06 julho 2016

Por Carlitos Azevedo

Ontem muita gente compartilhou uma frase de Felix Guattari que, questionado se não dava muita importância à poesia, respondeu que: "Não sou eu, são as crianças, os apaixonados, os loucos, todos aqueles para quem a poesia é como o ar que se respira." Hoje é aniversário da poeta Wislawa Szymborska, que sempre melhora o ar que se respira. Até fumando tem o cuidado de jogar as baforadas para os deuses (provavelmente porque já não pode, em honra deles, como Homero fazia na Ilíada, imolar trezentos bois).
ESTAÇÃO
Minha não-chegada na cidade X
ocorreu pontualmente.

Eu tinha te avisado
naquela carta não-enviada.

Assim, não estavas ali na hora exata,
exatamente como previsto.

O trem parou na plataforma 3.
Muitas pessoas desembarcaram.

A ausência da minha pessoa
seguiu a multidão até à saída.

Algumas mulheres me substituíram
rapidamente
em passos rápidos.

Uma delas foi recebida
por alguém que eu não conheço
mas que ela reconheceu
imediatamente.

Assim que se viram trocaram
um beijo que não era o nosso,
depois disso uma valise foi roubada,
uma valise que não era a minha.

A estação ferroviária de X
passou no exame
da existência objetiva.

Tudo estava no seu lugar.
Os detalhes correram ordenadamente
sobre os trilhos do previsto.

Mesmo nosso encontro
chegou a ocorrer.

Sem que, contudo, nossa
presença conseguisse alcançá-lo.

No paraíso perdido
das probabilidades.


*

ELOGIO DA IRMÃ
Minha irmã não escreve poemas,
e provavelmente nunca escreverá poemas.
Herdou isso de minha mãe, que não escrevia poemas,
ou de meu pai, que também não escrevia poemas.
Sob o teto de minha irmã me sinto segura:
o marido de minha irmã por nada neste mundo escreveria poemas.

As gavetas de minha irmã não guardam poemas antigos,
em seu bolso não há poemas recém-escritos.
E quando minha irmã me convida para almoçar
sei que não o faz com a intenção de me ler poemas novos.
Suas sopas são deliciosas e dispensam significados ocultos.
Seu café nunca se derrama sobre manuscritos.

Em muitas famílias ninguém escreve poemas,
mas se um de seus membros começa, costuma haver contágio.
Às vezes a poesia cai em cascata sobre as gerações
e dá origem a remoinhos capazes de tragar os sentimentos familiares.

Minha irmã pratica uma prosa oral muito bela
e sua obra literária completa se reduz aos cartões postais
com um texto no verso que a cada ano repete a mesma promessa:
quando voltar
contará 
tudo
“tudinho”.

*
AUTOTOMIA
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando-se semi-devorar pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela bifurca subitamente em naufrágio e resgate,
em despojo e promessa, no que foi e no que será.

Bem no meio do seu corpo se abre um precipício
com duas bordas, uma estranha à outra.

Numa das bordas, a morte, na outra, a vida.
Aqui, o desespero, ali, a coragem.

Se existe balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se justiça existe, ei-la aqui.

Morrer não mais que o necessário.
Renascer a partir do que se salvaguardou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo - e sussurro quebrado.
Em corpo - e poesia.

Aqui, a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o "não morrer completamente",
três palavras que são como as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.