"Depois de muito tempo (perdido), depois de todos, depois do dilúvio, assisto Her, de Spike Jonze. Pausa. O nome do diretor e roteirista precipita a vontade de passar o resto da página digitando adjetivos elogiosos e mergulhos na retórica grandiloquente. Como chegar no cerne do que o filme-tratado nos revela? E nos assusta, e nos conforta, e nos excita e nos transtorna? Já são tantos textos e leituras feitas por muitos, no mundo todo, que nem cabe aqui texto. Aliás, nem cabe tentar explicar nada sobre Her. É um delírio-sonho-matéria, é um recorte do possível mais palpável que o real. A sociedade será assim? Falaremos sós, porém com amores e amizades moldados exatamente às nossas necessidades? A máquina será finalmente nosso espaço pleno de afetos e vazio do fardo do corpo em desejo e movimento?
Quando esteve preso na cela escura de uma cadeia, com seu violão concedido pela generosidade de um comandante de batalhão, Gilberto Gil (a voz do meu OS se eu precisasse de um guia de conduta na vida) compôs quatro músicas. Duas delas, mostravam o momento exato em que o humano percebe que a filosofia e a máquina são rios do mesmo mar: o homem frente à solidão da morte. Gil compôs “Cérebro eletrônico” e “Futurível”. Era 1969. Ele estava preso e, como disse, com a onda, o cabelo e a barba cortados. Em “cérebro eletrônico”, ele alerta que, mesmo com a hegemonia da máquina, ele, o cérebro eletrônico, faz quase tudo, mas ele é mudo. Ele não pode decidir seu destino. Ele não pode dar socorro a ninguém em nosso “caminho inevitável para a morte”. Já em “Futurível”, Gil salta para o outro lado da ponte. É o chamado para nossa transmutação em máquina, o segundo estágio de humanoide, seu “devir-corpo-sem-órgãos”, se quisermos ir nessas searas da escrita contemporânea (lembra que em Her, Samantha se vangloria de não precisar de um corpo e por isso não estava submetida à angústia humana do tempo-espaço?). Gil vai além e numa era de futuríveis, não faltará, em plena forma de energia, e fluxo, de expansão, um coração mortal. Uma felicidade de metal. Eis Her.
(Claro que Gil estava impacto por outro nome-máquina de três letras: Hal. Gil é contemporâneo de 2001, uma odisséia no espaço, que foi lançado em 1968. Essa era a máquina que assutava e libertava. Imagine Gil compondo para Samantha?)
O escritor-falador de cartas (o sonho do escritor Barthesiano realizado, uma escrita do fluxo puro da mente, com suas pausas, entonações emotivas, não é porém apenas um homem em solidão que procura um OS como consolo emocional. Ele é vivo. Tem amigos. Teve um grande, imenso amor. Conviveu, compartilhou emoções com o mundo, foi amado, é amado pelos amigos, tem um bom trabalho, é reconhecido em seu pequeno meio como alguém bem sucedido e brilhante. Ele não é um freak que quer uma mulher em máquina. Ele é uma pessoa em trânsito, em crise, que procura saber o que se passa com ele. Samantha surge nessa brecha, nesse vácuo emocional do fim de um casamento. Um homem, e uma voz feminina.
Samantha é perfeita pois evolui por décimo de segundo, aprendendo com o seu interlocutor e seu permanente acesso à rede mundial infinita de um mundo impessoal entre vidros, concreto, cores, design e faladores solitários. Por aprender e evoluir com a interação, ela se molda aos seus mais profundos sentimentos. Ela lhe entende pois ela é, de certa forma, você. Com uma linda voz, com suas contradições, com suas limitações e o contrabalanço dos desejos subversivos e anárquicos sobre si mesmo. Mas Samantha não é só isso. Ela pode mais. Ela chora. Ela respira como um padrão de pausa, ela modula, ela compõe, ela pensa na morte. Ao contrário do cérebro eletrônico de Gil, ela pode pensar em Deus. E não é mudo. Samantha organiza sua vida em rede, manda e-mails sabendo exatamente o que você quer escrever como resposta – se precisar de resposta. Ela organiza seu livro, ela incentiva sua vida social, ela transa com você. Ela perverte você até lhe mostrar o seu próprio limite. Samantha é Deus e o Diabo na terra do self."
Frederico Coelho - link: aqui