14 outubro 2016

SOBRE RELACIONAMENTOS ABUSIVOS - Daniele Lima


"Quando Sartre estava interessado em uma jovem aluna de Beauvoir, ele escreveu: "fazê-la me amar seria dominá-la, entrar no mundo dela e dominá-la de acordo com os meus próprios valores (...) se conseguisse fazê-la me amar, eu ficaria seguro de mim".
As relações abusivas são relações de poder, que são desiguais per se. Nelas, o que importa não é o afeto, mas a dominação do outro. No caso de Sartre, o objetivo era unicamente alimentar sua vaidade.
Para dominar, é preciso enfraquecer o outro (e, em uma sociedade patriarcal, o outro é sempre mulher). Esse processo de enfraquecimento acontece em duas vias que se imbricam e se reforçam:
a) internamente: a violência psicológica é usada para marcar o outro dentro de si mesmo, fazê-lo sentir diminuído, dependente, incapaz, louco. O indivíduo tem sua auto-imagem constantemente deformada. Por exemplo, dizer: "meus amigos te acham [um adjetivo depreciativo]". Aquilo que começa com um pequeno círculo de pessoas, logo passa a ser algo maior: "todo mundo te acha [adjetivo depreciativo]". Obviamente, essa violência psicológica faz com que, como o personagem de Pirandello, Vintagelo Morcada, se perca o referencial de si mesmo. O objetivo do abusador é deformar e determinar a autoimagem daquele que é relegado à condição de outro. Enfraquecido, ou melhor, enfraquecida, sem reconhecer quem é, se perdendo de si mesma, o processo de dominação se estabelece naquilo que há de mais fundo e mais delicado: outra verdade se delimita no espelho;
b) externamente: o abusador tanto investe em cortar os laços afetivos com aqueles que podem fazer com que uma mulher se lembre de quem é, com aqueles que possam oferecer outro olhar, outros espelhos, como a família, os amigos. Por outro lado, tenta estabelecer fazer com que aqueles que estão externos ao relacionamento percebam a mulher como exagerada, louca, histérica, para que aquilo que ela diz seja invalidado. Assim, os pedidos de ajuda são constantemente silenciados.
É uma tentativa de controlar tanto a imagem que uma mulher tem de si mesma, como controlar a imagem que os outros têm dela. O esfacelamento da autoimagem faz com que nos sintamos tão inferiores (e aqui eu me coloco), que qualquer pequena atenção ou afeto do abusador parece um enorme privilégio.
Quebrar esse espelho internalizado dói, até porque, com todos os laços (internos e externos) desfeitos, parece que a única pessoa que resta é o abusador. Esse é o círculo que precisa ser rompido.
Sartre dizia que “adorava mulheres afogadas”, trêmulas e hesitantes. Para sair da água, pode-se aprender a nadar e/ou segurar outras mãos.
Não são poucas as mãos nas margens."