15 dezembro 2016

"INGENUIDADES NA GEOPOLÍTICA?

A miséria da esquerda dita "anti-imperialista" se mostra com clareza nessa espécie de simpatia estratégica pelo ditador Assad em meio à guerra civil síria. O argumento começa acusando os outros de ingenuidade, por não perceberem a big picture de um conflito global entre macroforças e estarem desinformados por mídias hegemônicas. O passo miserável não tarda: em meio às geometrias variáveis do conflito, identifica qual a posição dos Estados Unidos para se alinhar no que entendem como polo oposto, a posição "anti-imperialista". Daí é um passo até achar em Assad (pai e filho), filiado a um profundo nacionalismo de recorte racial, um baluarte contra o "Ocidente" e o ISIS. É o mesmo achatamento neoestalinista que identifica uma resistência antissistêmica em lordes mafiosos do capital como Putin ou Xi Jinping, como se os BRICS fossem um projeto de contrapoder mundial, ou que flertam com o populismo do concreto de Trump e o Tea Party, porque eles se opõem ao coração financeiro de Wall Street. Seria o mesmo que enxergar em Bolsonaro, no Brasil, uma posição forte contra a casta pemedebista, ou então apostar no fortalecimento da Igreja Universal contra o predomínio da Globo (e aí quando esta apoia o candidato das esquerdas, dá um nó na cabeça). Isso não é pensamento esclarecido e informado de disputa da hegemonia, mas hegemonismo histérico atrás de ídolos para dar algum sentido à morte do velho mundo. Aí ainda pulsa o coração oco de nostalgia da Guerra Fria, do mundo em duas cores, dos atalhos do anti-americanismo, um desejo mais ou menos secreto de pertencer a uma grande máquina civilizacional no palco da História, de ser uma engrenagem feliz, de ser soldado de uma Grande Causa (leitura recomendada: "O homem que amava os cachorros", L. Padura). Na Síria estamos numa dialética onde todos os piores estão juntos, as forças governistas, a FSA, o ISIS, o Front Sul, a Alcaida, a Turquia de Erdogan, os drones cirúrgicos americanos e os bombardeios arrasa-quarteirão russos (exceção nisso, os resistentes do Curdistão Sírio, ao norte). O que tem de pior no mundo se defronta arrastando o globo em sua tendência de aniquilação. Melhor pergunta do que tentar achar um lado para "curtir", para dar seu inútil apoio protocolar no Facebook - protegido pela simplória razão geopolítica dos anti-imperialistas - é voltar alguns anos e tentar compreender como a Síria acabou submetida a esse 'stalemate' de guerras vindas de todos os lados, justamente depois de ser o palco de um dos momentos mais potentes dos levantes da primavera árabe, que em 2011 se espraiou por 40 países na África e no Oriente Médio. Como a restauração dos protestos de massa pela queda do presidente Bashaar al-Assad, que os acusou desde o dia um de fantoches imperialistas e ligados ao terrorismo, e a seguir brutalmente os reprimiu, como essa contenção da mobilização democrática precipitou as condições para a guerra civil. Compreensão semelhante poderíamos buscar na Ucrânia insurgente da Praça Maidan, na Turquia do Parque Gezi e, mutatis mutandis, no Brasil de junho de 2013."

Buno Cava