19 julho 2014

ENTRE DEMOCRACIA E DITADURA - Bruno Cava


"O Brasil hoje não é um estado de exceção. Os anti-intelectuais me perdoem o preciosismo, mas é errado nivelar a situação atual com o período ditatorial de 1964-85. Vivemos num regime constitucional em que convivem, por dentro do direito e das instituições, dispositivos tanto democráticos quanto ditatoriais. Com a constituição de 1988, parte dos mecanismos de funcionamento da ditadura se transferiu à nova realidade jurídica e institucional. A polarização anterior entre ditadura x democracia se internalizou no novo regime. 


De um lado, os mecanismos autoritários tão evidentes nas polícias, no racismo institucional, na grande mídia corporativa, num autoritarismo difuso pela sociedade que se revela em máximas "bandido bom é bandido morto", "vagabundo tem que apanhar" ou "protesto é coisa de desocupado". De outro lado, a possibilidade de organizar-se politicamente, de realizar manifestações, de poder escolher entre programas realmente diferentes, bem como um arcabouço institucional para se lutar contra o racismo, a miséria, a homofobia, a violência de gênero, a violência diluída no cotidiano pela exploração econômica, e refletida em precários serviços de saúde, educação ou transporte.

Todo o período de redemocratização significou uma disputa entre quem tenta desativar o estado de exceção interno ao direito e às instituições, e aqueles que tentam arrochá-lo. As lutas de 2013 foram um momento singular em que se colocou esse conflito a nu, desejando seja a ampliação da democracia, seja a contração da ditadura, por exemplo, com a campanha Cadê o Amarildo ou pela reforma das polícias. O pós-2013, no entanto, trouxe um refluxo dessas aspirações de aprofundar a redemocratização. O refluxo significou a dilatação do estado de exceção. A ditadura interna se descolou da realidade das favelas, --- onde até hoje a redemocratização apenas esbarrou, --- e passou também a ameaçar o direito de manifestação e a auto-organização em geral. 

Isto não significa que o estado de exceção tenha vencido e que o regime constitucional de 1988 se tornou apenas uma farsa. Significa, sim, que a relação de força entre ditadura e democracia pendeu para o outro lado, depois de um momento expressivo de anseios democráticos, em 2013. Significa, além disso, que esse tensionamento entre um e outro aconteceu, e continua acontecendo, por dentro de várias instituições. 

Isto aparece, nos últimos episódios, quando vemos:

a) um juiz de 1ª instância decretar uma prisão e um desembargador conceder habeas corpus; 

b) um delegado de polícia chamar manifestantes de criminosos, enquanto outro não só se pronunciar contra os desmandos, como ele próprio participar dos movimentos; 

c) quando a OAB de um Wadih Damous se coloca na linha de frente da resposta pela democracia; 

d) quando o governo federal alinha-se ao consenso criminalizador mas elementos desse mesmo governo, minoritários porém nada desprezíveis, tentem "segurar a onda" ou abrir uma discordância pública; 

e) ou mesmo no velho PT, assistirmos aos governistas mais idiotas gozando por repressão e destruição dos adversários, mas ao mesmo tempo ainda existirem cabeças preocupadas com o fato que, uma vez sedimentada a ditadura, eles próprios serão os próximos alvos --- aqui não há nenhuma caridade, apenas uma avaliação lúcida de um processo repressivo que pode rapidamente fugir do controle, combinando as pulsões reacionárias que estão correndo por aí desde antes de 1988.

Portanto, não voltamos a 1964 e, me deem licença, mas está politicamente errado quem achata todo o arcabouço institucional e todo o direito, como direito do opressor ou democracia falsa. Estamos noutra situação histórica e que exige outras estratégias e outras táticas. Eu diria até outra ética e outra estética. 

A luta contra o estado de exceção *também* passa por dentro do direito e das instituições, apesar de todos os retrocessos do pós-2013. Essa diferença não me parece filigrana intelectual, mas sim uma variável fundamental ao redor do problema do que fazer."