19 novembro 2014

Desarquivando o Brasil: entrevista sobre literatura e luto nas pós-ditaduras com Idelber Avelar

1. Que diferenças você enxerga no trabalho de luto relativo aos anos de ditadura no Chile e Argentina quando comparados com o Brasil? Como essas diferenças podem ser evidenciadas na produção literária pós-ditatorial desses países?

A diferença mais notável, sem dúvida, é que no Brasil o processo de denegação e ocultamento do passado não tem paralelo entre os vizinhos. A transição brasileira se parece mais com a chilena, na medida em que, em ambos os países, os militares mantiveram um controle sobre o processo que não se verifica na queda abrupta dos generais argentinos. Na Argentina, claro, inicia-se já com o governo Alfonsín, em 1983, um amplo acerto de contas com o passado, temporariamente suspenso em nível judicial com as leis de obediência devida e de ponto final e restabelecido depois, com Néstor Kirchner. Esse acerto de contas político e jurídico cria condições para uma abordagem clara do problema na própria sociedade, literatura incluída. Nenhum país da região possui um acervo de reflexão e representação da barbárie do passado recente comparável ao que possuem os argentinos, especialmente no cinema e na literatura. Mesmo no Chile, onde a lei de anistia de 1978 funcionou mais ou menos como a lei de anistia brasileira de 1979, o acerto de contas com o regime militar avançou incomparavelmente mais que no Brasil. Desde 2004, 700 agentes do Estado chileno foram investigados e acusados de crimes em tribunais. Por volta de 30% deles cumpriram penas. Parte da razão para isso, segundo a hipótese de meu amigo Anthony Pereira, pesquisador do tema, é que a repressão ditatorial brasileira foi judicializada num grau muito maior que em nossos vizinhos. Ou seja, no Brasil o próprio Judiciário – STF incluído – condenou prisioneiros políticos com base em “provas” arrancadas sob tortura. Nossa tradição amnésica e apaziguadora não tem paralelo entre os vizinhos, que tematizaram os horrores das suas ditaduras muito mais frequente e intensamente, mesmo na literatura.

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