02 julho 2016


"Figos frescos:
Quem sempre foi comedido a comer nunca soube o que é uma comida, nunca a conheceu a fundo. Desse modo conhece-se, quando muito, o prazer de comer, mas não a gula, o desvio da estrada plana do apetite, que conduz à selva da glutonice. Na glutonice juntam-se as duas coisas: a desmedida do desejo e a uniformidade daquilo que o sacia. Comer como um animal significa: de uma vez, sem deixar resto. Não há dúvida de que assim se chega ao mais fundo da coisa devorada do que pelo prazer de comer. Como quando se dá uma dentada na mortadela como se fosse um pão, como quando nos enfronhamos no melão como numa almofada, (...) ou esquecemos pura e simplesmente tudo o mais que neste mundo é comestível diante de uma bola de queijo flamengo. Como tive eu pela primeira vez uma experiência destas? Foi antes de uma decisão das mais difíceis. Tinha uma carta que, ou metia no correio, ou rasgava. Andava com ela no bolso há dois dias, mas nas últimas horas deixara de pensar nisso. (...) Eu segui vagarosamente o meu caminho, atordoado, quando dei com um carro cheio de figos, à sombra. Foi por puro ócio que me aproximei, foi por esbanjamento que comprei, por uns quantos 'soldi', um quarto de quilo. (...) Assim saí dali com figos nos bolsos das calças e do casaco, figos em ambas as mãos estendidas, figos na boca. Não podia parar de comer, tinha de procurar defender-me o mais depressa possível daquela massa de frutos rijos que me tinham assaltado. Mas aquilo já não era comida, era um banho, de tal modo o aroma resinoso me penetrava na roupa, se me pegava às mãos, enchia o ar através do qual eu ia arrastando o meu fardo. E a seguir veio o desfiladeiro do paladar, no qual, depois de vencidos o fastio e o enjoo, as últimas curvas, a vista se abre sobre uma inesperada paisagem do palato: uma maré de gula, insípida, contínua, esverdeada, que já só conhece as ondas fibrosas e pastosas da polpa dos frutos abertos, a transformação total do prazer em hábito, de hábito em vício. Senti subir em mim um ódio contra aqueles figos; tinha pressa em acabar com aquilo, libertar-me, afastar de mim aquelas coisas gordas que rebentavam, e comia para as destruir. A dentada tinha recuperado a sua mais remota vontade. Quando arranquei do fundo do bolso o último figo, a carta estava pegada a ele. O seu destino estava traçado, também ela tinha de ser sacrificada à grande limpeza: peguei nela e rasguei-a em mil pedaços."



Walter Benjamin

(via: Carlito Azevedo)