03 novembro 2016


"Sobre por que o discurso do golpe e as culture wars entre coxinhas e petralhas foram sintomas do niilismo comunicativo que se seguiu à pacificação das jornadas de junho de 2013, reclamando num dos polos uma unidade de classe que no fundo era apenas uma unidade identitária afiançada pela elite universitária/cultural e grupos com interesses corporativos na manutenção do governo, e sobre como a crítica (em regra, a mera denúncia reativa) contra a ascensão evangélica embute uma visão ironicamente teológica na ideia de esquerda e de estado progressista, convido à leitura desta crítica que escrevi sobre o filme "Aquarius", link abaixo, que, me parece, antecipou a composição social do voto nas duas maiores metrópoles brasileiras, no Freixo e no Haddad, e traz alguns antídotos ao rol de lamúrias circulares e acusações inúteis ante a iniludível derrota. Como primeiras impressões diante da aparente confirmação do diagnóstico desse texto, eu diria que a insistência na "unidade das esquerdas", em "barrar a onda conservadora" e na "defesa do estado laico" tem soterrado a problematização fundamental dos termos "estado", "esquerdas" e "progresso" (para não falar de "unidade"), debaixo de uma massa interminável de denúncias em tom de escândalo, lacrações intrabolhas e um auto-comprazimento psicanalítico, que se desdobra num moto contínuo de textões e artigos de jornal que não dizem nada. Eu colocaria, além disso, que a miséria da esquerda pós-2013 não é simplesmente prática, mas teórica, e que antes de sair fazendo um mistificado "trabalho de base" (sempiterno refúgio cepecista que postula um Outro), o caso é refazer suas referências teóricas (a leitura de "Sobre a Questão Judaica", para começar), e abandonar de vez seus ídolos intelectuais e culturais, que não só erraram espetacularmente em tudo, como tudo indica continuarão errando por muito tempo. Sem reciclar a teoria e largar o entulho narrativo e simbólico, mover-se continuará uma tarefa quimérica."



1. Discurso do golpe. narrativa construída sob encomenda pelo governismo em final de feira, nas várias versões: golpe imperialista, pós-moderno, brando, neoliberal, judicial, midiático ou parlamentar, cuja última linha consistia em dizer que a presidente era honesta e que "impeachment sem crime de responsabilidade é golpe". O apelo à legalidade em meio a escândalos de ilegalidade do PT e a hipérbole conferiram-lhe um caráter irremediavelmente farsesco. 

2. Culture wars entre coxinhas e petralhas. Batalha de Stalingrado memética baseada numa contraposição artificial entre duas identidades, opondo o palhaço sério do esquerdismo cessante e o anticomunismo raivoso de uma direita simétrica, enquanto o grosso das mobilizações entre 2014 e 2016 foram indignados ante a crise econômica, política e urbana.

3. Jornadas de junho de 2013. Mais colossal protesto de classe da história do Brasil, articulado a um ciclo global de mobilizações, e concentrado em grandes metrópoles sob o efeito de pressões descomunais do urbano e da saturação do modelo político-econômico de desenvolvimento nacional. A referência "jornadas de junho" aponta para o levante proletário de 1848, primeira revolução moderna.

4. Niilismo comunicativo. Momento em que as narrativas passam a girar sobre um vazio, transpondo as relações de força a relações morais em termos de justiça ou injustiça, certo ou errado. O núcleo móvel do vazio então passa a distribuir as significações segundo uma lei da falta. Existem teorias neogramscianas que defendem a repolitização do significante vazio, porém, no Brasil, essa estratégia se reduz a apelos autorreferenciais de "saída à esquerda" ou "retorno ao PT" (amiúde esses dois apelos coincidem).

5. Unidade identitária. Unidade baseada na fixação de identidades em vez da diferenciação produzida pelas minorias. Discurso que prioriza o estático e o imóvel, em detrimento da mudança e do contágio. Pilar do discurso conservador, desde Edmund Burke.

6. Ascensão evangélica. Crescimento em quantidade e diversidade de denominações religiosas pentecostais, de modo articulado à expansão do capitalismo no Brasil nos anos 2000-2010 e da formação de uma nova composição de classe, dita "nova classe média", iniciada com o Plano Real e acelerada com o arranjo lulista.

7. Aquarius. Filme dirigido por Kleber Mendonça Filho em 2016, autor também de "O Som ao Redor" (2013).

8. Freixo. Marcelo Freixo. Candidato do PSOL à prefeitura do Rio em 2016, derrotado por Marcelo Crivella (PRB) por grande margem, no segundo turno.

9. Haddad. Fernando Haddad. Prefeito cessante (2012-16) e candidato do PT à prefeitura de São Paulo em 2016, derrotado por grande margem já em primeiro turno, por João Dória Jr. (PSDB).

10. Cepecismo. CPC da UNE: Centro Popular de Cultura. Corrente que preconizava a "subida do morro" pela classe média intelectualizada, no começo dos anos 60, para promover eventos culturais, pedagogia do oprimido, cinema engajado e teatro de arena.

11. "Sobre a questão judaica". Um dos primeiros textos políticos do jovem Marx, escrito quando ele tinha 25 anos, polemiza com os jovens hegelianos de esquerda e sua concepção de estado moderno laico, mostrando que há mais teologia em "estado" do que na questão de ser laico ou não. Promove a emancipação humana em relação ao estado em vez da emancipação cidadã por meio dele.

Bruno Cava