18 janeiro 2017

O escritor e seu duplo 
Ricardo Piglia

A literatura atua sobre um estado de linguagem. Quero dizer que, antes de mais nada, para um escritor o social está na linguagem. Definitivamente, a crise atual tem na linguagem um de seus cenários centrais. Ou talvez deveria dizer que a crise está sustentada por certos usos da linguagem. Tem se imposto uma língua técnica, demagógica, publicitária e tudo o que não está nesse jargão fica fora da razão e do entendimento. Tem se estabelecido uma norma linguística que impede nomear amplas zonas da experiência social e que deixa fora da inteligibilidade a reconstrução da memória coletiva. 
Em The Retoric of Hitlers Battle, escrito en 1941, o crítico Kenneth Burke já fazia ver que a gramática da fala autoritária conjuga os verbos em um presente despersonalizado que tende a apagar o passado e a história. O Estado tem uma política com a linguagem, busca neutralizá-la, despolitizá-la e apagar os signos de qualquer discurso crítico. O Estado diz que quem não diz o que todos dizem é incompreensível e está fora de época. Há uma ordem do dia mundial que define os temas e os modos de dizer: a mídia repete e modula as versões oficiais e as construções monopólicas da realidade. Os que não falam assim estão excluídos e essa é a noção atual de consenso e de diálogo. 
O discurso dominante neste sentido é o da economia. A economia de mercado define um dicionário e uma sintaxe e atua sobre o valor das palavras; define uma nova linguagem sagrada e crítica, que necessita dos técnicos e de seus comentadores para decifrá-la e traduzi-la. Deste modo se impõe uma língua mundial e um repertório de metáforas que invadem a vida cotidiana. 
Os economistas buscam controlar tanto a circulação das palavras como o fluxo do dinheiro. Haveria que estudar a relação entre o que transcende, as infiltrações, os desmentidos, as versões e contraversões por um lado e as flutuações dos valores no mercado e na bolsa por outro. Há uma relação muito forte entre linguagem e economia. Nesse contexto escrevemos, e o que a literatura faz (em realidade o que tenho feito sempre) é descontextualizar, apagar a presença persistente do presente cego e construir outro tempo e outra realidade. Cada vez mais os melhores livros atuais (os livros de Walker Percy, de Andrea Zanzotto ou de Juan Gelman) parecem escritos em uma língua privada. Paradoxicalmente a língua privada da literatura é o rastro mais vivo da linguagem social. 
Quero dizer que a literatura está sempre fora de contexto e sempre é inatual; diz o que não é, o que tem sido apagado; trabalha com o que está por vir. Funciona como o reverso puro da lógica do Estado e da realpolitik. De modo que a intervenção política de um escritor se define antes de mais nada na confrontação com estes usos oficiais da linguagem. 
Os escritores sempre têm chamado a atenção sobre as relações entre as palavras e o controle social. Em seu explosivo ensaio Politics and the English Language de 1947, George Orwell analisava a presença do Estado nas formas da comunicação verbal: a língua instrumental dos funcionários policiais e dos tecnocratas havia se imposto, a linguagem tinha se convertido em um território ocupado. Os que resistem falam entre si em uma língua perdida. No trabalho de Orwell se veem condensadas muitas das operações que definem hoje o universo do poder. Pasolini por seu lado tem percebido de um modo extraordinário este problema em suas análises dos efeitos do neocapitalismo na língua italiana. Não me parece nada raro então que o maior crítico da política atual (um dos poucos intelectuais realmente críticos na política atual) seja Noam Chomsky: um linguista é certamente o que melhor percebe o cenário verbal da tergiversação, a inversão, a troca de sentido, a manipulação e a construção da realidade que definem o mundo moderno. 
Gostaria de recordar duas citações, onde se analisam estes procedimentos de encobrimento. Primeiro uma de Orwell: Bombardeiam povos indefensos, tiram os habitantes de sua terra e metralham seu gado, incendeiam suas cabanas e a isso se chama pacificação. Milhões de campesinos são despojados de suas granjas e enviados para a estrada sem nada, e a isso se chama retificação de fronteiras. E Chomsky, por sua vez, diz sobre a troca de nome de Departamento de Guerra (nos Estados Unidos) para Departamento de Defensa em 1947. Enquanto isto se sucedeu, qualquer pessoa sensata devia dar-se conta de que os Estados Unidos já não se ocupariam da defesa, participaria nas guerras tão somente como agressor. Também diz Chomsky: nos anos 40, nos círculos da indústria das relações públicas, tomou-se a decisão de introduzir expressões como livre empresa, mundo livre, ao invés de termos descritivos convencionais como capitalismo, insinuando que os sistemas de agressão e de controle nos quais estavam implicados aqueles que detinham o poder eram na realidade una forma de liberdade. Mundo livre, livre empresa, livre concorrência, livre mercado. Era uma maneira de nomear a concentração econômica e a política da expansão dos grandes monopólios. Desse modo se impõe uma linguagem encobridora, um estilo médio, e tudo o que não está nesse jargão é considerado hermético e fora de lugar. Ou seja, estabelece-se uma norma linguística, que não tem nada que ver com os registros da língua popular nem com as experiências concretas da vida cotidiana e se definem aí os níveis de compreensão e de sentido. 
Há uma cisão entre a língua pública, a língua dos políticos em primeiro lugar e os outros usos da linguagem que estão perdidos e quase apagados da superfície social. Tende-se a impor um modelo único - que funciona como um registro de legitimidade e de compreensão - que é manejado por todos os que falam em público. Em momentos em que a língua se tem tornado opaca e homogênea o trabalho detalhado, microscópico e quase invisível da literatura é uma resposta secreta e corrosiva ao estado das coisas.