19 julho 2014

"Na esteira da prosa: seria o Brasil um Estado de direito ou de exceção agora, diante da prisão em série de ativistas? Na prática, não importa: antes de tudo, ele é um Estado. E os Estados são tanto o senhor bondoso e glorioso quanto seu capanga malvado. O tira bom e o tira mau. Segue aqui a Conclusão do meu TCC, de Novembro de 2012:
(O Estado de Exceção e o Sistema Constitucional Brasileiro)
CONCLUSÃO
Chegamos ao fim da nossa longa jornada. E estamos cientes do quão polêmica é a natureza do que foi escrito. Mas longe de ser um trabalho pessimista, pretendemos – talvez de forma ingênua, mas certamente de um modo corajoso – expor aquilo que consideramos a fratura central da nossa organização política, qual seja, a desdita resultante da ordem transcendental do Estado, coisa que a doutrina cândida do “constitucionalismo democrático” e o funcionamento do “Estado de Direito” não dão conta, apesar do mitologema recorrente.
Ter a coragem de denunciar o que o Estado pode fazer, em vez de daquilo que ele deve, não é um chiste espirituoso, mas sim uma proposição assentada em um rigoroso fundamento ontológico: de pouco nos adianta pensar no que o Estado deve ou não deve fazer, uma vez que feito à imagem e perfeição do deus bíblico, ele é, em último caso, para quem todos devem – infinitamente – enquanto enunciador sem nome e inominável de todos os nomes: credor supremo que pela própria condição de inominável, não pode ser cobrado... A exceção soberana é a medida que subsome os direitos constitucionais – que tornam, afinal, a sujeição relativa – no dever sem fim do Estado, tornando a sujeição absoluta.
O Estado qualifica sem poder ser qualificado por possuir uma abertura permanente, coisa que fica evidente quando avaliada sua ponta, especialmente, e como demonstrado, o mecanismo de guarda da Constituição: quem vigia o vigilante? Haverá sempre algum componente seu que paira, podendo dispor não apenas sobre os limites dos outros como, autorreferencialmente, sobre os seus próprios; na vigilância suprema, o panopticismo reina, mas reina quem está oculto, o primeiro na ordem vigilante, mas que resta ele próprio escondido ou disfarçado – é preciso, pois, levar adiante a tarefa positiva e iconoclasta que Espinosa e Marx empreenderam em suas respectivas épocas: Deus tem nome, é a Natureza, ou a este sistema econômico não é natural, ele é se chama capitalismo.
O mecanismo da exceção, portanto, é pressuposto do funcionamento do Estado, uma vez que isso reside em seu conceito e não em seu predicado. Essa constatação não é um elogio, de forma alguma, ao conformismo: ele demonstra apenas quais são os riscos reais e próprios à organização estatal – exemplificado pelo nosso próprio sistema suas fragilidades óbvias, disfarçadas pela cortina de fumaça modernosa do ativismo judicial – o que, no entanto, nos leva a um questionamento ético radical: como viver neste quadro perturbador?
Não é fácil responder, mas, nunca talvez nunca tenhamos uma única resposta. Nossa posição, certamente, não será a de desistir, de se conformar e esperar a morte chegar, ou assumir uma máscara qualquer que nos permita tirar alguma vantagem pessoal do mundo como ele é: se dizemos que o mundo é, não é por outra razão senão pelo fato dele estar a funcionar assim, nada que não possa alterado. E sequer é possível retirar vantagem alguma disso, exceto no sadismo ou na autoilusão.
A exceção soberana ser pressuposto do Estado, e o constitucionalismo ser, no máximo, uma doce ilusão também não é prova da supremacia definitiva da face tenebrosa do Estado: o poder encontra uma limitação porque ele jamais é maior do que a vida que o criou e em relação à qual ele age como parasita; a declaração de exceção soberana encontra seu contrapeso na intensidade do grito de resistência da multidão nas ruas, em seu devir-criança: o rei está nu! A fábula de Andersen toma forma definitiva, pois consegue dimensionar exatamente o caráter do real da ficção do poder e da autoridade (hoje, perfeitamente unidos como uma águia bifronte), isto é, das cortinas de fumaça do poder.
Dentro da racionalidade do Estado de Direito – e do direito estatal, por tabela – é impossível escapar à tautologia da dominação: estaremos sempre rodando em círculos como o cão que persegue a própria cauda, pois o instrumento da palavra final está posto de forma indelével. A última instância é sempre capaz de determinar todos os limites, inclusive o seu, em seu benefício e em detrimento de todos. Poderíamos dizer que o STF não deveria, embora possa, mas ele pode sumamente porque no fim das contas, ele não deve mesmo, dentro dessa racionalidade nós é que somos os devedores eternos: eles podem dizer o que eles devem ou não devem segundo a lei em relação à qual eles são intérpretes maiores.
Também não será o caso de polemizar sobre a melhor forma de guardar a Constituição: nobre de sangue, juiz, operário ou camponês; o homem é o homem e suas circunstâncias, ou melhor, seu desejos – que se tem alguma essência, como diria Espinosa, é o próprio desejo1. A ordem transcendente do Estado, contudo, não é como as pedras ou o mar. Ela é fruto da nossa imaginação, existe em nossas cabeças e só a partir daí ela enseja qualquer prática política ou coletiva. Desse modo, temos um horizonte pleno de alternativas, onde tudo que é possível existir, existe, mesmo o inexistente.
Nesse sentido, se o liberalismo lutou para cessar, de qualquer modo, a revolução e o fascismo procurou apoderar-se da vida, pelo medo da morte, na forma da atualização da violência e na reiteração da ameaça, o chamado neoliberalismo não pertence a outra escala de coisas: ele é a luta para suspender, por dentro do Estado, as conquistas que relativizaram a sujeição, por dentro da ordem jurídico-constitucional, em virtude das lutas sociais e políticas dos últimos duzentos anos. Sairá de cena, entretanto, o Estado e entrará o Mercado, mas o movimento não se opera, nem se sustenta, sem o primeiro, nem o segundo é desfeito da natureza teológico-política do primeiro; sai de cena o discurso clássico da esperança-medo do soberano e vem o da segurança-desespero dos novos tiranos.
Tudo o que o Estado, ou Mercado e as diversas formas de poder supostamente produzem vem da vida, é parasitado da vida. Aquilo que é autorizado já existia antes da autorização e não precisaria dela para se perfazer: a ilusão mora precisamente aí; o veto não é o único poder real, ele é a realidade do poder. Ficção que produz real só no momento que, enquanto ideia inadequada, afeta o corpo da multidão e o faz se submeter à proibição – cuja eficácia não precede a submissão, mas exatamente ao contrário, embora precise parecer assim para funcionar.
Serão, portanto, a revolta, a insurgência e a revolução os mecanismos capazes de, eventualmente, fazer a máquina-Deus do Estado recuar, pois elas, mesmo que em uma intensidade pequena, denotam o quanto sua força é ilusória: sobretudo porque a insubmissão prévia frustra sua própria capacidade de mando, fundada no discurso da esperança e do medo – a promessa constante de redenção ou punição, conforme se aja – ou mesmo da segurança e do desespero como nos dias atuais.
A revolução, aliás, que jamais morreu, como proclamou Napoleão, por mais que ele gostaria que isso fosse verdade: ela está em curso em plena luta com as variadas formas de dominação e é precisamente esse conflito, essa luta de gigantes, cuja resultante é o estado de coisas em que vivemos, como acerta o mestre Antonio Negri.
É a imanência absoluta tal como compreendida em Espinosa, que perpassa esta obra e diz algo bem simples: Deus é a natureza, causa e efeito de si mesmo. Logo, não há dívida infinita, uma vez que seria [mesmo de jure] devermos para nós mesmos. A servidão é a ideia inadequada que se perfaz em paixão triste, na ideia da necessidade do poder, enquanto a liberdade é a resistência e a persistência, a ideia adequada que se faz alegria: nada de esperança em um mundo melhor, mas a alegria em relação a um mundo cheio de contradições, onde a crise é abertura e chamado para a luta, isto é: a constituição de um direito do comum e para o comum, a necessidade de um direito que vá para além do Estado – o que demanda uma ciência jurídica que conceba o fenômeno jurídico para além do Estado e do discurso moderno."
via Hugo Albuquerque - facebook