24 junho 2014

Por M. Foucault (via Eduardo Sterzi facebook)

Somos apenas indivíduos aqui, nãopessoas públicas ou relacionadas a governos, sem outro motivo parafalarmos, ou para falarmos juntos, que certa dificuldade compartilhada em tolerar o que está acontecendo.

[…]

Quem nos designou, então? Ninguém. E é precisamente isso que constitui nosso direito. Parece-me que necessitamos ter em mente três princípios que, acredito, guiam essa iniciativa e muitas outras que a precederam […].

1. Existe uma cidadania internacional que tem seus direitos e seus deveres e que obriga cada um de nós a falar sem hesitação contra todo abuso de poder, quem que sejam seus autores e suas vítimas. Afinal, somos todos membros da comunidade dos governados, obrigados, portanto, a mostrar mútua solidariedade.

2. Porque dizem estar preocupados com o bem-estar das sociedades, os governos se arrogam o direito dedesconsiderar como perdas e ganhos a infelicidade humana que suas decisões provocam ou que sua negligência permite. É um dever dessa cidadania internacional sempre apresentar o testemunho do sofrimento das pessoas aos olhos e ouvidos dos governos, sofrimentos a respeito dos quais é uma inverdade dizer que esses governos não são responsáveis. O sofrimento dos homens nunca deve ser um resíduo mudo da política. Ele fundamenta um direito absoluto a se pôr de pé e falar àqueles que detêm o poder.

3. Devemos recusar a divisão detrabalho que geralmente nos é proposta: os indivíduos podem ficar indignados e protestar; os governos refletirão e agirão. É verdade que os bons governos apreciam a santa indignação dos governados,desde que esta permaneça verbal. Penso que precisamos estar cônscios de que muito comumente são aqueles que governam que falam, são capazes tão somente de falar e não desejam nada além de falar. A experiência mostra que se pode e se deve rejeitar a função teórica da pura e simples indignação que é imposta a nós. A Anistia Internacional, a Terre des Hommes e os Médecins du monde são iniciativas que criaram este novo direito: o de qualquer indivíduo intervir efetivamente na esfera da política e da estratégia internacionais. A vontade dos indivíduos deve demarcar para si umlugar em uma realidade cujo monopólio os governos vêm tentandoconseguir – monopólio que precisamos arrancar deles pouco a poucoe dia a dia.

[A ocasião para esta exposição, publicada no Libération em junho de 1984, foi o anúncio em Genebra da criação de um Comitê Internacional contra Pirataria.]

[Sobre este artigo: traduzido a partir da tradução ao inglês de Robert Hurley et al. publicada no volume 3 de Essential Works of Michel Foucault (editado por James D. Faubion).]