"Desde
que comecei a escrever na internet, mantenho um arquivo word chamado
"Observatório da morte das palavras", em que vou apontando as mudanças
na pragmática de certos termos. Por pragmática aqui me refiro ao ramo da
Linguística que estuda os usos das palavras; não o seu sentido -- isso
seria tarefa da Semântica --, nem nenhum de seus atributos formais
(Morfologia, Fonologia etc.), mas a evolução do seu uso.
É
impressionante revisitar esse arquivo e ver quanta coisa mudou em 10
anos. Palavras morrem por sobreuso e também pelo abandono. Podem se
transformar em mortas vivas, caso em que elas continuam sendo usadas,
mas vão perdendo sua força. Para um ativista, isso é matéria essencial: a
mesma posição política, informada pelo mesmo grau de pesquisa e
vivência, o mesmo respeito pelo interlocutor, a mesma polidez, pode
produzir dois efeitos totalmente diferentes se enunciada com dois grupos
de palavras, um que ainda mantém sua força e outro composto por
palavras-zumbis. No momento, ando notando a curiosa zumbificação que
acomete duas palavras, "protagonismo" e "objetificação".
Mas
nada se compara ao aconteceu, nestes 10 anos, com as palavras
"latifúndio" e "latifundiário". Elas desapareceram dos dialetos da
língua portuguesa falados no Brasil. Até as décadas de 1980 e 1990, eram
termos comuns e correntes para designar uma determinada realidade. Essa
realidade ainda existe, mas as palavras sumiram. O latifúndio continua
lá? Sim. A Reforma Agrária foi feita? Não. Mas já não falamos de
latifundiários, e sim de "produtores" ou, um pouco menos ruim,
"ruralistas".
Esta foi uma vitória considerável do latifúndio.
"Produtor" é um escárnio porque, como sabemos, o latifundiário não
produz nada (mesmo nos casos em que o latifúndio é produtivo); quem
produz são os trabalhadores que ele emprega. "Ruralista" apaga
completamente a origem de classe do latifundiário, de tal maneira que
mesmo pessoas de camadas médias ou pobres que vivem no campo passam a
sentir-se atacadas quando os "ruralistas" são criticados. Observo isso
em pessoas próximas a mim, que não são, de forma nenhuma, grandes
proprietários de terra, mas que se identificam com o termo "ruralista",
com a cultura que ele designa e passam, portanto, a fazer parte de um
bloco político que defende interesses que não são necessariamente os
delas.
Nesta última década, não só desapareceu a possibilidade
da Reforma Agrária. Desapareceu a palavra que designava a horrenda
realidade que ela deveria corrigir. Embora a realidade continue lá, do
mesmo jeito."