19 novembro 2014

"Desde que comecei a escrever na internet, mantenho um arquivo word chamado "Observatório da morte das palavras", em que vou apontando as mudanças na pragmática de certos termos. Por pragmática aqui me refiro ao ramo da Linguística que estuda os usos das palavras; não o seu sentido -- isso seria tarefa da Semântica --, nem nenhum de seus atributos formais (Morfologia, Fonologia etc.), mas a evolução do seu uso.
É impressionante revisitar esse arquivo e ver quanta coisa mudou em 10 anos. Palavras morrem por sobreuso e também pelo abandono. Podem se transformar em mortas vivas, caso em que elas continuam sendo usadas, mas vão perdendo sua força. Para um ativista, isso é matéria essencial: a mesma posição política, informada pelo mesmo grau de pesquisa e vivência, o mesmo respeito pelo interlocutor, a mesma polidez, pode produzir dois efeitos totalmente diferentes se enunciada com dois grupos de palavras, um que ainda mantém sua força e outro composto por palavras-zumbis. No momento, ando notando a curiosa zumbificação que acomete duas palavras, "protagonismo" e "objetificação".
Mas nada se compara ao aconteceu, nestes 10 anos, com as palavras "latifúndio" e "latifundiário". Elas desapareceram dos dialetos da língua portuguesa falados no Brasil. Até as décadas de 1980 e 1990, eram termos comuns e correntes para designar uma determinada realidade. Essa realidade ainda existe, mas as palavras sumiram. O latifúndio continua lá? Sim. A Reforma Agrária foi feita? Não. Mas já não falamos de latifundiários, e sim de "produtores" ou, um pouco menos ruim, "ruralistas".
Esta foi uma vitória considerável do latifúndio. "Produtor" é um escárnio porque, como sabemos, o latifundiário não produz nada (mesmo nos casos em que o latifúndio é produtivo); quem produz são os trabalhadores que ele emprega. "Ruralista" apaga completamente a origem de classe do latifundiário, de tal maneira que mesmo pessoas de camadas médias ou pobres que vivem no campo passam a sentir-se atacadas quando os "ruralistas" são criticados. Observo isso em pessoas próximas a mim, que não são, de forma nenhuma, grandes proprietários de terra, mas que se identificam com o termo "ruralista", com a cultura que ele designa e passam, portanto, a fazer parte de um bloco político que defende interesses que não são necessariamente os delas.
Nesta última década, não só desapareceu a possibilidade da Reforma Agrária. Desapareceu a palavra que designava a horrenda realidade que ela deveria corrigir. Embora a realidade continue lá, do mesmo jeito."

Idelber Avelar