23 agosto 2014


“Jamais chegaremos a perceber o que se passa hoje em dia sem compreender o fato de que o capitalismo é na verdade uma religião.” O autor dessa proposição chama-se Giorgio Agamben, um eclético e persuasivo filósofo-poeta que sabe muito bem como cutucar com vara longa as “matrizes secretas” da sociedade contemporânea. Nossa época, diz ele, está marcada pela intervenção disseminada do poder na vida humana: se o exercício político era um “modo de vida” na “pólis” grega, o que temos hoje é um “estatuto jurídico exclusivamente passivo, no qual ação e inação, público e privado são obscurecidos e tornam-se indistinguíveis”. 


Vivemos, enfim, a era da “biopolítica” – termo introduzido por Michel Foucault – caracterizada pela expansão de dispositivos de controle que permeiam o espaço social e pulverizam de vez a cidadania. O direito separado da política, irremediavelmente. Não se trata de pessimismo – Agamben gosta de citar Marx para desfazer essa imagem: “As condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. Trata-se, antes, de um originalíssimo método investigativo que mergulha na escolástica medieval, entre outras inusitadas e dissonantes estratégias, a fim de desvelar a trama oculta das linguagens que nos governam e que, em última análise, fornecem o arcabouço dos poderes à nossa volta. 



O leitor brasileiro, que já dispõe de acesso a boa parte dessa obra diversa e erudita, tem agora a oportunidade de conferir uma das últimas etapas do percurso, intitulada Altíssima pobreza – Regras monásticas e forma de vida (Boitempo Editorial). O que têm a ver as regras do monaquismo cenobita – monges que “vivem em comunidade”, como diz o Aulete – com o espaço comum que compartilhamos em nossas vidas diárias? Refletindo sobre a natureza da regra monástica e suas diferenças em relação à norma jurídica, Agamben, com habilidade filológica, revela o desejo paradoxal da empreitada monástica de erigir uma existência fora do direito e “os diferentes poderes que regem a sociedade dos homens”. 



O voto voluntário de pobreza de São Francisco de Assis, ápice desse despojamento engajado – renúncia da propriedade e do “exercício do direito” – indica a possibilidade, ainda que efêmera e historicamente localizada, de um “novo uso do corpo e do mundo, suscetível de desestabilizar a violência dos poderes e do Estado”. Os séculos 12 e 13, tempo áureo do franciscanismo, reaparecem no século 21 como um “turbilhão”, como dizia Walter Benjamin (Agamben foi o editor da tradução da obra de Benjamin na Itália). Altíssima pobreza é mais um estudo da série “homo sacer”, em que Agamben tenciona dar a conhecer os “conceitos teológicos secularizados que governam nossa sociedade pretensamente laica”. 



“Homo sacer” é uma expressão do direito romano que designa pessoas banidas, que podem ser liquidadas a qualquer momento, mas não podem ser objeto de sacrifício religioso – vidas que estão incluídas no ordenamento jurídico “por exclusão”, como sugere o pensador italiano, que utiliza a expressão como uma espécie de metáfora da cidadania contemporânea. Um projeto que traz embutida uma leitura crítica do direito (uma das referências é o controverso cientista político Carl Schmidt); um conhecimento apurado das linguagens que informam esses saberes, grego e latim; e uma genealogia rigorosa dos conceitos e parâmetros que vieram desembocar num mundo em que o “estado de sítio” não é mais uma exceção, mas um estado permanente. 


Mas Giorgio Agamben não é um pensador rarefeito e enfurnado em um gabinete de leitura. Para dar uma ideia: em 1964, fez uma ponta como o apóstolo Felipe no longa O evangelho segundo São Mateus, do seu amigo Pier Paolo Pasolini; entre 1986 e 1993, presidiu em Paris o Collège Internacional de Philosophie, instituição pioneira que admite alunos sem nenhum tipo de burocracia e exigências curriculares; e destaque também para uma ativa militância contra os excessos dos “controles de segurança”, especialmente dos EUA e da Europa, impostos em função do medo dos ataques terroristas (vide o artigo Comment l’obsession securitaire fait muter la democratie, publicado em fevereiro de 2014 no Le Monde Diplomatique). Sem falar na poesia – cuja função, recomenda, é “devolver os nomes sagrados ao uso comum dos homens através de uma profanação”. Linguagem em alta voltagem. 


. João Lanari Bo é professor de cinema da Universidade de Brasília



Altíssima pobreza – Regras monásticas e forma de vida
. De Giorgio Agamben
. Boitempo Editorial, 192 páginas

fonte: aqui