capital, continuarem a operar como sujeitos autocráticos do mercado.
No presente bárbaro da ideologia
e da prática islamistas, o ocidente liberal capitalista encontra, portanto, os
ecos do seu passado sangrento. Mais ainda: o núcleo bárbaro de socialização
capitalista vem à tona no islamismo extremista tal como na extrema-direita.
Reflectida nos horrores do Estado Islâmico, a comunidade ocidental do valor
vê-se ao espelho. Nada poderia ser mais equivocado do que acreditar piamente no
"choque de civilizações" proclamado por ambos os lados extremistas. A cultura
ocidental não é o pólo positivo oposto à loucura jihadista. Na actual crise
sistémica, tanto a extrema-direita como o islamismo são destilados pelos centros
ocidentais liberais do sistema capitalista mundial.
Obviamente, como exposto no
início, no plano geopolítico o apoio político, financeiro e militar ao jihadismo
desde os anos 80 do século XX – quando os fundamentalistas islamistas entraram
na Guerra Santa contra o comunismo ateu no Afeganistão, com o apoio do Ocidente
– faz parte da geopolítica do Ocidente. Um certo Osama Bin Laden pôde fazer a
sua primeira experiência militar sob tutela da CIA no Afeganistão. A Arábia
Saudita, o regime fundamentalista mais brutal do mundo, é um aliado próximo do
Ocidente, armado ao mais alto nível com fornecimentos de armas de milhares de
milhões de dólares.
Mas é sobretudo a crise
económica que emana dos centros e devasta a periferia que em primeiro lugar cria
as hostes de jovens economicamente supérfluos que, na falta de perspectivas,
estão prontos a juntar-se ao culto da morte dos jihadistas. A sobrevivência
árdua no inferno das economias em colapso do Iraque, da Síria ou do Afeganistão
é tão insuportável que eles estão dispostos a trocá-la pela perspectiva ilusória
de um paraíso no outro mundo.
Finalmente, os reflexos
ideológicos e identitários deste processo de crise são muito semelhantes tanto
no Ocidente como no Oriente. Há um retorno autoritário à identidade religiosa ou
nacional, que impulsiona até um extremo ideológico as ideias nacionais ou
religiosas existentes e leva a uma mobilização militante contra inimigos
externos ou dissidentes internos. O islamismo é assim – tal como a
extrema-direita – um produto da crise mundial do capital.
Tomasz Konicz
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