19 setembro 2014

Mataram um camelô

"Ontem a polícia matou um camelô em São Paulo. Outro Silva sem estrela, outro que não sabemos o nome. Um jornal fala em confronto, outro diz que na confusão a arma disparou. Jornalismo de estado. Só descobrimos o que aconteceu graças ao midiativista da multidão que filmou a cena. A coragem da verdade, que produz verdade de luta. O camelô desarmado levou um tiro na cara.
Não foi um assassinato. Foi uma execução. Seria reduzir a questão a policiais despreparados ou excessos, quando o terrorismo está na cidade. Como se tal fato pudesse ser enquadrado num desvio de conduta a ser apurado pelas nobres instituições liberais. O estado está caçando, intimidando, espancando, roubando e matando os camelôs. A violência contra o pobre acontece de norte a sul em cadência cotidiana, por dentro do sistema. É uma política pública: as guardas se armam, as polícias se militarizam, uma e outra recebem ainda mais poderes, enquanto operações de choque de ordem aceleram remoções e sumiços.
O camelô é o trabalho vivo em sua figura mais móvel e criativa. Quem não gosta de ter um camelô por perto, nas praças, na noite? Reinventa os fluxos de consumo, fortalece a ocupação das ruas, traz em si um fragmento para pensar e fazer outro tipo de trabalho, experiência urbana e mobilidade. Por isso, o poder da cidade tenta pacificá-los: só podem aceitar o camelô no camelódromo, da mesma forma como preferem sem-teto em abrigos e moradores de favela em cartesianos conjuntos habitacionais.
O camelô é uma força multiplamente subversiva. Durante o século 20, as lutas de esquerda deixaram de concentrar-se no trabalho para focar no emprego. Boa parte da esquerda aderiu à gramática do capital sob a desculpa de melhor regulá-lo. Foco numa inclusão pautada pelo emprego pleno, a indústria, a formalização dos negócios e serviços. Mas o emprego pleno é a plena subordinação. O camelô resiste inclusive a esse processo, ao afirmar uma autonomia maior, forma de vida legítima em seus próprios termos, e que não se deixa capturar.
Em janeiro de 2011, um camelô se ateou fogo ao ser impedido de trabalhar. O gesto extremo de Mohamed Bouazizi comoveu um país e disparou um grande ciclo de protestos, que ficou conhecido por Primavera Árabe. No Brasil, naquele 2013 incandescente, o sumiço de Amarildo trouxe a favela para o centro da revolta generalizada. Conseguiremos dar nome ao camelô executado ontem?"

Bruno Cava - Facebook