26 julho 2014


UNS POUCOS VERSOS DE ARIANO

Sou um interessado no deslocamento do saber; na tentativa de me aproximar daquilo que me é estranho - e por isso desafiador - como uma maneira de acariciar a vida e suportar a noite arrepiando nas arrelias. Amadureci durante bom tempo uma decisão passional que, todavia, reverbera no que escrevo e no que estudo. Abri mão, propositalmente, do mergulho sistemático nos mares da grande literatura, da filosofia, dos dogmas, dos credos políticos, da música de concerto, das catarses coletivas, das iluminações transformadoras, do engajamento convicto, do requinte dos salões, do fogo purificador das assembleias e coisas similares. Eu precisava disso. Busco, desde então, me aproximar - para compreender, escutar, calar e escrevinhar - das formas de invenção da vida onde, amiúde, ela nem deveria existir de tão precária. Mas existe e canta. Minha escrita, por isso, é cambona imperfeita de foliões anônimos, bêbados líricos, jogadores de futebol de várzea, putas velhas, caminhoneiros, retirantes, feirantes, capoeiras, cordelistas, pretos velhos, encantados, meninos descalços, devotos, beatas, iaôs, ogãs, marujos, namorados do subúrbio, coveiros, tocadores de rabeca, mestres de bateria, baianas, bicheiros, malucos, rezadeiras... Reforcei neste trajeto a minha certeza de que o caminho que devo trilhar - e ele é, evidentemente, um caminho radicalmente pessoal - é mesmo o da alumiação das pedras miúdas. Orunmilá, o grande Senhor do saber e do destino, marcou essa aventura em mim como a única forma de conciliação viável com a natureza do meu odu. Assim eu me acalmo, piso leve sobre a terra e busco o Ìwà Pèlé dos iorubás: o bom caráter, a gentileza, a conciliação com o mistério e o passo que não macula a aldeia. Cultuo a minha ancestralidade cotidianamente; quem quiser que me entenda. É por isso que, de toda a obra maior de Ariano Suassuna, guardo especialmente de cor e salteado uns poucos versos do mestre, daqueles que brado como profissão de fé. Pensei muito neles quando Ariano encontrou-se ontem com a Onça Caetana. Ai vai:

Profetizo aos notívagos, aos bêbados
E canto às dançarinas e aos amantes,
Aos vagabundos e luxuriosos,
Às ébrias de paixão, aos nigromantes,
A todos que queimam nos excessos
Das veredas perdidas dos errantes.

Daqui eu vejo a corça, a asna-selvagem
E as coxas de uma delas, profanadas.
Na barcaça do rio, a cisne-fêmea,
E na beira da praia, a leoparda,
Romã-solar aberta e lua-negra
Fechada à tarde escura e à noite clara.

É isso.


Luiz Antonio Simas - Facebook