15 agosto 2016

"NÓS NÃO AJOELHAMOS - Silvio Pedrosa

Didático, absolutamente didático, o que está acontecendo com o evento por um grande Fora Temer que começou a ser organizado por pessoas independentes: o pós-governismo acusa o ato de "golpismo" porque ele não pressupõe ou deseja a volta de Dilma. A esquerda hegemônica do pós-governismo, como insistimos há tempos, não tem interesse em mobilizações que saiam do controle dos discursos e narrativas forjadas nos comitês centrais partidários que agora são as agências de marketing.
A falácia que insiste no golpe é dupla e se esclarece nessa reação.
Em primeiro lugar, o "golpe" é um topos de aglutinação de forças, uma linha que traça uma divisão a partir de uma moralidade política. Como todo moralismo, ele é hipócrita. Enquanto as cúpulas partidárias jogam o jogo bruto dos acordos e negócios sem nenhuma consideração por essa moralidade, ela é incessantemente (re)produzida como micropolítica, iluminando a dupla natureza da hegemonia petista: enquanto a macropolítica produz um poder pastoral, a micropolítica se investe de todo um rol de culpas interiorizadas e mobilizadas. Omnes et singulatim.
E em segundo lugar, o "golpe" se constrói, enquanto acontecimento significativo, a partir de uma operação de memória e esquecimento: enquanto se mobilizam memórias cinquentenárias, silenciam-se memórias do que se passou a três anos ou, mesmo, três meses (o PLP 257, por exemplo, enviado ao Congresso por Dilma; Belo Monte foi inaugurada por Dilma como espécie de último triunfo da república dos engenheiros). Um trato sério com o que efetivamente é aquilo a que chamamos "democracia" no Brasil não permite que se chame golpe ao que se passou. Não há golpe contra a democracia numa democracia organizada por golpes sucessivos. No cômputo geral do estado de exceção através do qual somos governados (talvez desde 1964, com ritmos e tons variantes), a dramaticidade e a ruptura da deposição de Dilma Rousseff (com todas as chicanas e gambiarras que aconteceram) não se destacam, salvo se você é um daqueles que identificam a democracia na cor da roupa do rei. Os princípios mobilizados para defender a cor da roupa da rainha são os mesmos que a própria, seus conselheiros e burocratas sistematicamente desrespeitaram em nome da governabilidade (a ponto de recorrerem a uma comissão internacional que eles próprios asfixiaram financeiramente quando a mesma, anos antes, os condenou por suas violações e abusos).
Não é Temer que preocupa o PT (Henrique Meirelles era o campeão também de Lula). Assim como não é o PT (isolado e em frangalhos) que preocupa Temer. O perigo que ronda sempre foi outro: a possibilidade de um outro pacto, constituído a partir de forças constituintes que ousaram quebrar o consenso das empreiteiras em 2013 (antes e diretamente relacionada com a Lava-Jato). Foi por esse consenso que Dilma e o PT reprimiram as ruas. Foi por esse consenso que Dilma foi descartada.
O jogo dos tronos é esse. Qualquer um que não se ajoelha perante tais regras, é considerado selvagem, um fora da lei. E foi na confusão entre selvagens e usurpadores que a rainha perdeu o trono. Mas eles não são os mesmos e essa distinção fundamental é o terreno a partir do qual qualquer mobilização real, por direitos e contra as reformas que se avizinham, precisa partir. Contra todos os tronos, só podemos contar com aqueles que não se ajoelham perante ninguém."