22 agosto 2016

Ao ver a abertura dos Jogos Olímpicos, pensei na grade dourada de Versalhes

Jorge Coli
Ao assistir pela televisão à abertura dos Jogos Olímpicos, pensei na grade dourada do palácio de Versalhes.

Essa grade foi instalada por volta de 1680, sob Luís 14, e retirada em 1771, sob Luís 15. Em 1838, o rei Luís Felipe erige, no lugar em que ela se situava, uma estátua de Luís 14 a cavalo.
Em torno dela, grande embrulhada de Luíses. Mas o importante é que existiu e desapareceu.
Em 2008, o arquiteto responsável pelo palácio decide refazer a grade. A documentação visual que se tem é por vezes contraditória. Não importa. Esse arquiteto, Frédéric Didier, tira a estátua equestre e reinventa a grade.
O motivo é "voltar ao estado de origem". A expressão, pela sua simplicidade e por sua evidência de verdade, seduz o público desprevenido. Ele pensa: vamos ter o prédio, o objeto, seja lá o que for, "exatamente como era". Infelizmente para os desprevenidos, no campo da cultura, nada é claro, simples ou transparente. E nada é como era.
O palácio de Versalhes foi, em sua origem, um pavilhão de caça que o rei Luís 13 fez construir. Seu filho, Luís 14, transformou-o na mais suntuosa das moradias. Os trabalhos nunca cessaram ali ao longo dos anos e dos reis.
A tal ponto que a grade atual, com pretensões de ser a de 1680, se apoia num pavilhão construído por Luís 18 –em 1820!
Voltar ao estado original: lema sedutor que se põe a serviço de uma poderosa mitologia. Que original? De Luís Felipe, de Luís 18, de Luís 15, de Luís 14, de Luís 13? Ou voltar à charneca de origem, antes que nada fosse construído ali?
("Voltar ao original", refazer "tal como era", é um motivo teórico. Na França, vem acompanhado por outro mais mesquinho. Deixo a palavra com o historiador Adrien Goetz: "Quando encontram um mecenas, os arquitetos chefes, que levam 10% de cada canteiro de obras, propõem reconstruções mirabolantes, como essa monstruosa grade dourada".)
Os edifícios –e todas as obras de arte– não cessam de se transformar. A autenticidade filológica que fixa é um instrumento da cultura, e não uma verdade fora do tempo. A filologia leva ao crime, escreveu Ionesco.
Em suma, a grade de Versalhes é uma engambelação, embora muita gente acredite nela. Creio que ela me veio à mente quando eu assistia à abertura dos Jogos por causa das crenças coletivas e do ouro-besouro que existem em ambas.
Não é adequado esperar invenções e profundidades num espetáculo do gênero. Basta algo que encha os olhos e crie euforia. A abertura atingiu seus objetivos, com índios manejando cipós luminosos e fogos de artifício.
Reafirmou também os mitos que a cultura nacional criou para o Brasil: mito das origens, mito da miscigenação (que possa existir miscigenação no Brasil é uma coisa, que se transforme isso num mito e numa crença é outra), mito da unidade, apelo aos sentimentalismos fáceis da ecologia (quando, no Brasil, as florestas são devastadas e os índios, dizimados) em modo insuportavelmente meloso com sementinhas, criancinhas e plantinhas.
A figura de uma linda loira foi celebrada como um símbolo quintessencial, enquanto os negros foram postos em seus lugares: samba, funk, projetos sociais. Tudo direitinho, onde devia estar.
A transfiguração da história, a ideia de que há um brasileiro genérico, "o brasileiro", faz-nos esquecer de que esse ser no singular é um construto fictício e só existe porque acreditamos nele. Trata-se de redução do múltiplo a uma unidade geral.
Houve época em que se imaginou esse brasileiro como melancólico, outra como cordial, ou ainda como malandro alegre, barroco, dionisíaco, mestre das gambiarras. São ficções e são crenças moldando comportamentos que buscam a semelhança com o grande modelo.
A abertura da Olimpíada foi hábil. Embasbacou e reiterou mitologias. Afirmou um "ser" que é "nosso". Muito coerente com a convicção de que cada atleta "é" o seu país. Havia ali uma pequena réstia, simpática, com os Atletas Olímpicos Independentes, desfazendo as fronteiras e os desenhos dos territórios.
Jean Renoir termina seu filme "A Grande Ilusão", sobre a Primeira Guerra Mundial, com dois militares franceses fugindo de uma patrulha alemã. De repente, os alemães cessam o fogo. Não havia marca alguma sobre a neve, mas os fugitivos alcançaram o território suíço: a fronteira invisível os separava e protegia. Um dos dois comenta: "Fronteiras são invenções dos homens. A natureza não se importa com isso". Lembro a frase admirável de Lobato em um livro infantil: "A humanidade forma um corpo só".