22 setembro 2014

"MARINA, ESQUERDA FESTIVA E TROPICALISMOS
Estava demorando. Fui chamado de "esquerda festiva" por apoiar Marina. Por me colocar ao lado de "liberais pós-esquerda" como Gil ou Caetano.
Gostaria de responder com algumas considerações sobre a atualidade do tropicalismo:
1) Acolho a expressão com o maior prazer. Sou de fato uma pessoa que se percebe à esquerda e se percebe festiva.
2) "Esquerda festiva" foi uma pecha atribuída pela esquerda nacionalista dos anos 1960 aos tropicalistas (Gil, Caetano, Oiticica, Gal, Sganzerla, Tom Zé). Embutia a acusação de irresponsabilidade política, voluntarismo, exibicionismo individualista, de convidar ao desbunde e à ego-trip em meio à barbárie da ditadura. A Tropicália era acusada de esfumar a luta de classe numa pós-história antecipada, compactuando com o mercado mundial e as indústrias culturais do imperialismo ianque.
3) No cenário pós-golpe de 64, a esquerda brasileira passava por um processo de repensamento de métodos, conceitos e referências, o que se exprimiu intensamente no cinema, na música, nas artes plásticas e no teatro. Tal situação de impasse agônico foi bem exprimida por Glauber em "Terra em Transe" (1967), filme de crítica feroz às certezas ideológicas e ao modelo de militância de uma geração, alegorizando o desconjuntamento nacional de que os velhos esquemas não tinham como dar conta.
4) A Tropicália responde à dolorosa provocação glauberiana com um gesto deliberadamente profanador. Profanam-se as totalizações teleológicas do progresso em direção ao "Brasil do futuro", bem como as adesões automáticas às dicotomias entre popular/erudito, massas/intelectual, primeiro/terceiro mundo, estado/mercado, entre outras. Profana-se, além disso, certo esquerdismo antiamericano que, -- desbordando da correta crítica do envolvimento do governo daquele país na ditadura, -- enxergava signos de dominação cultural em qualquer coisa associada aos EUA: da guitarra elétrica à Coca Cola, dos beatniks ao cinema de um Hitchcock ou Nicholas Ray (embora esse mesmo nacionalismo não via tantos problemas num afrancesamento esclarecido).
5) Ao contrário de leituras apressadas, contudo, o tropicalismo NÃO foi uma ruptura com a esquerda e não se desapegou totalmente do nacional-popular. O próprio Caetano, talvez a figura mais ambígua a esse respeito, não cansa de reconhecer as filiações com Dorival Caymmi e João Gilberto, nem de reiterar seu compromisso com a luta contra a desigualdade, a miséria e a dominação de classe. Se "Terra em transe" mergulha a discussão das resistências numa atoleiro de aporias, o tropicalismo anuncia novas possibilidades.
6) Em vez daquelas cartilhas de conscientização de massas, da ortodoxia do progresso econômico e da militância-partidão, se sondam energias libertadoras noutros lugares (no consumo, no pop, na favela, na africanidade, no entretenimento, na sexualidade, na antropologia, no misticismo): em suma, num "popular" renovado, doravante reencontrado em meio à massificação do consumo e a geleia geral do kitsch, a seguir exprimido num caldeamento estético e político de ícones e signos. Em vez do anti-imperialismo banal, a antropofagia, a remixagem, a globalização como potência. Em vez de negar o mercado, reconstruir uma mitologia dos mass media, na linha de um Andy Warhol ou Godard.
7) Noutras palavras, o tropicalismo foi um gesto afirmativo de renovação, tanto da esquerda quanto do conceito de povo, do "nacional-popular". Propôs-se a orientar um movimento afinado com as transformações por que passavam o Brasil e o mundo. Sim, porque o tropicalismo desde o início se viu como novo e como movimento. Os tropicalistas em geral não se desobrigaram dos desafios, --- como sugeriu Roberto Schwarz recentemente a respeito de "Verdade tropical", autobiografia de formação por Caetano, numa resenha em que o uspiano mal consegue disfarçar o fascínio, embora não deixe de prestar contas às bancadas veteromarxistas nalguns parágrafos. Mas a Tropicália não era alienação histórica nem desobrigação ética: era antes a construção de uma inocência, no sentido positivo que Nietzsche lhe atribui. Reduzi-la à esquerda festiva e vira-casaca denota, precisamente, o quão pertinente esse movimento era, num período-chave de rediscussão de rumos da esquerda.
Hoje, quase 50 anos depois da Tropicália, só posso sorrir comigo mesmo quando, ao apoiar Marina, sou chamado de esquerda festiva. Porque do outro lado vejo uma campanha túrgida que caricaturiza a luta de classe, com uma candidata que prefere engenheiros a advogados, que desmerece aulas de filosofia ou sociologia, e que sonha o sonho dos nacional-crescimentistas, com certa ideia de progresso e de povo, sempre e sempre compulsiva por indicadores econômicos e tabelas estatísticas. Enxergo um governo que desmontou as políticas do "do-in antropológico", como os Pontos de Cultura, do Ministério da Cultura com Gilberto Gil (2003-08), desmontado a partir da gestão de Ana de Hollanda. De uma candidata em cujo recente comício, no Rio de Janeiro, apresentou à plateia (rigorosamente isso: "plateia") de artistas e intelectuais uma visão de cultura com pouca sensibilidade: vamos pegar os bilhões do Pré-Sal, plantá-los na cultura e depois colher o crescimento do PIB. Um esquema que, trocando cultura por agronegócio, não mudaria muito. É essa a sensibilidade.
Então a esquerda festiva do tropicalismo não poderia ser mais oportuna para qualificar o debate. E que tal revisitarmos "Terra em transe" para 2014?"

Bruno Cava - Facebook