01 dezembro 2016

"Uma das polêmicas que tenho tido com pessoas queridas é sobre os efeitos da narrativa do golpe, a necessidade de continuar atento a eles e alerta à tarefa de desmontá-los. “Ah, pra que você ainda fica criticando a esquerda, agora é a direita que está no poder, vamos centrar fogo no Temer”, me dizem.
Sorry, não. Centrar fogo no Temer, sim, como já fiz aqui várias vezes e continuarei fazendo. Abandonar a desmontagem da narrativa do golpe, nem que a vaca tussa. Porque essa narrativa continua produzindo os seus efeitos mais perversos.
“Ah, mas o PT já está tão fraquinho, pra que bater nele?” Não se trata de PT ou PcdoB ou qualquer instituição política, mas dos efeitos políticos de uma operação retórica. Esses efeitos estão visíveis na entrevista de Joaquim Barbosa à Folha de São Paulo, incensada à direita e à esquerda em minha TL hoje.
Em primeiro lugar, a grande ironia. Durante o julgamento do mensalão, Joaquim Barbosa foi chamado de tudo pelo ex-governismo, até de capitão-do-mato. Bastou colocar-se contra o impeachment para ser alçado à condição de analista com palavra final. Mas esse tipo de incoerência já é mato. Vamos ao conteúdo da entrevista, que é o que interessa.
Segundo Barbosa, dez pessoas se reuniram para tramar o impeachment de Dilma e derrubaram-na. A paráfrase é exata, é só seguir o link da entrevista (http://bit.ly/2fOmzUm) e ver que é isso mesmo o que diz Barbosa. Mônica Bergamo insiste: “O que sustentava esse grupo? Porque dez pessoas apenas não fazem um impeachment.” E mesmo tendo o espaço para trazer uma mínima complexidade à análise, a única resposta de Barbosa é “era um grupo de líderes em manobras parlamentares que têm um modo de agir sorrateiro. Agem às sobras. E num determinado momento decidiram [derrubar Dilma]. Acuados por acusações graves, eles tinham uma motivação espúria: impedir a investigação de crimes por eles praticados.”
Que havia no impeachment de Dilma uma tentativa de recomposição da classe política acossada pela Lava Jato é fato. Que dez parlamentares corruptos se reuniram e deram início a tudo é coisa de quem se esqueceu de todos os jornais que leu em 2015. Em 15 de março de 2015, muito antes de qualquer grande articulação da classe política, centenas de milhares de pessoas se reuniram na Avenida Paulista bradando pelo impeachment, por convocação era de associações da sociedade civil. O PSDB dava declarações contraditórias, cindido entre os interesses de Alckmin, Serra e Aécio. Em agosto de 2015, meses depois que multidões já estavam na rua, ninguém menos que o Jornal Nacional (http://bit.ly/1K8Mzlp) lançava editorial de apoio a Dilma, chamando a iniciativa do impeachment de irresponsável.
Ao ser confrontado com a pergunta acerca do apoio de “setores econômicos” ao impeachment, Barbosa responde: “A partir de um determinado momento, sob o pretexto de se trazer estabilidade, a elite econômica passou a apoiar, aderiu. Mas a motivação inicial é muito clara.” O Brasil deve ter realmente uma elite econômica muito numerosa, porque a taxa de apoio ao impeachment naquele momento chegava a 70%. Se somados os apoios ao impeachment e à realização de novas eleições, o suporte à saída de Dilma chegava a 90%. A Presidente naquele momento não tinha o apoio de 10% da população. Mas, para Barbosa, foi só a “elite econômica” quem aderiu.
Aderiu, nos diz ele, pelo “pretexto da estabilidade econômica”. Como se o país realmente não estivesse mesmo em frangalhos, com seis trimestres consecutivos de encolhimento do PIB, 10 milhões de desempregados, colapso das contas públicas e uma longa de etecéteras. Mas tudo isso, segundo Barbosa, foi um “pretexto”.
Em outras palavras, está em curso um processo de esquecimento da ordem em que as coisas aconteceram e de tudo o que se noticiou em 2015. Esse esquecimento normatiza, retrospectivamente, uma série de brutalidades da nossa história, tal como fica visível também na entrevista de Barbosa. Segundo ele, “o Brasil deu um passo para trás gigantesco em 2016. As instituições democráticas vinham se fortalecendo de maneira consistente nos últimos 30 anos.”
A narrativa da melhoria progressiva, do constante fortalecimento das instituições democráticas, que teriam subitamente sido lançadas para trás em 2016, não é uma estratégia decente para enfrentar o governo Temer. Inclusive porque essa estratégia superestima o poder de fogo desse governo e regulariza uma série de horrores vividos ao longo da história pelos mais pobres, que não costumam se reconhecer nesse conto da carochinha do fortalecimento progressivo das instituições democráticas.
Para coroar a caricatura, Barbosa nos diz que “todas as teorias dos últimos 30 anos, de hipertrofia da Presidência, de seu poder quase imperial, foram por água abaixo” – como se as teorias do funcionamento da democracia brasileira, do presidencialismo de coalizão do Limongi ao pemedebismo do Marcos Nobre, não demonstrassem exatamente o contrário, que o Brasil é um dos países presidencialistas de maior dependência do Presidente em relação ao parlamento. Que teorias da “Presidência imperial” são essas às quais ele alude, enfim, não se sabe.
Segundo Barbosa, o Brasil estaria começando a ser visto agora como uma República das Bananas no exterior. Tenho viajado pelos EUA e por outros países e há, sim, em alguns setores, empatia com o que Dilma sofreu. Percebe-se, sim, que há alguma inflexão diferente na política externa. Mas dizer que o Brasil está começando a ser visto como República das Bananas é delírio de quem não sabe do que está falando ou distorce deliberadamente.
Barbosa pode ser um grande jurista. Não é um analista político segundo o qual pautar nada. Transformá-lo nisso, como fizeram com Glenn Greenwald, por interesse ou conveniência política, vai cobrar o preço lá na frente.

Avisei em 01 de dezembro de 2016."

Idelber Avelar