19 dezembro 2016

"Está mesmo se consolidando uma tecnologia afetivo-política de produção de subjetividades impotentes, frágeis, infantilizadas e birrentas na esteira do resultado da eleição aqui nos EUA. Os amigos dizem estar "de luto", mas nada em seu discurso ou comportamento sugere que estejam mesmo realizando o trabalho do luto -- porque o luto, ao contrário da melancolia, é um trabalho, não uma simples condição.
No texto clássico de Freud, a melancolia é aquilo que acontece quando o sujeito sofre uma perda mas é incapaz de realizar o luto, incapaz de separar-se a si próprio do objeto perdido, de tal forma que ele começa a ver a si mesmo como parte daquele objeto que se foi. O resultado é que o mundo parece ter sido perdido, com a consequente queda no abismo da paralisia. As raízes disso são antigas e vêm de longe, claro, mas os últimos cinco dias foram o solo perfeito para que frutificasse esse discurso do medo e da impotência
Para o melancólico, qualquer acontecimento no mundo será uma confirmação de seu estado. Não importa que todos os indícios demonstrem que Bernie Sanders, um candidato bem à esquerda de Clinton, teria batido Trump com facilidade -- isso não muda a convicção do melancólico de que os eleitores de Trump são racistas movidos pelo ódio. Não importa que todas as evidências demonstrem que Elizabeth Warren teria batido Trump até mesmo no Meio Oeste --- isso não muda a convicção de que "não quiseram elegê-la porque era mulher". Não importa que você demonstre que a representação de Clinton na imprensa era infinitamente mais positiva que a de Trump -- o melancólico está convicto de que a culpa é da mídia. Não importa que você apresente pesquisa empírica que mostra que caso não tivesse havido nenhum candidato de terceiro partido, a derrota de Hillary teria sido pior, já que Trump teria colhido mais eleitores ali do que ela. Para o melancólico, a culpa é da Jill Stein.
Todo mundo é culpado, menos a própria candidata que perdeu, e que há 25 anos vem mentindo consistentemente, mudando de posição sobre tudo segundo a conveniência, fazendo campanhas eleitorais sistematicamente difamatórias, liderando bombardeios a outros países e favorecendo bancos, companhias de seguro, o lobby do petróleo e o lobby da guerra, exatamente tudo o que os eleitores deste ano queriam rejeitar.
Tenho visto alguns dos meus heróis intelectuais produzindo textos que parecem saídos da pena de um garoto de 10 anos de idade dando birra para não enxergar um fato. Por outro lado, cada incidente que acontece no país -- e boa parte deles nem aconteceu, como mostra a proliferação de fanfics depois desmentidas -- é apresentado como confirmação do apocalipse fantasiado pelo melancólico. Aquelas velhas balizas mais ou menos universalmente aceitas para o trabalho intelectual -- observação empírica, análise cuidadosa com atenção à nuance etc. -- viraram, na pluma de muitos de meus colegas, "relativização do horror". Manchetes com fatos horríveis? Posso produzir pilhas também, com qualquer data à sua escolha.
Essa terapia coletiva em que os círculos intelectuais dos EUA estão se transformando, em que você tem que tomar cuidado para não ferir marmanjos que têm estabilidade no emprego e ganham 150 mil mangos por ano, é só isso: denegação mesmo. Estão se apaixonando pelo papel de vítima."


Idelber Avelar