30 setembro 2016

Notas da insônia:

Num filme de Godard ouvi pela primeira vez a frase: "O espelho deveria refletir mais antes de nos devolver a nossa face", que anos depois descobri ser uma citação de Jean Cocteau, o mesmo que disse (mas isso aprendi com Laura Taves): "Sou um fogo de palha que dura".


*

Lendo na madrugada o poema “O Cão sem plumas”, fiquei lembrando de uma aluna do Complexo do Alemão que, numa redação/poema do nosso curso, escreveu: "O rio Capibaribe passa por Toritama, Limoeiro, Recife, Paudalho e João Cabral".

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- Este é o Clube dos Nostálgicos?

- Sim, mas já não é mais como antes.

[Meme achado na página da Mercedes Roffé]

*

Um jornalista perguntou a Man Ray se na exposição que ele estava inaugurando aquele mesmo dia havia alguma pintura recente. E Man Ray, furioso, respondeu que nunca em sua vida havia pintado um quadro recente.

*

O pintor francês Pierre Bonnard (1867/1947) foi detido aos 68 anos em um museu retocando um detalhe que o incomodava numa tela de sua juventude.

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Lembrei da menininha na creche, filha de uma amiga, que dizia: "A diferença entre a palavra certa e a palavra quase certa é a diferença entre um relâmpago e um vagalume." E de seu amigo imaginário, o gato Twain, que lhe teria, segundo ela, respondido: "Eu gosto de vagalumes."

*

Respondendo a uma enquete sobre "Como melhorar a literatura russa", Anton Tchekov (foto) escreveu:

"Tirando o último parágrafo de todos os livros."

*

Quando já o sono parecia chegar, esbarrei nessa postagem da página da Luisa Duarte:

“Sempre gostei de bagunça. Não de ordem nem desordem. Bagunça. O que tenho a mão vou mexendo até perder, prá depois achar de novo. Achando o que perdi acho o novo de novo, reencontro o novo no velho – é como a luz, a velha luz, descansada e sempre nova de novo.” TUNGA

*

"Não existe chocolate ruim, você é que tem pouco problema", filosofou no telefone a Patrícia Rebello, com sabedoria e Jack Daniel's.

*

O LAVRADOR, ABANDONANDO A ENXADA

1, O lavrador, abandonando a enxada,
Contempla o voo de um corvo
E diz: na voz do corvo ressoa
A Guerra de Troia,
A ira de Aquiles,
O pranto de Hécuba,
Enquanto voa
Sobre nossas cabeças.

2. Na mesa empoeirada
O acaso criou na poeira
Seus estranhos desenhos.
Diz um menino curioso:
Essa poeira talvez é Moscou
E essa talvez é Chicago ou Pequim.

Porra, Khlébnikov!

*

A HISTÓRIA

Uma vez li uma história
sobre um gafanhoto com um dia de vida,
um aventureiro verde que foi engolido
no escuro por um morcego.

Logo a seguir a isto a velha e sábia coruja
apresentou um breve discurso de consolação:
"Também os morcegos têm direito à vida,
e ainda há muitos gafanhotos por aí."

Logo a seguir a isto veio
o fim: uma página em branco.

Passaram-se desde então quarenta anos.
Debruçado ainda sobre essa página em branco
não me sinto com forças
para fechar o livro.

Porra, Dan Pagis!


via: Carlitos Azevedo 

Livro em PDF:

"Encomendei esta caixa de madeira
Clara, exata, quase um fardo para carregar.
Eu diria que é um ataúde de um anão ou
De um bebê quadrado
Não fosse o barulho ensurdecedor que dela escapa.
Está trancada, é perigosa.
Tenho de passar a noite com ela e
Não consigo me afastar.
Não tem janelas, não posso ver o que há dentro.
Apenas uma pequena grade e nenhuma saída.
Espio pela grade.
Está escuro, escuro.
Enxame de mãos africanas
Mínimas, encolhidas para exportação,
Negro em negro, escalando com fúria.
Como deixá-las sair?
É o barulho que mais me apavora,
As sílabas ininteligíveis.
São como uma turba romana,
Pequenas, insignificantes como indivíduos, mas meu Deus, juntas!
Escuto esse latim furioso.
Não sou um César.
Simplesmente encomendei uma caixa de maníacos.
Podem ser devolvidos.
Podem morrer, não preciso alimentá-los, sou a dona.
Me pergunto se têm fome.
Me pergunto se me esqueceriam
Se eu abrisse as trancas e me afastasse e virasse árvore.
Há laburnos, colunatas louras,
Anáguas de cerejas.
Poderiam imediatamente ignorar-me.
No meu vestido lunar e véu funerário
Não sou uma fonte de mel.
Por que então recorrer a mim?
Amanhã serei Deus, o generoso – vou libertá-los."
A caixa é apenas temporária.
Sylvia Plath, A chegada da caixa de abelhas IN Ana Cristina Cesar, Crítica e tradução. Tradução em conjunto com Ana Cândida Perez. p. 447-448.

25 setembro 2016

“Seria preciso falar desta experiência como se fala, por exemplo, do mar. O mar estava presente, todos os dias com ele convivíamos, víamo-lo, pensávamos nele, mas não sabíamos o que queria dizer. O mar, porém, sabia. Era ele que cercava as cidades, era ele que organizava os pensamentos dos homens, que regulava suas músicas, os seus quadros, os seus poemas. E não o contrário. Como imaginar uma coisa destas? Quanto a gente se servia das palavras da linguagem, e na folha branca as alinhava, não nos dávamos conta de que alinhávamos conchas. E o que um dia se descobre, sem se dar por isso, só por se estar sentado num rochedo diante do mar, é que a experiência dos homens está incluída na experiência do universo. E isto, verdadeiramente, é terrífico, e ao mesmo tempo é aprazível, porque nessa altura muitas palavras surgem, muitas palavras desabam. Quer isto dizer que a linguagem é uma expressão do universo modificada pela boca dos homens, uma linguagem por assim dizer interpretada, e cujo original há-de sempre ficar sem tradução”.
- - -
trecho de J. M. G. LE CLÉZIO no "Índio branco", em tradução de Júlio Henriques.

23 setembro 2016

"Estão compartilhando essas fotos das crianças e adolescentes prestando aliança ao bostonaro, e me dá um incomodo. Não tanto pelos jovens, mas pelo como tripudiam, como acham humor & moral nessa porra. Eu não consigo: não só pelo incomodo de ser graduado, ter 28 anos, e tripudiar da ignorância pressuposta de menores de idade. Mas por ser requisitado a isso, como luta contra o 'fascismo'.
O discurso não pode ser resumido ao seu conteúdo ou significação, não podemos avaliar apenas o conteúdo, como 'problemático', da ação desses jovens, mas a ação e projeção desse discurso, a prática ou ato: o que esses jovens fazem, como eles entendem a si mesmos fazendo esse tipo de discurso e contra quem eles se posicionam fazendo esse tipo de discurso.
Além disso, como questão de ordem, deve ser problematizada a divulgação dessas fotos, o tipo de informação que vem junto e o tipo de comportamento que temos diante delas, nessa intersecção horrível entre humor e moral. Suspeito que é um comportamento esperado, já como forma de consumo, já que faz muito tempo que sites de esquerda se beneficiam e ganham capital político explorando um voyeurismo que se funda em hierarquias de idade, conhecimento formal e posicionamento político. A capitalização da arrogância de esquerda está na ordem do dia: o 'namore alguém que sabe que foi golpe' supõe justamente um tipo de subjetividade neoliberal, uma valorização de si. Dá pra ganhar dinheiro, dá pra fazer gente pra ganhar dinheiro, se valorizar e competir, submetendo o cálculo individual a identidade política, e não precisa haver contradição, é até um ciclo virtuoso...
Enfim, esse 'anel de pureza' militarizado/eleitoralizado tem que ser discutido num horizonte que não perceba fascismo como saciado no corpo ruim, na mente idiota, na misoginia do jovem - ou ainda vamos terminar culpando os videogames...
Como no debate sobre escola sem partido, sinto que estamos numa encruzilhada conservadora... a proposta do ESP partia do entendimento que o professor devia se submeter à hierarquia conservadora que liga escola e família, tendo o professor, por fidelidade ao conteúdo programático da esquerda, desertado dessa estrutura. Nada mais errôneo. Até porque a resposta de muitos foi o avilte que tenham questionado a fidelidade do professor à essa estrutura, ao qual a exigência de conteúdo homologado pelo programa cumpre um papel disciplinar fundamental. Ainda, defenderam justamente a posição hierárquica do professor dentro desse esquema como o conteúdo específico da autonomia do próprio... Pelo truque da proposta positiva colocada ser de direita, nós defendemos o que está aí como algo pronto: a democracia, a escola, a cultura. Mesma coisa do debate sobre maioridade penal: a carta capital fartou-se em apenas comentar a hipocrisia, cretinice e maldade dos proponentes.
E também, só ver que a exigência de mais tempo nas escolas mais conteúdo, mais controle, atravessa todo campo ideológico estabelecido...
Na verdade, o que é uma pragmática possível de esquerda é justamente o que está fora disso tudo, o que ameaça a família e a escola, esses espaços regrados, estrutura podre de séculos, que a gente espere que funcione como funcionava há gerações... é justamente a falência desse desencontro que produz 'monstros'... que a gente tripudia de como se fossem coisas prontas, como pasolini disse, 'corpos destinados ao fascismo', como supõe um racismo tipicamente esquerdista..." - 

Henrique Kopittke

20 setembro 2016

UM PONTO SOBRE O OUTRO
Luci Collin
Não, nenhuma palavra que dissesse ajudaria: Reva é mesmo um mistério, logo vi, quando Florine me disse: cuidado, ou melhor, quando disse: jamais compreendi Reva Frankton, eu pensei puxa, estou mesmo me sentindo diferente mesmo estou mesmo me sentindo desta vez mesmo é assim que estou mesmo me sentindo: um amontoado de dúvidas: Reva é com certeza um mistério e só existiram duas pessoas com este perfil na minha vida: Kade e Lebrec só esses dois elementos essas duas outras oportunidades me causaram tal sensação de estranhamento aquele desconforto com as cenas: mistério, mas não pelo mesmo motivo: Kade é um apanhado de silêncios, de incomunicáveis e Lebrec, bem a história de Lebrec se resume no seguinte: ausência, ausência foi a palavra dita por Herlinda para definir aquele momento em que olhamos para uma pessoa que compôs uma sequência de dias das nossas vidas (e não só sequência: também fatias quero dizer) e percebemos finalmente: nada existiu ou melhor: nada existe e então você pode me acusar de estar sob influência de Lindy (Herlinda) mas isto não é verdade eu posso lhe provar: Koci me conhece e sempre sustentou que eu tenho entendimento de montanhas, de cremes, de brancos, de não, de lentes, de sempre, de um qualquer descuidado, de qualquer pausa, de qualquer pequeno vento insistindo sobre o tecido enfim Koci com certeza diria: tem sim ou, se Koci não usasse palavras assim tão objetivas, tão diretas, tenho certeza que se faria entender mesmo que as sentenças caracteristicamente fossem indistintas e embaralhadas uma vez que Koci é o próprio embaralhamento, convenhamos, mas não é mistério, mistério está aqui: Reva, Reva Frankton é: mistério absoluto: Florine disse e isto não é novidade para mim: eu já vivi algo parecido com Kade e ainda isso: eu já vivi algo parecido com Lebrec (quando revelou seu verdadeiro nome: Liebross) todos esses fatos devem ser meticulosamente considerados eu quero, em outras palavras, esclarecer: toda vez que alguém entra na sua vida pode acontecer isto mas temos que apontar que o contrário: o contrário também acontece: o mistério pode estar no momento em que alguém sai, quero dizer: sai da sua vida, sai levando um pedaço, foi o que disse Hal: sai levando um pedaço que não se conhecia: Leb fez isso, Kade fez, e Reva está fazendo porque Reva é só isso: um mistério e no fim parece ser apenas e portanto isto: um pão que manifesta um envelhecimento, que está condenado a ser esquecido já que o dia está quente, está terrivelmente quente e neste mercado de bairro os pequenos pontos verdes podem ser vistos, os pequeníssimos pontos de bolor já se instalaram ali no pão e este pequeno exemplo ilustrativo é exatamente como: Reva e não adiantará Ryther me telefonar dizendo: esqueça, que você bem sabe que Ryther Stroy está se tornando especialista em dizer: esqueça isto, pelo menos foi o que me disse quando Hal desapareceu, quando Tamra desapareceu, quando Yem perdeu-se no mapa, quando Herlinda deu tanta corda no relógio que aquele objeto recusou-se e finalmente quando toquei no assunto: Reva é um sofisticado mistério uma vez que a virtude dos pêssegos é serem imediatos e as únicas palavras que neste momento poderiam me ajudar a compreender este tipo de pilha de cartas de baralho viradas sobre a mesa que é o meu peito agora são as seguintes:

16 setembro 2016

 Zbigniew Herbert:
O SENHOR COGITO MEDITA SOBRE O SOFRIMENTO


Todas as tentativas de afastar
o assim chamado cálice de amargura -
pela reflexão
a frenética ação em favor dos gatos de rua
a respiração profunda
a religião -
fracassaram

é preciso aceitar
baixar manso a cabeça
não torcer as mãos
usar o sofrimento com medida e ternura
como uma prótese
sem falsa vergonha
mas também sem orgulho inútil

nada de brandir os restos da amputação
sobre a cabeça dos outros
nada de bater com uma bengala branca
sobre a janela dos saciados

beber o extrato de ervas amargas
mas não até o fim
guardar por precaução
algumas gotas para o porvir

aceitar o sofrimento
e ao mesmo tempo
isolá-lo em si
e se isso for possível
criar da matéria do sofrimento
uma coisa ou uma pessoa

jogar
com ele
sim
jogar
brincar com ele
com muito cuidado
como se brinca com uma criança doente
para arrancar-lhe por fim
com truques bobos
a sombra
de um sorriso
“Quando eu ouço o que chamamos de música, tenho a impressão de que alguém está falando, e falando sobre seus sentimentos ou sobre suas ideias de relacionamento. Mas, quando eu ouço o som do tráfego [...] tenho a sensação de que um som está em atividade e eu adoro a atividade do som. O que ele faz é ficar mais alto e mais baixo, mais agudo e mais grave, mais longo e mais breve. Todas essas coisas que ele faz me satisfazem plenamente; eu não necessito de que falem comigo.”
[Porra, John Cage!]
*
Do mural da Isabella Bottino:
"Eu vi um tanque parado no sinal vermelho: eles estavam dando um golpe mas obedeciam às regras do trânsito." (Márcio Moreira Alves, sobre o Golpe de 64)
*
E os dias não estão suficientemente plenos
E as noites não estão suficientemente plenas
E a vida passa como passa uma ratazana pelo campo
Sem agitar a relva.
[Porra, Ezra Pound!]
*
Não há um tempo único: são muitas as fitas
que deslizam paralelas
muitas vezes em sentido contrário e raramente
se entrecruzam. É quando se revela
a verdade pura que, descoberta,
é rapidamente suprimida por quem vigia
as engrenagens e os desvios. E se recai
depois no tempo único. Mas naquele átimo
os poucos viventes puderam reconhecer-se
para dizerem-se adeus, não até logo.
[Porra, Eugenio Montale!]
*
ESTUDO SOBRE A VULNERABILIDADE
seu rosto se afastando do meu
para evitar gozar
8 morangos numa tigela azul molhada
papai segurando as calças
durante a revista na fronteira
uma mulher recém-casada ajeitando o penteado
com pinos de granada
uma parede sem pregos
para os fantasmas passarem
[Porra, Solmaz Sharif! em tradução de Luiza Leite e do mural de Luiza Leite]
*
"Acabou chorare. Começou resistire. Partiu desobedecere."
[Porra, Ricardo Aleixo!]

via Carlistos Azevedo

15 setembro 2016

PARA ANNA FLOR
Ó tu, amada dos meus vinte e sete sentidos, eu
lhe amo! — Tu teu te a ti, eu a ti, tu a mim.
— Nós?
Isto (aliás) não vem ao caso.
Quem és tu, dona inumerável? Tu és
— és? — Dizem que serias — deixa
que digam, eles nem sabem como a torre da igreja se sustém.
O chapéu sobre os pés, caminhas
sobre as mãos, com as mãos tu caminhas.
Olá, teus vestidos vermelhos, serrados em pregas brancas.
Eu amo Anna Flor vermelho, vermelho eu lhe amo! — Tu
teu te a ti, eu a ti, tu a mim. — Nós?
Isto (aliás) é coisa para a brasa fria.
Flor vermelha, vermelha Anna Flor, o que andam dizendo?
Responda e ganhe: 1. Anna Flor tem um macaco no sótão.
2. Anna Flor é vermelha.
3. Qual é a cor do macaco?
Azul é a cor do teu cabelo amarelo.
Vermelho é o chiado do teu macaco verde.
Tu, moça simples de vestido de chita, tu, doce
bicho verde, eu lhe amo! — Tu teu te a ti, eu
a ti, tu a mim, — Nós?
Isto (aliás) é coisa para o braseiro.
Anna Flor! Anna, a-n-n-a, gotejo o teu nome.
Teu nome pinga como tenra gordura bovina.
Sabes, Anna? Já o sabes?
Posso ler-te também de trás para frente, e tu,
a mais formosa de todas, serás sempre, de trás para frente e de
frente para trás: »a-n-n-a«.
Gordura bovina goteja acaricia minhas costas.
Anna Flor, tu, bicho gotejante, eu lhe amo!
Kurt Schwitters

14 setembro 2016

https://www.youtube.com/watch?v=KvZ6_C0VaD0

12 setembro 2016

"Então, ao fazer Cabeças cortadas eu queria entrar no âmago dessas questões, que é um território terrível, porque não é um território palpável, não é um território sociológico, economicista, não é um território da Maria da Conceição Tavares que poderia fazer uma estatística, uma discussão dialética sobre as variantes econômicas. É um território que não tem lugar para a sociologia de Florestan Fernandes. Realmente é um território que não tem lugar para a especulação lingüística, crítico-lingüística,crítico-psicanalista. É um território da aventura sensorial, quer dizer, é um território do sonho através do qual você pode penetrar naquilo, como diria Antonin Artaud, que está além de um real palpável. E eu cheguei navegando como Colombo, às avessas, 470 e tantos anos depois, num castelo do alto de uma montanha, no interior da Catalunha, num lugar chamado São Pedro de Roda, nos desertos da Costa Brava, cenários ancestrais. É lá nesse castelo que tinha um porteiro que aparece no filme, louco, cantando coisas, com um vento que soprava quase 100 quilômetros por hora, eu tive assim uma espécie de visão e materializei um teatro com aqueles atores ali dentro em 14 dias, num ritmo muito febril, com pré-notações. Como a censura espanhola era prévia, e estávamos em pleno franquismo, eu apresentei um roteiro de Macbeth de Shakespeare e foi aprovado pela censura e eu imediatamente passei a fazer Cabeças cortadas. E lá se materializou isso que chamo de viagem às origens do nosso modelo colonizador."
Glauber Rocha 
(Entrevista a Miguel Pereira)

08 setembro 2016

RELÓGIO DE PONTO Tudo que levamos a sério torna-se amargo. Assim os jogos, a poesia, todos os pássaros, mais do que tudo: todo o amor. De quando em quando faltaremos a algum compromisso na Terra, e atravessaremos os córregos cheios de areia, após as chuvas. Se alguma súbita alegria retardar o nosso regresso, um inesperado companheiro marcará o nosso cartão. Tudo que levamos a sério torna-se amargo. Assim as faixas da vitória, a própria vitória, mais do que tudo: o próprio Céu. De quando em quando faltaremos a algum compromisso na Terra, e lavaremos as pupilas cegas com o verniz das estrelas. Alberto da Cunha Melo

04 setembro 2016

TRABALHOS DO POETA (fragmento)
(Octávio Paz - Tradução de Haroldo de Campos )

Uma linguagem que corte o fôlego. Rasante, talhante, cortante. Um exército de espadas. Uma linguagem de aços exatos, de relâmpagos afiados, de esdrúxulas e agudas, incansáveis, reluzentes, metódicas navalhas. Uma linguagem guilhotina. Uma dentadura trituradora, que faça pasta dos eutuelenósvóseles. Um vento de punháis que desgarre e desarraigue e descoalhe e desonre as famílias, os templos, as bibliotecas, os cárceres, os bordéis, os colégios, os manicômios, as fábricas, as academias, os pretórios, os bancos, as amizades, as tabernas, a esperança, a revolução, a caridade, a justiça, as crenças, os erros, as verdades, a verdade.

02 setembro 2016

Onde foi que o Brasil encaretou ?
O Brasil é um pais experimental: pena que se comporta como um velho conservador!
Engraçado. Acompanhei essa ultima farsa de “Fora isso, Fora aquilo” e, finalmente, o impeachment aqui de “fora”, fora do Brasil. Aliás, não moro no Brasil. Só morei aí quando criança e voltei profissionalmente. Quando me perguntam por que não “volto”, eu tremo e temo. E sempre me questiono por que.
Acho que a duvida ficou nítida. O Brasil é um pais CARETA ! Mas tem tudo pra não ser.
Quando eu explicava o Brasil a alguém (em Londres, por exemplo) lá com meus 17 anos, eu dizia “Brazil is a modernist country, an experimental country”.
Caramba gente! Voces ficam ai presos a essas formulas absurdas das esquerdas velhas, caducas e falidas de 100 anos atrás (sim, CEM desde os bolchevistas ), ou com suas cisões de 1962, etc. E, ou adotam termos e estatutos de um capitalismo que OBVIAMENTE também não esta dando certo em lugar algum- afinal – essa crueldade só desemboca em tragédia e....(bem, não é aqui que quero chegar!)
Oswald de Andrade é um brasileiro que COMIA e regurgitava com cores novas os restos e gostos novos, os pratos culturais do mundo. E Mario também. E Rosário Fusco também. E Guimarães Rosa também. E toda a semana de 22 também. E Haroldo, Augusto de Campos e Décio também vieram e botaram essa porra pra quebrar.
Mas não ficou ai. O Brasil é um pais TROPICALISTA PORRA!!!! É um pais da contracultura.
Eu sempre dizia que a diferença entre o Brasil e o resto da América Latina é o “fator” Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Gabeira.
Como é que vocês encaretaram assim?
Hoje eu vejo imagens desse “Senado” em Brasilia e o BR é o país mais CINZA que eu já vi. Olhem os outros países. O Brasil ficou sem cor. E vocês BRADAM slogans pela rua que são SLOGANS CARETAS, que não foram vocês quem criaram.
Voces se perderam. ESQUECERAM que, não faz muito tempo, EXISTIU aí mesmo, no cerne desse lindíssimo país, uma cultura MARAVILHOSA, LINDISSIMA.
O Brasil foi um dos POUCOS a fazer a REVOLUÇAO MODERNISTA: A Alemanha a fez com a Bauhaus. Os EUA a fez muitas vezes mas vou escolher a CONTRACULURA que começa com os protestos ANTi-Vietman e Woodstock ou com a geração Hendrix (mas pode colocar ai, se quiser – a luta pelas liberdades civis: Dr Martin Luther King Jr, Muhammad Ali, Malcom X, Gloria Steinem e as feministas, o movimento GAY, enfim, todas essas conquistas, todas as conquistas)
Esse Brasil também existe, antropofagizado, obvio, mas existe. Pena que vocês não o deem o deivido valor e prefiram urrar nas ruas (tanto um lado quanto o outro) slogans que mais parecem remeter ao período do Plano Marshall – ou daquele que....
Voces entenderam né? SEJAM BRASILEIROS queridos brasileiros.
Como e onde é que vocês encaretaram assim?
"As manifestações não tem se restringido ao respeito ao voto, mas tem sido uma imensa campanha pelo PT e a apresentação da imagem romantizada de Dilma. A mesma mulher que está de mão dadas com Kátia Abreu, a mesma que foi aplaudir Belo Monte em cima dos corpos sob os quais ele foi construído, a mesma que votou a lei anti-terrorismo. Por que a população indígena não entra em pauta? Nem o debate de esquerda lhe dá alguma importãncia, que morram, que percam suas terras. Esse impeachment deveria ter sido estabelecido pela população e não pela direita e para aí meu lamento. Nossa democracia tem sido "golpeada" desde que começamos a fechar os olhos para as atrocidades cometidas sob o governo do PT em nome de um romance. O impeachment, que tem escandalizado a população brasileira, pondo a população em conflito, é muito conveniente para um partido moribundo e desacreditado, ganhou fôlego, a heroicidade que sustentou o partido se renova. Enquanto a população está arrasada, Dilma estava muito bem, tranquila e sorridente circulando e rindo entre políticos que lhe seriam opositores. Cheias de carinho para com Aécio Neves. Viu quem assistiu às votações. E não venham dizer que é a tranquilidade de quem tem a consciência tranquila. Não há pessoa "honesta" que não se deteriore ao ser injustiçada. Chega de romance. Só a população está a flor da pele, sentindo-se traída. O PT ao contrário, ganhou uma oportunidade. Que essa potencia de pessoas nas ruas seja por causas propositivas e não por um partido pútrido que já deveria ter sido enterrado."

GLASNOST BRASILEIRA
"Engana-se redondamente quem encontra a chave de excepcionalidade para a queda de Dilma numa conspiração das elites, num golpe imperialista ou numa tramoia parlamentar como voto de desconfiança. Memória curta, curtíssima. Temos uma tremenda crise econômica causada por erros econômicos do governo. Uma tremenda crise política causada por erros políticos. E uma tremenda crise social, pelo descolamento do governo e sua coalizão em relação às forças sociais. Todas essas dimensões da crise, -- que se interpenetram e cuja intensidade conjugada atingiu níveis insuportáveis, -- já estavam dadas em junho de 2013. Tudo isso foi indicado e com razoável precisão, enquanto o jet set intelectual petista se limitava a apontar o ovo da serpente. Não bastasse, a operação Lava Jato realizou pela via transversa parte do que queríamos nos protestos de 2013: a abertura da caixa preta dos megaeventos, de Belo Monte, das campanhas bilionárias da casta, dos investimentos via BNDES do Brasil Maior, enfim, os cantos escuros de negociata, conchavo de gabinete, violações, desvios e propaganda enganosa por baixo do Brasil Potência, do Futuro afinal conquistado. Nessas caixas pretas estava o PMDB, o PP, Cunha, Aécio, Renan, mas também o PT, Lula, Odebrecht, e boa parte do mandarinato governista. Isto não é invenção da mídia golpista. Infelizmente, mesmo porque os demais meios foram bloqueados e reprimidos, a Lava Jato está realizando-se por meios que são indisputáveis, mas seus efeitos, ao contrário, o são. Como fazer isso? Não sei, mas há de ser possível. É preciso reapropriar-se desses efeitos, tomar a iniciativa e ir em frente. Qualquer governismo residual, retorno ao voto crítico ou autorreferencialidade "vermelha" não passam de peso morto, usado para cobrar-nos moralmente que o arrastemos. Não há nada a defender. Mesmo as reformas de Temer é caso de contestá-las sem defender modelos falidos que já são reconhecidos como falidos, numa defesa de quermesse. Vivemos a Glasnost brasileira e isto significa abertura de novos campos, outras perspectivas. É uma oportunidade de recomeço, de sair da autossabotagem. Mas sem primeiro ficar leve e largar mão desse entulho narrativo que não cansa em dar voltas sobre seu próprio eixo, nada acontecerá."

Bruno Cava 
"As manifestações não tem se restringido ao respeito ao voto, mas tem sido uma imensa campanha pelo PT e a apresentação da imagem romantizada de Dilma. A mesma mulher que está de mão dadas com Kátia Abreu, a mesma que foi aplaudir Belo Monte em cima dos corpos sob os quais ele foi construído, a mesma que votou a lei anti-terrorismo. Por que a população indígena não entra em pauta? Nem o debate de esquerda lhe dá alguma importãncia, que morram, que percam suas terras. Esse impeachment deveria ter sido estabelecido pela população e não pela direita e para aí meu lamento. Nossa democracia tem sido "golpeada" desde que começamos a fechar os olhos para as atrocidades cometidas sob o governo do PT em nome de um romance. O impeachment, que tem escandalizado a população brasileira, pondo a população em conflito, é muito conveniente para um partido moribundo e desacreditado, ganhou fôlego, a heroicidade que sustentou o partido se renova. Enquanto a população está arrasada, Dilma estava muito bem, tranquila e sorridente circulando e rindo entre políticos que lhe seriam opositores. Cheias de carinho para com Aécio Neves. Viu quem assistiu às votações. E não venham dizer que é a tranquilidade de quem tem a consciência tranquila. Não há pessoa "honesta" que não se deteriore ao ser injustiçada. Chega de romance. Só a população está a flor da pele, sentindo-se traída. O PT ao contrário, ganhou uma oportunidade. Que essa potencia de pessoas nas ruas seja por causas propositivas e não por um partido pútrido que já deveria ter sido enterrado."

Andrea Barbosa