05 novembro 2016

"Isto é sobre a capa da última Carta Capital, mas é sobre mais coisas também.
'Little Britain' era um programa ruim, mas continha um personagem genial: Daffyd Thomas, "o único gay" de um vilarejo no interior de Gales. Genial não pelo conteúdo, mas porque sua estrutura formal era imediatamente familiar para alguém com anos de socialização e militância na dita "esquerda". Daffyd, cuja auto-identidade consiste em ser oprimido por ser o único gay de seu vilarejo, é sistematicamente incapaz de ver que há outros gays a seu redor. Para dize-lo em termos formais: temos aí um sujeito S para quem a definição do conceito X é de tal maneira restritiva que o único indivíduo que corresponde ao conceito X é o próprio S. Mas Daffyd vai além e expõe o mecanismo psicológico por trás disso: o motivo pelo qual S não consegue reconhecer ninguém a não ser ele mesmo como X é que sua definição de X foi decalcada de sua própria identidade, e esta identidade inclui "ser o único X".
Todo mundo reconhece imediatamente esta patologia. É a pequena seita revolucionária que considera apóstatas todos os que não seguem exatamente a sua linha sobre a situação dos barqueiros do Volga ou a coletivização na Albânia. Eram os governistas em 2013 (e ainda agora), sem entender que era possível ser crítico ao governo sem ser a favor da oposição. São aqueles que hoje, em nome da necessidade de superar a bipolarização, apenas invertem o binarismo e enxergam criptogovernismo em toda e qualquer mobilização que aconteça a seu redor. E é a esquerda institucional que, sem entender que é possível rejeita-la sem nem por isso abraçar a direita com convicção, prefere culpar os pobres pela derrota ao invés de perguntar-se no que precisa mudar.
É, em resumo, Narciso sempre achando feio tudo aquilo que não reflete seu rosto.
Há uma sequência de lições bastante profundas em Daffyd. A base de toda bipolarização não está no seu conteúdo concreto ("PT x PSDB", "eu x meu vilarejo"), mas no pensamento binário: a ideia de que ou se é X ou não-X, não se admitindo nem graus, nem mistos, nem outros (Y, Z...). A base do binarismo, por sua vez, está em possuir um conceito demasiadamente restritivo de X. E a base desta limitação, por último, está na auto-identificação: o conceito é restrito porque o modelo do conceito sou eu.
Já que gostamos tanto de recomendar às pessoas que leiam livros, lembro aqui uma lição que Machado de Assis nos deixou em "O Alienista": quando nossos conceitos se tornam de tal maneira exigentes que nada corresponde a eles, a não ser talvez nós mesmos, há duas possibilidades -- ou está errado o mundo, ou estão errados nossos conceitos. Se o mundo em sua totalidade está errado, então estamos, como já vejo alguns concluírem por aí, totalmente perdidos. Se o problema são nossos conceitos, contudo, é preciso suspende-los e recomeçar o trabalho de, a partir de uma massa de coisas que só podemos perceber de maneira aproximada ou indistinta, forjar noções mais precisas.
Esta não é, ao contrário do que pode parecer, uma tarefa individual. Nada ajuda mais na formação de conceitos do que abandonar a contemplação e engajar-se com outros e outras em um projeto comum. A boa notícia é que, neste exato momento, coisas para fazer não faltam."

Rodrigo Nunes