12 dezembro 2016

Maria Filomena Molder: “Só começamos depois de continuar”


Num seminário disse que, para compreendermos a nossa existência, temos de compreender as suas condições concretas. Isto é o oposto do que se pensa da filosofia: uma disciplina que paira acima do concreto. 
É verdade. Por um lado, há na filosofia esse momento destrutivo e analítico, sem o qual não há filosofia. E é por isso que muitos textos filosóficos parecem ilegíveis — é como querer ler uma partitura e não saber música. Mas há também, por exemplo em Wittgenstein, a noção de que o significado das palavras não pode ser compreendido antes de termos olhado com muita atenção para os seus usos. O significado abandonado a si próprio é opaco.
Mas qual o papel do filósofo? Há causas que a mobilizam, como a morte assistida ou o acordo ortográfico (AO). 
Sou a favor da morte assistida e contra a tentativa de impedir a liberdade de cada um em relação à sua própria morte. Estamos numa situação do ponto de vista tecnológico que faz com que aquilo que já não é vida humana seja prolongado de maneira indecente. E quem está prestes a ficar numa situação dessas deve poder dizer que não o quer. Não há nenhuma crença religiosa que se possa erigir em juiz da decisão de uma pessoa que não tem essa crença.
E porque é se opõe com tanta veemência ao AO? 
A ortografia não é a língua. Quando era pequenina havia muitos analfabetos que falavam um português maravilhoso. Porém, a língua não está separada da escrita. Nas “Investigações Filosóficas”, Wittgenstein diz: “Pensa que a imagem virtual da palavra nos é num grau semelhante tão familiar como a auditiva.” No AO, esta familiaridade foi quebrada por razões enganadoras. Convém não esquecer que se trata de um acordo, um compromisso de unificação do que não é unificável. E é um disparate, porque apregoa uma unificação que ele próprio não consegue: o próprio AO admite grafias diferentes para as mesmas palavras. Além disso, pela primeira vez, uma reforma ortográfica tem consequências no modo de dizer as palavras. O ‘p’ em ‘recepção’ tem uma função elucidativa da vogal aberta. Podia ter-se substituído por um acento grave no ‘e’, mas não se fez. A tendência do falante de português — não do brasileiro — será fechar essa vogal. A ortografia modificará a leitura e a linguagem falada. E já gera confusões, como vir no “Diário da República” escrito ‘fato’ em vez de ‘facto’.
Isso é ignorar o próprio AO...
Estou em crer que 99% das pessoas que o aplicam nunca o leram. O Frederico Lourenço, alguém que admiro, escreveu que sempre houve mudanças na ortografia e que já se perderam vestígios etimológicos. Tem razão. Mas há uma coisa que se chama memória. E porque muitos vestígios se perderam temos de anular os que restaram?
Isto leva-nos ao seu novo livro, onde escreve: “Primeira regra: continuar. Segunda regra: começar.” A ideia, muito presente em si, de que nada vem do nada. 
Essas regras vêm de um autor francês que estimo imenso e caiu no esquecimento, chamado Alain. E são mesmo regras para mim. Há uma história de infância que conto num dos meus livros. Eu brincava numa rua íngreme por trás da minha casa. Um dia subi-a, desci e fiz uma coisa que nunca tinha feito, que é olhar para o horizonte. E vi que estava lá o rio Tejo. Foi uma experiência muito forte, a de sentir que aquilo estava lá antes de o ter visto. Onde eu estava a começar, estava a continuar. Nós só começamos depois de continuar.
Numa conferência dizia que o leitor é aquele que relê. Que o ‘não entendo’ é não reconhecer que “a opacidade encontrada é a matriz de onde se tem de partir para voltar a ler”. É assim? 
E o maior engano é a empatia. A empatia é um instrumento de familiaridade imediata que pode impedir a compreensão. Sentimos tanto que aquilo é assim que não fazemos nenhuma análise. E a leitura inclui esse momento destrutivo da análise, a decomposição do que se tem. Enfrentar a opacidade implica destruir o texto.
Alberto Manguel contava que só conseguiu ler “A Divina Comédia” aos 60 anos, após muitas tentativas goradas. Quando é que se está pronto? 
Tem que ver com esperar a boa ocasião. Tenho muitas experiências semelhantes a essa. Também não li Dante quando era nova.
Mas leu Nietzsche insistentemente, mesmo sem perceber. Continuava. 
Li muito nova “A Origem da Tragédia” e “Assim Falava Zaratustra”. Era como provar um vinho estranho, uma comida desconhecida, que amargava a boca. Sem conseguir parar. Depois só o voltei a ler anos mais tarde. Em relação à “Divina Comédia”, já tinha 50 anos quando li a edição do Vasco Graça Moura. Fiquei absolutamente varada e não sei se teria conseguido lê-la mais nova. Não se sabe quando estamos prontos. Sei que estamos prontos para continuar e depois começar quando uma coisa nos toca. E isso não é empatia, é sentir que aquilo vai entrar na nossa vida. Por vezes, entrar num texto é entrar num descampado. Temos medo, mas continuamos.
Disse que há filósofos que lhe eram adversos e que não quis conhecer bem. Quais são? 
Um deles é Heidegger. Li-o na minha juventude com entusiasmo devorador, até sem saber alemão. Eu sei alemão, mas não sou sabida em alemão. Traduzo porque quero compreender melhor os textos e porque traduzir é o que me calha bem.
Esse gesto de tradução descreve-a, segundo Fernando Gil [que orientou a sua tese sobre Goethe]. 
Ele tinha razão. Estou sempre a traduzir, é algo assim como dar nome.
“Deixar cair isso de ser quem se é na língua materna”. Palavras suas. 
É encontrar o ‘ele’, o anónimo, em nós.
E o que não encontrou em Heidegger? 
É manipulador e eu detesto ser manipulada. Nunca poderei compreender porque é que a Hannah Arendt se apaixonou por ele, mas a paixão não é para se compreender. Ele é uma droga de alta potência, porque quem é apanhado não a larga. Transformou todos os filósofos gregos em alemães. Absorveu-os como se fossem ele: um homem do século XX, que considerava que o povo alemão tinha um destino e que a filosofia era o cumprimento desse destino. Os gregos são instrumentos dessa construção.
E quais os que quis estudar? Nas suas aulas costumava falar de pertença, de família. 
O primeiro foi Heraclito, enigmático, desprezador da multidão e convencido de que qualquer um pode ir ter com a profundidade da sua vida. O segundo, Giordano Bruno, homem do Renascimento, mandado matar por imaginar mundos infinitos. O terceiro, Kant, foi o descobridor do espaço e do tempo como intuições da nossa sensibilidade, uma revolução coperniciana, o mais honesto dos filósofos, depois de Espinosa e antes de Nietzsche. Todos os outros vieram na sequência destes, sabedores dos limites humanos, nenhum vilipendiando esses limites: Arendt, Walter Benjamin, Wittgenstein, Nietzsche, Fernando Gil, Giorgio Colli. Broch, que não é filósofo, mas um grande pensador — tal como Dante.
Porque se dedicou às relações entre a filosofia e a literatura? 
Porque adoro literatura e a filosofia é um género literário, inventado por Platão. Que se manteve, apesar de Aristóteles ter ido por outros caminhos. Sem diálogo vivo a filosofia enfraquece, o que se escreve perde massa muscular. Por isso é que a vida escolar é tão importante na filosofia. Hoje está reduzida a um espaço muito pequeno, mais ainda pelas facilidades tecnológicas que ajudam a criar falsas comunidades, em que as pessoas não estão à frente uma da outra. Não estar à frente uma da outra arranca o elemento tácito. Os gestos, os silêncios, ou o que não está a ser dito mas ambos sabemos.
Disse que a filosofia perdeu audibilidade. Não que perdeu voz, mas sim as condições para ser ouvida. 
A comunidade filosófica hoje é quase estritamente académica. O que significa que temos de proteger a filosofia na escola, porque é a única possibilidade de diálogo e de argumentação vivos. Ao mesmo tempo, como a escola é a única reserva que a filosofia tem, perde imenso. Porque a relação filosófica não se compadece com o sistema de avaliação e de organização das universidades.
E porque a filosofia leva tempo? 
É um modo de vida que segundo os moldes do nosso ensino começa a ser exercitado cedo demais. Plotino pensava que ninguém se devia dedicar à filosofia antes dos 28 anos. Na verdade, nós vivemos muito isolados, e todos os meios de aceder ao outro de maneira artificial aumentam o isolamento. São indutores falsos de proximidade espacial, e o espaço não é indiferente. O espaço da internet é uma coisa, este escritório é outra. A comunicação hoje restringe-se a um meio que anula o espaço como realidade qualitativa.
Permita-me insistir no papel do filósofo. Alguma vez pensou que a Europa estaria na situação em que está? 
Não suporto o modo como os governantes portugueses têm agido diante dos poderes da União Europeia. Comportamo-nos como escravos e fomos pensados para escravos. Não sei se a não adesão nos teria levado até ao ponto em que estamos. Sei é que a agricultura foi dizimada e as pescas controladas de forma doentia, que as fábricas de tecidos entraram em colapso. Os europeus, como bons europeus, compram os tecidos às vítimas chinesas e indianas. E alegremente falamos de tolerância e direitos humanos, mas praticamo-los pouco. A questão dos refugiados é muito complexa. Uma coisa é compaixão e a compreensão de que a situação dos refugiados foi criada por uma guerra da qual eles não serão responsáveis, outra é deslindar as origens dessa guerra: lá dentro estão franceses, americanos, alemães, italianos, russos... Não tenho ilusões, nem percebo porque é que a Europa, em termos de política externa, é superior a qualquer outro continente.
Percorremos vários assuntos, o que não está longe da sua visão da filosofia enquanto disciplina que interliga, que estuda as relações. “Rebuçados Venezianos”, o próximo livro, não tem que ver com isto?
A filosofia está sempre à procura dos seus conteúdos, pode fazer-se filosofia com qualquer coisa. “Rebuçados Venezianos” é o título de um texto sobre a obra de Luísa Correia Pereira, uma pintora de quem fui amiga. E este texto é póstumo — ela não o pôde ler. Uma vez, a Luísa comprou em Murano uns rebuçados feitos de vidro e ofereceu alguns ao Jorge [Molder, o marido], que os fotografou para a série “The Secret Agent”. Entretanto, ela fez um pequeno óleo chamado “Rebuçados Venezianos”, que nós comprámos. É um nome que implicava uma série de nexos. É como uma discussão entre mim e ela — em que ela ganhou. Entre a arte e a filosofia, a arte ganha.
Diz isso com convicção e alguma tristeza.
Vejo muito fracasso na vida. Há pouco tempo comprei um livro da Arendt com poemas dela. E há ali um poema que me impressionou imenso, em que ela fala de uma insatisfação inesperada consigo própria. Eu partilho dessa insatisfação.
Essa insatisfação, o que é?
Não sei. Deveria corresponder a qualquer coisa que não consigo fazer ou alcançar. Mas não sei o que é que não consigo alcançar.
Será a filosofia? 

Pode ser a filosofia.
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 28 maio 2016