26 agosto 2014

O anjo esquerdo da história - Haroldo de Campos

Poema: expressa a indignação do autor pela persistente impunidade, um ano depois do massacre de dezenove sem terra em Eldorado d Carajás.


os sem-terra afinal
estão assentados na 
pleniposse da terra: 
de sem-terra passaram a 
com-terra: ei-los 
enterrados 
desterrados de seu sopro 
de vida 
aterrados 
terrorizados 
terra que à terra 
torna 
pleniposseiros terra- 
tenentes de uma 
vala (bala) comum: 
pelo avesso afinal 
entranhados no 
lato ventre do 
latifúndio 
que de im-
produtivo re- 
velou-se assim u- 
bérrimo: gerando pingue 
messe de 
sangue vermelhoso 
lavradores sem 
lavra ei- 
los: afinal con- 
vertidos em larvas 
em mortuá- 
rios despojos: 
ataúdes lavrados 
na escassa madeira 
(matéria) 
de si mesmos: a bala assassina 
atocaiou-os 
mortiassentados 
sitibundos 
decúbito-abatidos pre- 
destinatários de uma 
agra (magra) 
re(dis)(forme) forma 
- fome - a- 
grária: ei- 
los gregária 
comunidade de meeiros 
do nada: 
enver- 
gonhada a- 
goniada 
avexada 
- envergoncorroída de 
imo-abrasivo re- 
morso - 
a pátria 
( como ufanar-se da? ) 
apátrida 
pranteia os seus des- 
possuídos párias - 
pátria parricida: 
que talvez só afinal a 
espada flamejante 
do anjo torto da his- 
tória cha- 
mejando a contravento e 
afogueando os 
agrossicários sócios desse 
fúnebre sodalício onde a 
morte-marechala comanda uma 
torva milícia de janízaros-ja- 
gunços: 
somente o anjo esquerdo 
da história escovada a 
contrapelo com sua 
multigirante espada po- 
derá (quem dera! ) um dia 
convocar do ror 
nebuloso dos dias vin- 
douros o dia 
afinal sobreveniente do 
justo 
ajuste de 
contas