31 agosto 2014

Do TDAH

            "Hoje eu acordei bastante preocupada com minha capacidade concentração. Há muito não sentia isso. Desde a época do colégio, devo dizer. Durante a faculdade, por eu ter me apaixonado, perdidamente e logo no primeiro ano, por Miguel Reale tanto quanto sempre fui por Tolstoi ou Marília Arnaud, não tive as dificuldades que sofri enquanto estava, sobretudo, no ensino médio.
            Quase mato meus pais de preocupação. Eles não conseguiam compreender como alguém que lia tanto, literatura já avançada para minha idade, que passava os domingos trancada no quarto, rodeada pela Folha de São Paulo e contos de Córtazar, pudesse ter alcançado a façanha de ter ficado em recuperação em todas as matérias, à exceção de história. “Ué, mas você não lê tanto?” – minha mãe perguntava, com um misto de sarcasmo e  repreensão – “Não é tão boa em línguas?”. Isso porque, à época, eu já falava inglês e francês em certo avanço. Sim, eu havia ficado em recuperação em português e inglês, mesmo sendo boa em línguas. Eu conseguia escrever e falar, mas como explicar orações subordinadas e expressões adverbiais?
Não me orgulho disso. Como também não me orgulho de ter passado no segundo ano científico pelo temido conselho de classe, porque os professores tiveram um pouco de misericórdia e talvez um pouco de bom senso (a frustração de uma reprovação para uma adolescente talvez seja pior do que o desconhecimento total da trigonometria e geometria espacial).
Meu primeiro ano do ensino médio, em especial, é que foi, de fato, o período de crise mais grave: tinha insônias torturantes, chegava a ficar três ou quatro dias sem dormir. Levaram-me para passar um mês em Sousa, a título de castigo. Resultado é que eu saía de casa na surdina, fazia rondas à pé pela cidade, jogava baralho com alguns vigias e iniciei meu caminho na sinuca e na cerveja. A noite é perigosa para quem tem só catorze anos, e mais perigosa ainda para quem tem catorze e acha que tem cinquenta
Foi nesse tempo também que comecei a tomar café como quem toma água: apesar de sentir sono durante o dia, não conseguia mesmo dormir. Então me enchia de café para viver o dia como um zumbi. Tinha um amigo especial, Seu Rubismar, que tinha uma loja de CDs. Ficava lá das duas da tarde até à noitinha, ele me mostrando os sons da década de 50, 60, até as novidades dos dias atuais, ele, o primeiro pirateador de cinquenta anos da Paraíba, no meu sentir. Em 2003, 2004, já baixava tudo pela internet.
Um dia, Seu Rubismar encontrou papai e contou-lhe de nossa amizade. Meu pai ficou feliz e surpreso. Disse-lhe que eu era muito inquieta. Seu Rubismar tomou aquilo com espanto: inquieta? Ela passa a tarde inteira sentada, tomando café e ouvindo música.
Daí surgiu, mais uma vez, a ideia de que meu problema não era de concentração ou inquietude, mas pura preguiça. Mamãe voltou a me ralhar: você vai ficar igual aos Pordeus, lendo, ouvindo música e tomando café sem parar. Os Pordeus são a família do meu avô, do pai da minha mãe, que têm uma veia artística muito desejada por mim, não inscrita nos meus genes, infelizmente.
O grande paradigma a ser enfrentado era como eu conseguia me concentrar tanto em algumas atividades, até demais, ao ponto de conseguir terminar um longo romance em um final de semana, aprender francês em um ano, ao passo em que era incapaz de passar quinze minutos resolvendo questões de física, matemática ou até mesmo – pasmem - estudando geografia.
Para mamãe, como disse, era simplesmente preguiça e capricho. Eu só fazia o que tinha vontade e ponto final. Papai era um pouco mais compreensivo, porque achava que eu não podia ser um fracasso total na vida já que conseguia pelo menos ler. Falava, por vezes, brincando, quando mamãe explodia comigo: ela pode ser crítica literária, né? Ou de cinema!            
Nada disso era bom para mim. Apesar de muita gente me admirar e me achar bacana, eu sofria muito por não ter um desempenho no mínimo regular no colégio. Por não ter ideia de como passaria em um vestibular, faria faculdade, por não saber em que profissão me encaixaria.
Fora a concentração, havia outros problemas. Desorganização extrema (não adiantava arrumar o quarto pela manhã, à noite ele já estaria, novamente, um caos), paixão por aventuras (pegar carona com desconhecidos, inclusive em países estrangeiros, como bem me lembrou minha prima Carol, recentemente, alugar teatros fingindo ser uma adulta, pedir motos emprestadas e sair desembestada pela cidade), total inépcia para a pontualidade, sobretudo em razão dos meus horários pouco convencionais.
Assim, eu carreguei durante minha adolescência inteira um sentimento de insuficiência e incompetência extremos, que me conduziram a uma baixa autoestima, e à sensação suprema de incapacidade. Não raro, ficava apática e muito, muito melancólica.
Um dia, estávamos numa livraria, eu e mamãe e vimos um livro chamado “Mentes Inquietas”, da mesma autora de “Mentes Perigosas”, que fez sucesso recentemente, Ana Beatriz Barbosa. Acho que o livro acabara de ser lançado. Mamãe nem leu a sinopse no verso. Pronto, é isso aqui que você é, uma mente inquieta, ela sentenciou. Eu li o livro primeiro, de assalto. Caladinha, mandei que ela lesse.
Descobrimos que existia uma doença, sim, doença,chamada Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, e que, pior, eu me encaixava perfeitamente na descrição dos “sintomas” da doença. Naquele tempo, o termo mais usado era DDA – Distúrbio do Déficit de Atenção, sendo a hiperatividade um aspecto da doença, sendo esse aspecto o que menos me aproveitava. Eu não era de um todo serelepe, traquina, de subir em árvores. Mas roubava motos, carros (aprendi a dirigir aos doze anos) e não conseguia dormir.
Não foi a solução de todos os problemas, não. Ao contrário. A preguiça tinha conserto, correto? Mas e uma doença? Um transtorno mental? Acho que mamãe se aperreou mais ainda, para ser sincera, porque continuou dizendo que eu tinha mesmo era síndrome de Macunaíma. Foi minha irmã mais velha, que já era médica residente, que pensou que aquilo tudo podia ter algum sentido, sim, e convenceu meus pais a me levarem a um psiquiatra no Recife.
Para uma adolescente já cheia de conflitos, a ideia de precisar ir a um psiquiatra não foi das mais confortáveis. Além de incapaz e inapta, senti-me muitíssimo frágil. Na primeira consulta, o médico disse sem rodeios que eu tinha, sim, o tal Distúrbio de Atenção.
Mamãe não se conformou. Queria uma tomografia ou algo similar que provasse isso. Insistiu na teoria da preguiça. Disse da minha paixão por literatura, música e cinema. O médico, gentilmente, perguntou-lhe mais uma vez se ela tinha lido o livro que havia nos levado ali, e se ela se recordava de um tópico que falava do hiperfoco.
Ela continuava relatando como eu passava quatro ou cinco horas lendo, “só lendo, doutor! Vê três ou quatro filmes em sequência! Como essa menina tem problema de atenção?”. Pois bem. O doutor informou que preferia não chamar exatamente de um problema de atenção, mas de um desvio. Que minha atenção era extremamente, mas de uma forma muito extrema mesmo, direcionada para os assuntos pelos quais eu sentia mais interesse. Que o fato de eu ser espacialmente desorganizada se dava também por eu devanear demais.
Claro que mamãe não engoliu essa conversa. Até eu, até hoje, e depois vou explicar melhor, fico um tanto quanto reticente em relação a essa tese. No dia mesmo fiquei. Porque, ora, se eu só conseguia atentar para o que gostava é porque tinha preguiça do resto das coisas e fazia tão somente o que desejava. Ou seja, caprichosa e preguiçosa, mesmo. Mas, segundo o psiquiatra, não era uma escolha minha. As pessoas “normais” conseguiam direcionar a atenção, os portadores (e imaginem que susto é ouvir essa palavra) de TDAH simplesmente não conseguem.
Mas havia um remédio, sim, e não era só o café – pois não é que até meu vício pela cafeína restou explicado? Era uma droga chamada Ritalina, e eu tinha que começar a tomá-la imediatamente. No mesmo dia compramos, no dia seguinte comecei a tomar. Os efeitos foram devastadores, para mim. Perdi alguns quilos e consegui me focar em quase tudo e, uma novidade, em biologia, porque fiquei admirada com aquilo que o doutor explicou serem os responsáveis pelo meu mal: os neurotransmissores. Não eles em si, mas a deficiência de um em específico, a dopamina. Até hoje não sei como funciona, mas, ao que parece, a ritalina regula os níveis de dopamina no cérebro.
Para o espanto e maravilha de todos, tirei vários dez em biologia e até um em matemática, seguidos de um nove em física. Por outro lado, fiquei muito calada e abatida. Hoje não sei realmente se foi a ritalina que me deixou assim. Talvez a ideia de ter uma doença, de precisar de um remédio, de ser tão jovem e me perturbar tanto tenham sido fatores mais fortes para gerar em mim um aspecto sorumbático, ao ponto de o professor de física dizer que gostava mais de mim quando eu tirava cinco e conversava mais. Entretanto, no auge dos meus complicados catorze anos, a explicação mais plausível é de que tinha sido a droga, sim.
Então, tomei uma decisão bastante séria: parei de tomar a ritalina sem dizer a ninguém. Meus pais continuaram comprando o medicamento por mais uns dois anos, sem sequer saber que eu só o tomei por alguns meses, oito ou nove no máximo. Às vezes eu fazia a revenda para uns CDFs que queriam se concentrar ainda mais. Outras vezes só jogava no lixo, mesmo.
Aos dezessete anos, agarrei-me à tese de mamãe: eu era preguiçosa e tinha que corrigir isso. Não precisava de um medicamento. Pensei que essa história de TDAH era balela para alimentar a indústria farmacêutica. Veio a faculdade e, como disse, meu hiperfoco foi bem vantajoso, já que podia estudar por horas a fio Direito Constitucional e Processual Civil. Não tive a mesma sorte com o Direito das Coisas. Até hoje tenho sequelas de tanto repassar páginas falando sobre o direito de sequela.
A maturidade diminuiu alguns arroubos. E assim fui me ajustando. Outro dia, li um tuíte de Ana Beatriz Barbosa, que também tem TDAH, dizendo: “perguntaram-me se eu tive TDAH. Eu não tive, eu tenho. Só aprendi a viver com ele”. Pesquisei sobre TDAH na vida adulta e aí vi que continuo me encaixando direitinho na descrição dos portadores. Não quero dissertar sobre isso, já adentrei demais na minha vida pessoal. Entretanto, li um interessante dado: apenas um percentual de 30 a 50% das crianças com TDAH continuam a sofrer do mal na vida adulta. Desconfio muito disso. Como disse Ana Beatriz, a gente aprende a viver com a desatenção, com a desorganização e vai ajustando nossa vida para que esses aspectos não nos prejudiquem tanto. Alguns conseguem fazer com um grau menor de maestria e, por isso, são inseridos no percentual acima mencionado.
Então, se esse ajuste é possível, a doença existe? Bem, hoje, como mamãe, eu queria muito que uma tomografia me provasse. Não sei se os Pet-scans fazem isso, mas, enfim, parece que ainda temos que confiar na subjetividade psiquiátrica que, cá para nós, não é das mais confiáveis, e não sinto vergonha em dizer que falo por experiência própria. Claro que mamãe não me levou só em um psiquiatra. E, depois, mais tarde, quando ela já tinha falecido, visitei alguns, mais por tristeza do que por desatenção. Encontrei muitos irresponsáveis e recebi diagnósticos bastante confusos. Por isso, prefiro resolver meus dilemas com a psicanálise, que é subjetiva, mas não inventa de medicar e, pelo menos não na minha vivência, também não rotula.
Já com 21 anos, descobri que um dos papas do TDAH no Brasil, o Dr. Salomão Schuartzman, estava em João Pessoa, para uma conferência sobre autismo organizada pela minha tia. Depois de muita persistência, consegui uma consulta com ele (até porque também queria um autógrafo do seu livro, que tinha desde os catorze anos). É um senhor muito sereno, que me ouviu atentamente e confirmou, sim, o meu diagnóstico de déficit de atenção. Eu posso não tomar a ritalina?, perguntei. Era o meu maior medo, dada a malfadada experimentação adolescente. Pode, ele me respondeu tranquilo. Só vai ser mais difícil, mas também acho que você já sabe como é.
Não sou contra fármacos para a mente. Acho que falta de dopamina é o mesmo que falta insulina, e não podemos nos furtar a toma-la. Todavia, como os efeitos da ausência da substância são diversos numa e noutra enfermidade, ainda posso me dar ao luxo de arriscar os meus métodos e minha capacidade de transformação.
Passei muito tempo achando que o cérebro era algo estanque, que éramos determinados pelo oráculo genético de Steven Pinker, sem alternativas. Hoje, penso que, embora dentro desse oráculo genético, há algumas opções. Pode ser pueril. Minha irmã mais velha ainda insiste para que eu tome a ritalina, mas minha resistência a ela foi profunda, porque afetou um lado da minha personalidade do qual eu sempre gostei muito: minha espontaneidade, extroversão. E perder isso novamente, ainda que por alguns meses, não me é compensado por conseguir ler algumas páginas a mais. Pelo menos por enquanto.
Algo, todavia, há de ser advertido, para pais e adolescentes: o TDAH existe, não é uma invenção da indústria farmacêutica, nem uma desculpa para não estudar. Mas vejo uma profusão do TDAH sem limites. Observo que alguns pais parecem querer se furtar da responsabilidade de compreender porque seus filhos não estão bem na escola, e aí empurram ritalina ou concerta (que já foi, inclusive, taxado de a droga da obediência) goela abaixo. Não é uma simples desatenção que caracteriza o transtorno, e a irresponsabilidade de alguns pais e médicos ao aceitar e fazer o diagnóstico de forma precoce, respectivamente, pode ser extremamente maléfica para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Já outros pais, como os meus, por exemplo, podem ter uma atitude relutante no que tange à aceitação do diagnóstico, e isso também pode ser prejudicial. Vale lembrar que não é só a droga e, principalmente, ela, isoladamente, que ajuda a combater os efeitos do transtorno. A terapia é uma excelente medida, no meu caso, em particular, a melhor. Essa relutância pode acarretar, como acarretou para mim, em baixa autoestima, sensação de angústia e impotência. Até hoje, sinto minha confiança assaz abalada, principalmente no campo profissional.
Na faculdade, um professor veio me contar que seu filho de oito anos tinha sido diagnosticado com TDAH, sendo a hiperatividade o aspecto mais forte da doença nele. Disse-me que não iria fazer nada, porque não queria mudar a personalidade do filho. Apesar do baixo rendimento escolar, achava-o perspicaz e inteligente. Essa visão é interessante, mas também pode ser maléfica. A droga pode até ser descartada, mas o alarme do diagnóstico não pode ser sumariamente rejeitado. Muitas vezes, só a consciência do problema é suficiente para que se façam arranjos no cotidiano da pessoa e, assim, ajustá-la para o justo cumprimento das suas responsabilidades.
Só quem tem TDAH de verdade e sofre com isso sabe que não é um alento ouvir que TDAH é o mal dos gênios.
Conheço adultos mais velhos que eu que até hoje têm sérios problemas profissionais, pessoas com alto grau de inteligência, mas que não conseguem utilizá-la, não raro por problemas sérios de confiança, por terem sido taxados de preguiçosos e burros na infância. Comentários desta ordem podem não vir dos pais, como no caso do meu professor, mas de professores e colegas de classe.
Tive que fazer muitos e muitos ajustes na minha vida e ainda sofro com os problemas advindos do TDAH. Tenho insônias recorrentes e embora não deixe de cumprir prazos, muito frequentemente deixo as atividades para o último momento, mas tento me disciplinar. Meu cuidado é redobrado. Um esforço diário.
Se TDAH é simplesmente jeito de ser, modelo de personalidade, a cada dia eu acredito mais que não. Entretanto, se um modelo de personalidade contém aspectos que prejudicam de forma maior no nosso cotidiano, é imperioso seja feito um controle diuturno, aplicando-se doses diárias de ordem e obediência em nós mesmos.
Sei que muita gente acha besteira isso de transtorno mental. Tudo o que posso dizer é através de minha vivência, o que aprendi com o meu próprio sofrimento. E é um grande sofrimento não ter controle sobre si mesmo, ainda mais em um mundo tão cheio deoverachievers. Invejo essa gente de disciplina militar, que acorda cedo, corre na praia, estuda, é bem sucedida e bronzeada sem risco de câncer de pele. Eu esqueço constantemente o filtro solar, até quando vou à praia (ainda bem que vou pouco) nesta era em que “use filtro solar” virou bordão.
Ainda passo por poucas e boas, porque, quando não consigo me concentrar, saio do Alto Branco e vou bater em Massaranduba. Porque tenho medo de fazer provas, arrisco-me pouco onde devo me arriscar e, às vezes, passo dos limites onde os limites devem ser bem estritos. Mas ainda há espaço para essa gente cinéfila, que, mesmo não tendo dom para overachiever, consegue redescobrir toda a alegria e esperança do mundo num longa-metragem de Claude Lelouch."

Myriam Gadelha - Fonte: aqui