27 janeiro 2017

"Sem dúvida, há a pichação de má qualidade. Por exemplo, a típica de classe média desocupada, e é como a própria classe que é mediocre e mau educada, nada mais nada menos. Ficam escrevendo com letras primárias e mau português um monte de babaquice por todos os lados, e acabam sujando a cidade. São péssimas frases de amor, como na música "sertaneja de novela", ou palavrões preconceituosos para destratar os vizinhos ou caluniar um professor da escola que resolveu cobrar a lição de casa, essas coisas abjetas que os mais idiotas fazem quando têm mesada para comprar latinha de spray. Mas eu acho que esses garotos jamais vão ser enquadrados, sempre surgirá papai, mamãe ou o amigo da família para liberar o B.O. na prosa afiada com o delegado. Agora, o que tem que diferenciar dessa merda de pichação é a Pixação que surgiu na periferia das cidades como SP e que criou uma linguagem urbana altamente complexa, com códigos individuais de diferenciação, organizando tradições e histórias dentro de grifes e irmandades, verdadeiras escolas de design gráfico, transformando este maravilhoso tecido visual da má arquitetura que infesta São Paulo. São jovens auto-didatas que vão com seus corpos e ousadia reprogramando o espaço dessas fachadas abandonadas e decadentes, criando nelas um novo espaço inteligente com uma elegância que lembra a dos antigos livros germânicos que usavam a tipologia gótica. Ou melhor, essas Pixações de alta qualidade mais parecem as inscrições nas xilogravuras do período Edo, com seus poemas misteriosos de tão sintéticos, como que em uma palavra, soando enigmáticos para nós, arrematados ainda por seus belíssimos carimbos de kanji japonês que reinventam os ideogramas de uma forma estonteante. Talvez até, sem pensarmos muito e se olharmos bem, nos melhores casos, eu diria, lembram a gestualidade zen dos pincéis dos mestres do nanquim oriental. O problema é que com esse papo de crime quem vai em cana são esses calígrafos da contemporaneidade que só possuem a sua própria arte para os defender."

Afonso Luz 

18 janeiro 2017

"... nós, progressistas, antifascistas, homens de esquerda, somos responsáveis por esses massacres. De fato, em todos estes anos não fizemos nada: 1. para que falar de 'Massacres de Estado' não se tornasse um lugar comum e tudo ficasse por isso mesmo; 2. (e mais grave) não fizemos nada para que os fascistas não existissem. Limitamo-nos a condená-los, gratificando nossa consciência com a nossa indignação; e quanto mais forte e petulante era a indignação, mais tranquila ficava a consciência. Na realidade nos comportamos com os fascistas (refiro-me sobretudo aos jovens) de maneira racista: quer dizer, quisemos apressada e impiedosamente crer que estavam predestinados por sua raça a serem fascistas, e perante essa decisão do seu destino não havia nada a fazer. E não o dissimulemos: todos sabíamos, em nossa sã consciência, que era por puro acaso que um daqueles jovens 'decidia' ser fascista, que se tratava de um mero gesto imotivado e irracional; talvez uma só palavra tivesse bastado para que isso não acontecesse. Mas nenhum de nós jamais conversou com eles, nem sequer lhes dirigiu a palavra. Aceitamo-los rapidamente como inevitáveis representantes do Mal. E eram certamente rapazes e moças de dezoito anos, que não sabiam nada de nada, e que mergulharam de cabeça nessa horrenda aventura por simples desespero."
(PIER PAOLO PASOLINI - 'O Verdadeiro Fascismo & O Verdadeiro Antifascismo' - in: "Os Jovens Infelizes")
"OBRE MEMÓRIAS E ESQUECIMENTOS
Tenho sido muito cobrado por ter supostamente defendido que a memória do regime militar seja esquecida, no sentido de ocultada. Nada mais falso. Sempre defendi o binômio de Nelson Mandela: verdade e reconciliação. Sem a perspectiva da reconciliação a busca da verdade se apequena, e reconciliação sem verdade é hipocrisia.

Não tivemos, no Brasil, maturidade suficiente para construir um processo desse tipo. Pagamos caro por isso. O regime militar continua como um fantasma que nos prende ao passado. Temos sido até incapazes de reconhecer que nos últimos 25 anos as forças armadas têm tido um comportamento exemplar em relação às instituições democráticas.
Pessoas, grupos, países e povos que viveram experiências muito mais duras e mais prolongadas que a nossa, como os sul-africanos, foram capazes de dar esse passo. É assim que se faz história.
Lembrar para poder nos libertar da lembrança – é disso que se trata. As pessoas sadias vivem a vida assim, lembrando e esquecendo. Quem não pode lembrar permanece atormentado pela interdição da lembrança. E quem não sabe esquecer enlouquece.
Esse equívoco que cometemos foi mais um tijolo na construção do muro que separa o Brasil e o futuro. Ter recusado a indenização associada à anistia foi uma forma, que encontrei, para deixar claro que não compactuava com o caminho que estava sendo seguido.
Guerreei quando achei que era preciso guerrear, mas não gosto de gente que anuncia muita coragem fora de tempo e lugar."

Cesar Benjamin 
O escritor e seu duplo 
Ricardo Piglia

A literatura atua sobre um estado de linguagem. Quero dizer que, antes de mais nada, para um escritor o social está na linguagem. Definitivamente, a crise atual tem na linguagem um de seus cenários centrais. Ou talvez deveria dizer que a crise está sustentada por certos usos da linguagem. Tem se imposto uma língua técnica, demagógica, publicitária e tudo o que não está nesse jargão fica fora da razão e do entendimento. Tem se estabelecido uma norma linguística que impede nomear amplas zonas da experiência social e que deixa fora da inteligibilidade a reconstrução da memória coletiva. 
Em The Retoric of Hitlers Battle, escrito en 1941, o crítico Kenneth Burke já fazia ver que a gramática da fala autoritária conjuga os verbos em um presente despersonalizado que tende a apagar o passado e a história. O Estado tem uma política com a linguagem, busca neutralizá-la, despolitizá-la e apagar os signos de qualquer discurso crítico. O Estado diz que quem não diz o que todos dizem é incompreensível e está fora de época. Há uma ordem do dia mundial que define os temas e os modos de dizer: a mídia repete e modula as versões oficiais e as construções monopólicas da realidade. Os que não falam assim estão excluídos e essa é a noção atual de consenso e de diálogo. 
O discurso dominante neste sentido é o da economia. A economia de mercado define um dicionário e uma sintaxe e atua sobre o valor das palavras; define uma nova linguagem sagrada e crítica, que necessita dos técnicos e de seus comentadores para decifrá-la e traduzi-la. Deste modo se impõe uma língua mundial e um repertório de metáforas que invadem a vida cotidiana. 
Os economistas buscam controlar tanto a circulação das palavras como o fluxo do dinheiro. Haveria que estudar a relação entre o que transcende, as infiltrações, os desmentidos, as versões e contraversões por um lado e as flutuações dos valores no mercado e na bolsa por outro. Há uma relação muito forte entre linguagem e economia. Nesse contexto escrevemos, e o que a literatura faz (em realidade o que tenho feito sempre) é descontextualizar, apagar a presença persistente do presente cego e construir outro tempo e outra realidade. Cada vez mais os melhores livros atuais (os livros de Walker Percy, de Andrea Zanzotto ou de Juan Gelman) parecem escritos em uma língua privada. Paradoxicalmente a língua privada da literatura é o rastro mais vivo da linguagem social. 
Quero dizer que a literatura está sempre fora de contexto e sempre é inatual; diz o que não é, o que tem sido apagado; trabalha com o que está por vir. Funciona como o reverso puro da lógica do Estado e da realpolitik. De modo que a intervenção política de um escritor se define antes de mais nada na confrontação com estes usos oficiais da linguagem. 
Os escritores sempre têm chamado a atenção sobre as relações entre as palavras e o controle social. Em seu explosivo ensaio Politics and the English Language de 1947, George Orwell analisava a presença do Estado nas formas da comunicação verbal: a língua instrumental dos funcionários policiais e dos tecnocratas havia se imposto, a linguagem tinha se convertido em um território ocupado. Os que resistem falam entre si em uma língua perdida. No trabalho de Orwell se veem condensadas muitas das operações que definem hoje o universo do poder. Pasolini por seu lado tem percebido de um modo extraordinário este problema em suas análises dos efeitos do neocapitalismo na língua italiana. Não me parece nada raro então que o maior crítico da política atual (um dos poucos intelectuais realmente críticos na política atual) seja Noam Chomsky: um linguista é certamente o que melhor percebe o cenário verbal da tergiversação, a inversão, a troca de sentido, a manipulação e a construção da realidade que definem o mundo moderno. 
Gostaria de recordar duas citações, onde se analisam estes procedimentos de encobrimento. Primeiro uma de Orwell: Bombardeiam povos indefensos, tiram os habitantes de sua terra e metralham seu gado, incendeiam suas cabanas e a isso se chama pacificação. Milhões de campesinos são despojados de suas granjas e enviados para a estrada sem nada, e a isso se chama retificação de fronteiras. E Chomsky, por sua vez, diz sobre a troca de nome de Departamento de Guerra (nos Estados Unidos) para Departamento de Defensa em 1947. Enquanto isto se sucedeu, qualquer pessoa sensata devia dar-se conta de que os Estados Unidos já não se ocupariam da defesa, participaria nas guerras tão somente como agressor. Também diz Chomsky: nos anos 40, nos círculos da indústria das relações públicas, tomou-se a decisão de introduzir expressões como livre empresa, mundo livre, ao invés de termos descritivos convencionais como capitalismo, insinuando que os sistemas de agressão e de controle nos quais estavam implicados aqueles que detinham o poder eram na realidade una forma de liberdade. Mundo livre, livre empresa, livre concorrência, livre mercado. Era uma maneira de nomear a concentração econômica e a política da expansão dos grandes monopólios. Desse modo se impõe uma linguagem encobridora, um estilo médio, e tudo o que não está nesse jargão é considerado hermético e fora de lugar. Ou seja, estabelece-se uma norma linguística, que não tem nada que ver com os registros da língua popular nem com as experiências concretas da vida cotidiana e se definem aí os níveis de compreensão e de sentido. 
Há uma cisão entre a língua pública, a língua dos políticos em primeiro lugar e os outros usos da linguagem que estão perdidos e quase apagados da superfície social. Tende-se a impor um modelo único - que funciona como um registro de legitimidade e de compreensão - que é manejado por todos os que falam em público. Em momentos em que a língua se tem tornado opaca e homogênea o trabalho detalhado, microscópico e quase invisível da literatura é uma resposta secreta e corrosiva ao estado das coisas.

13 janeiro 2017

"AUGUSTO DE CAMPOS: "Penso, como Cage, que a vanguarda — que prefiro chamar de poesia de “invenção”, a partir da classificação de Pound, para abarcar tanto o passado (como o trovador provençal Arnaut Daniel) quanto o presente — sempre exisitirá e não precisa ser um fato coletivo. É sinônimo de “curiosidade” e de “liberdade”. Não apenas expressar, mas mudar. Sempre haverá artistas que não se satisfaçam com a linguagem corrente, e queiram explorar novos caminhos, e não apenas falar da sua vida. No que diz respeito às “utopias“, apesar de me considerar pessimista, adoto a concepção de Oswald, que associo às ideias de Cage sobre vanguarda. “No fundo de toda utopia não há somente um sonho, há também um protesto”. Temos direito permanente ao fracasso da utopia. O universo digital e a internet são utopias que — para o bem ou para o mal — deram certo sob muitos aspectos. Mudaram a forma de comunicação mundial em duas décadas. A linguagem mudou, está mudando, e isso tem reflexos na própria linguagem da poesia que se faz hoje e que não pode ser a mesma do passado. Walter Benjamin, em 1926, predizia: “No futuro, antes que alguém abra um livro, desabará sobre seus olhos um turbilhão de letras móveis, coloridas, conflitantes. Nuvens de letras-gafanhotos. As chances do mundo do livro serão reduzidas a um mínimo. E os poetas terão que se tornar especialistas em grafias e diagramas para enfrentar o desafio das novas tecnologias.” É bom pensar nisso. Senão a poesia do “agora”, que o Haroldo postulava, pode virar poesia do “outrora”… 

11 janeiro 2017

"A raiz do pânico da imprensa com Donald Trump não vem, como alguns tolos insistem em imaginar, do fato de que este dissemina mentiras enquanto aquela representaria o bom senso e o compromisso com os fatos por oposição a ele. Trump mente mesmo, mas a questão aqui é outra.
Trata-se de coisa distinta, que demanda outro conceito de verdade, o foucaultiano. A imprensa está em pânico porque até agora a produção de verdade/ mentira da qual ela é dispositivo fundamental tem andado em compasso conjunto com a produção de verdade/ mentira do próprio poder estatal. Lembre-se aqui da Guerra do Iraque: foi baseada em mentiras, mas mentiras validadas no interior de um projeto de produção de verdade que mobilizava, sem fissuras, mídia e governo. Não é necessário acreditar em teorias bestas sobre a mídia maligna ou a conspiração da mídia para concordar com essa análise.
Agora é diferente: o soberano se transforma, ele mesmo, não apenas em fonte, mas também em veículo de produção de verdade. Trump, ele mesmo, gera a notícia, obrigando a imprensa, por exemplo, a fazer constantes programas jornalísticos sobre seus tuítes. Não importa o que é "mentira" ou "verdade" aqui -- o que importa é que a imprensa foi deslocada de seu poder reitor na administração do verdadeiro e do falso. E isso gera enorme confusão para o quarto poder. Está sendo divertido observar.

As redes sociais estão em guerra nos Estados Unidos. Informação não verificada, versão adulterada da informação não verificada, produtores de notícias falsas acusando o outro lado de produzir notícias falsas, geopolítica, guerras culturais, whistleblowers, acusações de violação da ética jornalística, traição à pátria -- tudo isso, junto e misturado no escândalo envolvendo Trump e a Rússia."

Idelber Avelar