"Uma das polêmicas que tenho tido com
pessoas queridas é sobre os efeitos da narrativa do golpe, a necessidade de
continuar atento a eles e alerta à tarefa de desmontá-los. “Ah, pra que você
ainda fica criticando a esquerda, agora é a direita que está no poder, vamos
centrar fogo no Temer”, me dizem.
Sorry,
não. Centrar fogo no Temer, sim, como já fiz aqui várias vezes e continuarei
fazendo. Abandonar a desmontagem da narrativa do golpe, nem que a vaca tussa.
Porque essa narrativa continua produzindo os seus efeitos mais perversos.
“Ah,
mas o PT já está tão fraquinho, pra que bater nele?” Não se trata de PT ou
PcdoB ou qualquer instituição política, mas dos efeitos políticos de uma
operação retórica. Esses efeitos estão visíveis na entrevista de Joaquim
Barbosa à Folha de São Paulo, incensada à direita e à esquerda em minha TL
hoje.
Em
primeiro lugar, a grande ironia. Durante o julgamento do mensalão, Joaquim
Barbosa foi chamado de tudo pelo ex-governismo, até de capitão-do-mato. Bastou
colocar-se contra o impeachment para ser alçado à condição de analista com
palavra final. Mas esse tipo de incoerência já é mato. Vamos ao conteúdo da
entrevista, que é o que interessa.
Segundo
Barbosa, dez pessoas se reuniram para tramar o impeachment de Dilma e
derrubaram-na. A paráfrase é exata, é só seguir o link da entrevista (http://bit.ly/2fOmzUm) e ver que é isso
mesmo o que diz Barbosa. Mônica Bergamo insiste: “O que sustentava esse grupo?
Porque dez pessoas apenas não fazem um impeachment.” E mesmo tendo o espaço
para trazer uma mínima complexidade à análise, a única resposta de Barbosa é
“era um grupo de líderes em manobras parlamentares que têm um modo de agir
sorrateiro. Agem às sobras. E num determinado momento decidiram [derrubar
Dilma]. Acuados por acusações graves, eles tinham uma motivação espúria:
impedir a investigação de crimes por eles praticados.”
Que
havia no impeachment de Dilma uma tentativa de recomposição da classe política
acossada pela Lava Jato é fato. Que dez parlamentares corruptos se reuniram e
deram início a tudo é coisa de quem se esqueceu de todos os jornais que leu em
2015. Em 15 de março de 2015, muito antes de qualquer grande articulação da
classe política, centenas de milhares de pessoas se reuniram na Avenida
Paulista bradando pelo impeachment, por convocação era de associações da
sociedade civil. O PSDB dava declarações contraditórias, cindido entre os
interesses de Alckmin, Serra e Aécio. Em agosto de 2015, meses depois que
multidões já estavam na rua, ninguém menos que o Jornal Nacional (http://bit.ly/1K8Mzlp) lançava editorial
de apoio a Dilma, chamando a iniciativa do impeachment de irresponsável.
Ao
ser confrontado com a pergunta acerca do apoio de “setores econômicos” ao
impeachment, Barbosa responde: “A partir de um determinado momento, sob o
pretexto de se trazer estabilidade, a elite econômica passou a apoiar, aderiu.
Mas a motivação inicial é muito clara.” O Brasil deve ter realmente uma elite
econômica muito numerosa, porque a taxa de apoio ao impeachment naquele momento
chegava a 70%. Se somados os apoios ao impeachment e à realização de novas
eleições, o suporte à saída de Dilma chegava a 90%. A Presidente naquele
momento não tinha o apoio de 10% da população. Mas, para Barbosa, foi só a
“elite econômica” quem aderiu.
Aderiu,
nos diz ele, pelo “pretexto da estabilidade econômica”. Como se o país
realmente não estivesse mesmo em frangalhos, com seis trimestres consecutivos
de encolhimento do PIB, 10 milhões de desempregados, colapso das contas
públicas e uma longa de etecéteras. Mas tudo isso, segundo Barbosa, foi um
“pretexto”.
Em
outras palavras, está em curso um processo de esquecimento da ordem em que as
coisas aconteceram e de tudo o que se noticiou em 2015. Esse esquecimento
normatiza, retrospectivamente, uma série de brutalidades da nossa história, tal
como fica visível também na entrevista de Barbosa. Segundo ele, “o Brasil deu
um passo para trás gigantesco em 2016. As instituições democráticas vinham se
fortalecendo de maneira consistente nos últimos 30 anos.”
A
narrativa da melhoria progressiva, do constante fortalecimento das instituições
democráticas, que teriam subitamente sido lançadas para trás em 2016, não é uma
estratégia decente para enfrentar o governo Temer. Inclusive porque essa
estratégia superestima o poder de fogo desse governo e regulariza uma série de
horrores vividos ao longo da história pelos mais pobres, que não costumam se
reconhecer nesse conto da carochinha do fortalecimento progressivo das
instituições democráticas.
Para
coroar a caricatura, Barbosa nos diz que “todas as teorias dos últimos 30 anos,
de hipertrofia da Presidência, de seu poder quase imperial, foram por água
abaixo” – como se as teorias do funcionamento da democracia brasileira, do
presidencialismo de coalizão do Limongi ao pemedebismo do Marcos Nobre, não
demonstrassem exatamente o contrário, que o Brasil é um dos países
presidencialistas de maior dependência do Presidente em relação ao parlamento.
Que teorias da “Presidência imperial” são essas às quais ele alude, enfim, não
se sabe.
Segundo
Barbosa, o Brasil estaria começando a ser visto agora como uma República das
Bananas no exterior. Tenho viajado pelos EUA e por outros países e há, sim, em
alguns setores, empatia com o que Dilma sofreu. Percebe-se, sim, que há alguma
inflexão diferente na política externa. Mas dizer que o Brasil está começando a
ser visto como República das Bananas é delírio de quem não sabe do que está
falando ou distorce deliberadamente.
Barbosa
pode ser um grande jurista. Não é um analista político segundo o qual pautar
nada. Transformá-lo nisso, como fizeram com Glenn Greenwald, por interesse ou
conveniência política, vai cobrar o preço lá na frente.
Avisei
em 01 de dezembro de 2016."
Idelber Avelar