01 dezembro 2014

Sobre o caso Idelber Avelar

Sobre o caso do Idelber, tenho a dizer apenas que não se trata de uma questão judiciária ou moral, mas ética e política.

Não sei se algo ali pode vir a configurar crime pelas leis vigentes, e nem acho que é isso que está em jogo. Acontece que são denúncias de práticas abusivas que, sendo crime ou não pelas leis de um Estado que serve acima de tudo aos interesses de opressores, devem ser respondidas sempre que ocorrem. A questão não é judiciária, mas ético-política. Não dá pra compactuar com práticas abusivas de quem ocupa espaços de militância, inclusive virtual, dentre outros motivos porque elas tornam esses espaços inseguros para as mulheres que (neste e em muitos outros casos) são os alvos desse tipo de abuso. Não se trata de expor "criminosos". Estes, a depender do crime (e especialmente se este não coloca o criminoso no papel do opressor), que sejam muito bem-vindos. Não se esqueçam que quem ocupa e resiste no campo e na cidade é para o nosso Estado criminoso, o mesmo para as mulheres que interrompem a gravidez. O modelo punitivista da justiça estatal não me parece parâmetro adequado para um debate ético-político. Com todas as suas formalidades e garantias constitucionais, incluindo a presunção de inocência, a justiça mantém há mais de um ano o Rafael Braga preso por porte de Pinho Sol.

Portanto, havendo ou não indícios de crime nas denúncias, o ponto que se coloca não é o criminal, mas o da presença do assédio, da manipulação, do uso e do abuso de privilégios sociais, etc. Autodefesa não é só fazer escudo pra encarar o choque, é também criar ambientes cada vez mais livres de opressão e nos quais se possa ter uma base de confiança. Autocrítica não é só fazer análise de experiências de organização e luta, é também reconhecer e combater os comportamentos opressivos que cada um de nós trazemos, especialmente aqueles que vêm de vivências privilegiadas. Ação direta não se pratica só em atos de rua, se pratica também em formas de lidar com opressões que não necessariamente passam pelos canais institucionais - e a exposição pública de opressões privadas é uma dessas formas. Uma forma de ação que a tecnologia facilita e que, como qualquer outra, está sujeita a erros a serem objetos também de autocrítica sempre que for o caso.

Pode ser uma perseguição injusta e mal-intencionada? Sempre pode ser, mas essa hipótese nunca, de maneira alguma, deve ser colocada antes das demais num caso em que quem expõe são pessoas em situação social (especialmente, neste caso, de gênero) desprivilegiadas. As palavras delas vêm primeiro e deslegitimá-las por princípio é silenciá-las e contribuir para perpetuar um ambiente tranquilo para todos os abusadores. Quem foi exposto não é alguém sem condições de contrapor as acusações, na verdade é precisamente o contrário: é alguém com domínio das linguagens socialmente aceitas e com projeção razoavelmente grande para ser ouvido por muita gente. Alguém que deve ser ouvido atentamente assim que se pronunciar a respeito. Não se trata nem de linchamento extra-judicial, nem de justiça estatal, e sim de autodefesa e de uma oportunidade de autocrítica para todos nós. Penso que para que seja isso, e para que não façamos disso um tribunal moral, importa tanto agir com cautela com relação aos desdobramentos da exposição quanto, principalmente, fazer um debate qualificado, que vá para além do indivíduo. E penso que isso vale pra todos os casos do tipo, pois o Idelber não é o primeiro nem será o último.

Para um debate qualificado, uma das questões que se colocam é a da confusão entre o que há de fetiche e o que há de abuso nos diálogos expostos. Quer dizer, existem limites bem marcados entre práticas fetichistas/BDSMers e abuso. Limites que são debatidos e reconhecidos pelas comunidades praticantes dessas formas de expressão da sexualidade e que duvido que alguém com tanto acesso a bens culturais e residente nos EUA não tenha tido contato. Limites que em grande medida são simples decorrências da ética mais elementar que vale pra todo o resto do que diz respeito a sexualidade, pois seu fundamento central é o consentimento. Dito isso, tudo indica que o Idelber ultrapassou bastante esses limites. Portanto, é um erro atacar o fetiche para atingir o abuso. Essas coisas não se misturam, ainda que exista sim muito abuso entre fetichistas, como também existe entre não-fetichistas. Situar o problema aí, recriminando que ele fale em "marido corno", ou que use vocabulário escroto numa conversa sexual, dentre outras coisas, é errar feio o alvo. O problema aí é outro, é o assédio na abordagem, é o constrangimento com foto de pau não solicitada, é a manipulação de quem está entrando num jogo sem estar consciente de que jogo se trata, etc.
Resumindo, o problema é que não é consensual porque pra ser consensual não basta a pessoa dar continuidade à conversa. É preciso, dentre outras coisas, que haja interesse de todos os envolvidos em participar de um jogo sexual, seja real ou virtual, e que este interesse não seja manipulado através da exploração das fragilidades das pessoas. A conversa suja em si, por mais suja que seja (e conversas bem mais sujas que essas podem não ter absolutamente nada de abusivas) não é o que desqualifica o cara. Se fosse esta a questão seria puro moralismo, pura inquisição. Então se trata de separar o abuso, de combater o abuso, porque a confusão entre abuso e fetiche só serve para que abusadores usem fetiche de fachada e para que fetichistas/BDSMers sejam recriminados sem terem cometido abuso algum.

Entendo, portanto, que a exposição do assédio pelas duas mulheres se coloca numa esfera que não é nem a judicial nem a moral, mas de natureza ética e política. Sendo que a questão colocada nos relatos é sobretudo a da consensualidade, que no meio da treta muitas vezes é reduzida à opção dessas mulheres em continuar ou não conversando com ele - uma das muitas variantes da culpabilização da vítima. Só que consensualidade não é só isso. Para não serem opressivas e abusivas, as práticas sexuais podem escapar a normas morais estabelecidas, mas não podem ignorar questões éticas, o que é bem diferente. Os relatos indicam se tratar de jogos recorrentes nos quais as regras não são claras para as mulheres envolvidas, que são abordadas de forma abusiva e que são manipuladas por alguém que usa privilégios sociais para explorar suas fragilidades. Se fosse apenas conversa suja, mesmo que muito suja, entre duas pessoas adultas, cada qual buscando seu prazer, daria pra falar em tribunal moral. Mas não é o caso, o caso é de autodefesa das mulheres e de necessidade de autocrítica para todos nós. Nenhuma dessas questões se esgotam neste caso e espero que ele sirva para o aprendizado de todos.

André Gondinho