28 outubro 2016

"Se você é trans aliado e usa palavras como "individualismo", "liberalismo" e "materialismo" com o mesmo sentido que o discurso radfem emprega, certamente teremos aí um problema ou no mínimo uma questão para ser revista a nível teórico.
Vamos a um exemplo muito comum: dizer coisas do tipo "não binaridade não tem materialidade"; "x não é muito material" ou "y faltou materialidade" não faz o menor sentido a partir de um ponto de vista efetivamente materialista. Materialismo é uma perspectiva teórica a qual você se filia ou não; materialismo não reside sobre uma qualidade a qual certos objetos possuem ou não. Se você quer ser materialista o enunciado correto seria: "me proponho a pensar a não binaridade a partir de uma perspectiva materialista". Numa perspectiva materialista todos os objetos de análise são materiais.
Outro exemplo: lutar para que a expressão de gênero dos sujeitos não implique em violência individual - ou seja, para que os indivíduos de fato tenham mais liberdade individual - NÃO é uma luta liberal ou individualista necessariamente. É possível lutar para que a expressão de gênero seja respeitada por um viés de mercado - isso sim seria uma assimilação de lutas legítimas do movimento de resistência pelo capitalismo.
Surge, portanto, a partir de uma perspectiva materialista destas lutas, a necessidade em denunciar que o mercado não é capaz de fornecer liberdade e cidadania, pois a lógica que perpassa a inclusão pelo mercado é excludente (ou seja, a partir do momento em que você não tem $ você não é incluído). Mas simplesmente dizer que a luta contra a violência que perpassa o âmbito do indivíduo supostamente seria liberal ou individualista é um erro grosseiro, ainda mais quando estamos falando de questões de gênero e sexualidade; seria o mesmo que dizer que a luta pelo aborto é necessariamente liberal ou individualista porque se luta pelo direito ao próprio corpo.
Materialidade também NÃO é sinônimo de "concretude" no sentido de fixidez (já que o materialismo é dialético justamente pra mostrar que as coisas estão em constante transformação); materialidade também não é sinônimo do que nós achamos como "óbvio" ou "evidente". Vejam por exemplo que a materialidade de um objeto pode residir justamente no que desafia o senso comum sobre determinada coisa e no que não é possível de ser visto a primeira vista, digamos assim, como a mercadoria. As descrições sobre o fetichismo da mercadoria no sistema capitalista pela teoria marxista é um ótimo exemplo disto, já que a as relações sociais que produzem a mercadoria fazem ela parecer se tratar de uma pura troca de objetos entre sujeitos livres mediados por um valor de troca, sendo que o que a mercadoria faz é justamente "esconder" o seu processo de produção e o trabalho que é empregado em sua produção. Ou seja, a materialidade da mercadoria no sistema capitalista reside justamente nas relações que a produzem mas se camuflam no mesmo processo.
Então meus caros, se existe uma "materialidade do gênero" podem ter certeza que não se refere à obviedade e concretude de genitais, mas como o gênero se constitui numa relação social."