02 julho 2014

"Raymond Roussel: agonia e êxtase", artigo de João Lanari Bo para o Correio Braziliense (21/6/2014)

Lá pelo fim do século 19, em 1897 para ser mais preciso, aparecia timidamente nas livrarias francesas um opúsculo de título inusitado La doublure (O forro). O autor, Raymond Roussel, jovem e desconhecido, acreditava piamente que alcançaria, com aquela “novela em forma de poema”, a glória eterna, a consagração absoluta, o reconhecimento imediato nas ruas—estava seguro de que acordaria no dia seguinte à publicação cortejado por admiradores e invejosos. Nada disso aconteceu, e Roussel caiu em depressão. Salvou-o o doutor-psiquiatra Janet, a formulação e exercício de um método original de escrita e, naturalmente, uma folgada conta bancária da família. Em 1933, não deu mais, e o escritor foi encontrado morto em um quarto de hotel em Palermo, na Sicília. Raymond Roussel seria mais um vaidoso e obscuro literato não fossem seus seletos e aficionados leitores, alguns absolutamente consagrados: para citar apenas dois, Marcel Duchamp e Michel Foucault. O prolífico pensador dedicou um de seus primeiros livros, em 1963, a Roussel. Levado por Apollinaire, Duchamp foi ao teatro em 1911 assistir a adaptação de um dos livros de Roussel, Impressões da África, deixou se impressionar e saiu dali para mudar a história da arte. Apesar do nome, não há nada em Impressões que remeta a alguma “recordação” pessoal da África. Como disse o escritor, um sujeito que mesclava comportamento dândi com sensibilidade à flor da pele, “viajei muito, mas dessas viagens não tirei nada para meus livros... Para mim, a imaginação é tudo”. Em Locus Solus, de 1914, a mais conhecida de suas novelas—publicada pela Editora Cultura & Barbárie no ano passado, em sua primeira tradução para o português—a viagem é mental, demasiadamente mental. O texto é uma espécie de homenagem ao ídolo Júlio Verne, “incomensurável gênio”, “mestre incomparável” e “responsável por horas sublimes” de leituras e releituras. Imagine o leitor uma escritura com a vertigem das histórias de Júlio Verne, acoplada a um rigor obsessivo e disruptivo, ou seja, um método que constrói e desconstrói sem a menor complacência. Os surrealistas aderiram na primeira hora (Salvador Dali dedicou-lhe um filme, Impressions de haute mongolie). O livro conta as peripécias de um pequeno grupo, convidado a passar um dia em Locus Solus, propriedade do cientista Martial Canterel. Dentre as “invenções” de Canterel, destacam-se: o líquido ressurectina, capaz de trazer mortos à vida por um curto espaço de tempo; uma máquina voadora capaz de formar mosaicos com dentes humanos; e um enorme diamante cheio de um líquido especial, a acqua-micans, dentro do qual dança uma jovem, nada um gato sem pelos e a cabeça de Danton, o herói decapitado da revolução francesa, recobra os movimentos. Alie-se a essa pauta o “tal” método da escrita, que utiliza a homofonia em detrimento do sentido das palavras, repete e recomeça frases para “descolar as palavras das coisas” e, sobretudo, não atribui nenhum traço psicologizante aos personagens para — enfim — chegar-se ao universo literário de Raymond Roussel. Publicado postumamente—e igualmente traduzido pela Cultura & Barbárie, com lançamento em breve— está o inigualável Como escrevi alguns de meus livros, em que Roussel explicita seu “processo criativo”, como se diz hoje em dia. Mas é muito mais do que isso: o escritor diverte-se desvelando seu suposto segredo profissional. Trazer à tona o procedimento que “inventou” é em si mesmo um exercício prazeroso para o leitor afeto à literatura como exercício da imaginação. Os limites da palavra impressa, aliás, estavam cada vez mais estreitos: em vida, Roussel patrocinou duas adaptações de seus livros para teatro (a mencionada Impressões da África e Locus Solus), e há quem afirme que o cinema seria o desaguadouro natural da sua, digamos, imaginação. Contemporâneo do nascimento da sétima arte, Roussel deve ter sido espectador das elocubrações fantásticas de George Méliès—a versão colorida de Viagem à Lua, inspirada no infalível Júlio Verne e disponível no youtube, equivale à leitura em voz alta de Locus Solus. Raymond Roussel foi um personagem recluso e elegante, ligado nas maravilhas da modernidade (possuía um inédito “motor-home”). O Brasil, quem diria, adentrou também o seu imaginário: o segundo capítulo de Locus Solus homenageia o famoso “Demoiselle”, o aeroplano construído por Santos-Dumont em 1907. O brasileiro, pelo visto, era alguém capaz de materializar os delírios de Roussel. Outro ilustre com quem tinha relações foi Marcel Proust. É de se imaginar esses três na relva do “Bois de Boulogne”, especulando sobre os novos tempos e assistindo piruetas/acrobacias aéreas. Um verdadeiro êxtase.


João Lanari Bo é professor de cinema da Universidade de Brasília

via: Cultura e Barbárie Editora