10 dezembro 2014

Medidas institucionais recomendadas pelo relatório da Comissão da Verdade:

1 - Responsabilização das Forças Armadas
"Dado o protagonismo da estrutura militar, a postura de simplesmente 'não negar' a ocorrência desse quadro fático revela-se absolutamente insuficiente"

2 - Fim da prescrição e da anistia dos crimes cometidos
"A importância do bem protegido justifica o regime jurídico da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e da impossibilidade de anistia"

3 - Ressarcimento
"Cabe, em relação a esses agentes públicos, a proposição de medidas administrativas e judiciais que objetivem o ressarcimento ao erário público das verbas despendidas"

4 - Proibição de comemoração do golpe de 64
"Essa realidade torna incompatível com os princípios que regem o Estado democrático de direito a realização de eventos oficiais de celebração do golpe militar, que devem ser, assim, objeto de proibição"

5 - Valorizar direitos humanos na seleção de membros das Forças Armadas
"Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos"

6 - Mudança nos currículos das academias militares e policiais
"Tal recomendação é necessária para que, nos processos de formação e capacitação dos respectivos efetivos, haja o pleno alinhamento das Forças Armadas e das polícias ao Estado democrático de direito, com a supressão das referências à doutrina de segurança nacional."

7 - Retificação de causas de morte
No caso de pessoas mortas em decorre?ncia de violac?o?es de direitos humanos, como Vladimir Herzog e Alexandre Vannucchi Leme, a causa de morte no atestado de óbito deve ser retificada "de modo célere"

8 - Exclusão de informações sobre registros de perseguição política
As informações que envolvam registros de atos de perseguição política e de condenação na Justiça Militar ocorridos no período de 1946 a 1988 da rede nacional de segurança devem ser excluídas. A CNV propõe também a manutenção de banco de DNA de pessoas mortas sem identificação

9 - Criar mecanismos de prevenção e combate à tortura
"A tortura continua sendo praticada no Brasil, notadamente em instalações policiais. Isso se deve até mesmo ao fato de que sua ocorrência nunca foi eficazmente denunciada e combatida pela administração pública"

10 - Desvincular IMLs e órgãos de perícia criminal das SSPs
Os institutos médicos legais e os órgãos de perícia devem ser desvinculados das secretarias de Segurança Pública, para que tenham maior autonomia e qualidade, além da criação de centros avançados de antropologia forense e a realização de perícias que sejam independentes e autônomas

11 - Fortalecimento das defensorias públicas
O objetivo é garantir o "exercício pleno do direito de defesa e a prevenção de abusos e violações de direitos fundamentais, especialmente tortura e maus-tratos"

12 - Melhoria do sistema prisional e do tratamento dado aos presos
"Os presídios são locais onde a violação múltipla desses direitos ocorre sistematicamente. (...) É necessário abolir, com o reforço de expresso mandamento legal, os procedimentos vexatórios e humilhantes pelos quais passam crianças, idosos, mulheres e homens ao visitarem seus familiares encarcerados"

13 - Instituição legal de ouvidorias externas no sistema penitenciário
"Os ouvidores devem ser escolhidos com a participação da sociedade civil, ter independência funcional e contar com as prerrogativas e a estrutura necessárias ao desempenho de suas atribuições"

14 - Fortalecimento de conselhos da comunidade
Os conselhos, que foram criados em uma lei de 1984, devem ter a composição definida em processo "público e democrático"

15 - Garantia de atendimento médico e psicossocial a vítimas
"As vítimas de graves violações de direitos humanos estão sujeitas a sequelas que demandam atendimento médico e psicossocial contínuo, por meio da rede articulada intersetorialmente e da capacitação dos profissionais de saúde para essa finalidade específica. A administração pública deve garantir a efetividade desse atendimento"

16 - Promoção da democracia e dos direitos humanos na educação
"A adoção de medidas e procedimentos para que, na estrutura curricular das escolas públicas e privadas dos graus fundamental, médio e superior, sejam incluídos, nas disciplinas em que couberem, conteúdos que contemplem a história política recente do país e incentivem o respeito à democracia"

17 - Apoio a órgãos de proteção e promoção dos direitos humanos
Fomento a órgãos como secretarias de Direitos Humanos nos Estados e municípios, além de "valorização dos órgãos já existentes --o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia"

Renata Gomes

07 dezembro 2014

"Parte do ativismo feminista se concentra em visibilizar os casos de violência misógina nas relações cotidianas, interpessoais e institucionais [...] machismo não é episódio ou caso isolado, é sistema de dominação que subalterniza uma classe inteira de pessoas por conta do seu gênero: nós, mulheres. E que é divulgando o que ocorre no âmbito individual que encontramos nossas irmãs com experiências, narrativas, anseios e desejos semelhantes aos nossos e alcançamos a dimensão coletiva da luta. A gente tb sabe que, por mais que os homens neguem, a divisão entre o público e o privado serviu e serve ainda pra nos banir dos espaços políticos e de decisão, pra neutralizar nossas pautas e pra impedir que encontremos outras mulheres com os mesmos relatos de opressão. Porque o encontro, a troca de experiências, a visibilização das violências cotidianas cria a resistência, fortalece isso que os apavora e nos unifica: a sororidade. Porque a gente sabe que 'o pessoal é o político'."

 Cecilia Viera de Melo

Pra uso diário

"A mensagem que estou extraindo de tudo isso é que pra muita gente a esquerda é o showbiz. Mas um showbiz com a peculiaridade de ser inquestionável, porque arrota certa legitimidade. Ao mesmo tempo em que questionam o sistema representativo, esses figurões moldam um cenário de privilegiados intelectuais com aparente empatia pelos oprimidos e se entitulam a nova esquerda. Ou seja, fundam um novo e nebuloso sistema representativo, que tem as redes sociais como mídia, mas que, como toda mídia, continua estabelecendo certos critérios para dar visibilidade a este ou aquele discurso. Esta mídia tem seus eleitos, não se enganem. E eles não são muito diferentes dos eleitos das mídias corporativas, porque precisam dominar certas linguagens, instrumentos e precisam saber se projetar. Ou seja, a lógica é elitista. Eu não posso acreditar que essa gente queira mais transformação social do que alguém que sofre certas coisas na pele. Quem tem que protagonizar os seus processos de transformação social são os que sofrem as tantas modalidades de opressão: as mulheres, os negros, os trabalhadores, os indígenas. Chega de messias. Eu não sei de onde vem a empatia de alguns que nunca pisaram certos ambientes onde as opressões acontecem. De onde brota? Semideuses não podem mais passar. Sêmen-deuses não passarão."

Maria Gabriela Saldanha

03 dezembro 2014

"[...] Nosso problema tem sido rotular algo como estupro, assédio sexual, pornografia diante da suspeita de que talvez seja uma relação sexual consensual, talvez seja uma investida sexual comum, talvez seja erótico. Para dizermos que essas coisas supostamente sexuais nos violam, para sermos contra elas, dizemos que elas não são sexuais. Mas a tentativa de sermos objetivas e neutras impede que assumamos o fato de que as mulheres têm um ponto de vista específico sobre estes eventos. Impede que digamos que, do ponto de vista das mulheres, relação sexual, papéis sexuais e erotismo podem ser e muitas vezes são violentos para nós como mulheres.
Minha abordagem invoca a nossa perspectiva; não estamos tentando ser objetivas sobre isso, estamos tentando representar o ponto de vista das mulheres. O ponto de vista dos homens, até o momento, chamado de 'objetivo', tem sido usado para distinguir categoricamente entre estupro de um lado e relação sexual consensual do outro; assédio sexual de um lado e investida sexual comum do outro; pornografia ou obscenidade de um lado e erotismo do outro. O ponto de vista masculino os define por distinção. O que as mulheres experienciam não distingue tão claramente as coisas diárias e normais dos abusos a partir dos quais elas foram definidas por distinção. Não se trata apenas de dizer 'Agora vamos pegar o que você diz ser estupro e chamar de violência'; Agora vamos pegar o que você diz ser assédio sexual e chamar de violência'; 'Agora vamos pegar o que você diz ser pornografia e chamar de violência'. Nós temos uma crítica mais profunda sobre o que tem sido feito à sexualidade das mulheres e sobre quem controla acesso a ela. O que estamos dizendo é que a sexualidade em precisamente essas formas normais frequentemente nos viola. Mas enquanto dissermos que aquelas coisas são abusos de violência, não de sexo, falhamos em criticar o que tem sido feito do sexo, o que tem sido feito a nós por meio do sexo, porque deixamos a linha entre estupro e relação sexual consensual, assédio sexual e papéis sexuais, pornografia e erotismo bem onde está.
Acho que é útil questionar de que forma mulheres e homens (não uso o termo 'pessoas', eu acho, porque não tenho visto muitas) vivem o significado de suas experiências com estas questões. Quando perguntamos se estupro, assédio sexual e pornografia são questões de violência ou de sexualidade, ajuda perguntar: para quem? Qual a perspectiva dos envolvidos, cuja experiência é de estuprar ou de sofrer um estupro, de consumir pornografia ou ser consumida por meio dela. Quanto ao que essas coisas significam socialmente, é importante se elas são sobre sexualidade para mulheres e homens ou se, em vez disso, são sobre 'violência' - ou se violência e sexualidade podem ser distinguidos dessa forma, conforme são vividos." (tradução livre)
Catharine Mackinnon, "Sex and Violence", em "Feminism Unmodified: Discourses on Life and Law", 1987. pp. 86-87.

01 dezembro 2014

"(1) Certas atitudes e traços da vida cotidiana não parecem mais ideologicamente marcados. Passam por neutros. Naturais. Ninguém questiona a sua origem. Não por acaso, é comum dizer que saberíamos se houve ou não uma revolução, quando o senso comum fosse afetado. Não houve revolução. Mas há uma contrarrevolução violenta, permanente e invisível;
(2) A naturalização da ideologia dominante se afirma como o seu contrário: a não ideologia. A violência simbólica se afirma como o seu contrário: a não violência. Essa estrutura perversa aceita até o cinismo de nomear a violência permanente de pacificação;

(3) A violência (simbólica e real) contra o oprimido é a não violência. É aquilo mesmo que é natural. No entanto, a explosão violenta do oprimido, por ser tão incomum, é reconhecida como barbárie;

(4) Bárbaros são, como sempre foram, aqueles que, voluntaria ou involuntariamente, não estão imersos na ideologia dominante. Podemos dar muitos nomes, que aumentam a distância que nos separa deles e que naturaliza a violência contra eles: terroristas, bandidos, putas, radicais, misândricas. Sob o signo da misandria uma mulher pode ser colocada com facilidade no lugar de opressora, sem a necessidade de nenhuma análise mais profunda;

(5) A misandria, um discurso de ódio aos homens, parece muito mais alto, muito mais potente, porque o ódio às mulheres seja na forma de estupro, assassinato ou de simples objetificação é natural. Ninguém questiona a sua origem. Ninguém questiona a origem dessas relações de poder, porque elas não aparecem como relações de poder, mas como relações naturais. Se preferirem, consensuais;

(6) Consensuais, não entre duas pessoas, mas entre todos nós, que aceitamos, em consenso: não existe violência simbólica nem hierarquia de poder nas relações entre homem e mulher. Afinal, estamos lidando com aquilo que é natural, esvaziado de ideologia e só passível de críticas/análises no campo moral;

(7) Não há coincidência entre sujeitos sexuais/sujeitos políticos e objetos sexuais/objetos políticos? Não há violência simbólica no desejo?

(8) Uma mulher não reage contra a violência simbólica porque – tanto como nós – tem extrema dificuldade de reconhecê-la.

(9) A ideologia é como uma figura holográfica: se movimentarmos um pouco as situações, conseguimos enxergá-la. Mas, neste momento, estaremos inelutavelmente sós. Inelutavelmente incompreendidos. Seremos bárbaros."

Daniela Lima - Facebook

Sobre o caso Idelber Avelar

Sobre o caso do Idelber, tenho a dizer apenas que não se trata de uma questão judiciária ou moral, mas ética e política.

Não sei se algo ali pode vir a configurar crime pelas leis vigentes, e nem acho que é isso que está em jogo. Acontece que são denúncias de práticas abusivas que, sendo crime ou não pelas leis de um Estado que serve acima de tudo aos interesses de opressores, devem ser respondidas sempre que ocorrem. A questão não é judiciária, mas ético-política. Não dá pra compactuar com práticas abusivas de quem ocupa espaços de militância, inclusive virtual, dentre outros motivos porque elas tornam esses espaços inseguros para as mulheres que (neste e em muitos outros casos) são os alvos desse tipo de abuso. Não se trata de expor "criminosos". Estes, a depender do crime (e especialmente se este não coloca o criminoso no papel do opressor), que sejam muito bem-vindos. Não se esqueçam que quem ocupa e resiste no campo e na cidade é para o nosso Estado criminoso, o mesmo para as mulheres que interrompem a gravidez. O modelo punitivista da justiça estatal não me parece parâmetro adequado para um debate ético-político. Com todas as suas formalidades e garantias constitucionais, incluindo a presunção de inocência, a justiça mantém há mais de um ano o Rafael Braga preso por porte de Pinho Sol.

Portanto, havendo ou não indícios de crime nas denúncias, o ponto que se coloca não é o criminal, mas o da presença do assédio, da manipulação, do uso e do abuso de privilégios sociais, etc. Autodefesa não é só fazer escudo pra encarar o choque, é também criar ambientes cada vez mais livres de opressão e nos quais se possa ter uma base de confiança. Autocrítica não é só fazer análise de experiências de organização e luta, é também reconhecer e combater os comportamentos opressivos que cada um de nós trazemos, especialmente aqueles que vêm de vivências privilegiadas. Ação direta não se pratica só em atos de rua, se pratica também em formas de lidar com opressões que não necessariamente passam pelos canais institucionais - e a exposição pública de opressões privadas é uma dessas formas. Uma forma de ação que a tecnologia facilita e que, como qualquer outra, está sujeita a erros a serem objetos também de autocrítica sempre que for o caso.

Pode ser uma perseguição injusta e mal-intencionada? Sempre pode ser, mas essa hipótese nunca, de maneira alguma, deve ser colocada antes das demais num caso em que quem expõe são pessoas em situação social (especialmente, neste caso, de gênero) desprivilegiadas. As palavras delas vêm primeiro e deslegitimá-las por princípio é silenciá-las e contribuir para perpetuar um ambiente tranquilo para todos os abusadores. Quem foi exposto não é alguém sem condições de contrapor as acusações, na verdade é precisamente o contrário: é alguém com domínio das linguagens socialmente aceitas e com projeção razoavelmente grande para ser ouvido por muita gente. Alguém que deve ser ouvido atentamente assim que se pronunciar a respeito. Não se trata nem de linchamento extra-judicial, nem de justiça estatal, e sim de autodefesa e de uma oportunidade de autocrítica para todos nós. Penso que para que seja isso, e para que não façamos disso um tribunal moral, importa tanto agir com cautela com relação aos desdobramentos da exposição quanto, principalmente, fazer um debate qualificado, que vá para além do indivíduo. E penso que isso vale pra todos os casos do tipo, pois o Idelber não é o primeiro nem será o último.

Para um debate qualificado, uma das questões que se colocam é a da confusão entre o que há de fetiche e o que há de abuso nos diálogos expostos. Quer dizer, existem limites bem marcados entre práticas fetichistas/BDSMers e abuso. Limites que são debatidos e reconhecidos pelas comunidades praticantes dessas formas de expressão da sexualidade e que duvido que alguém com tanto acesso a bens culturais e residente nos EUA não tenha tido contato. Limites que em grande medida são simples decorrências da ética mais elementar que vale pra todo o resto do que diz respeito a sexualidade, pois seu fundamento central é o consentimento. Dito isso, tudo indica que o Idelber ultrapassou bastante esses limites. Portanto, é um erro atacar o fetiche para atingir o abuso. Essas coisas não se misturam, ainda que exista sim muito abuso entre fetichistas, como também existe entre não-fetichistas. Situar o problema aí, recriminando que ele fale em "marido corno", ou que use vocabulário escroto numa conversa sexual, dentre outras coisas, é errar feio o alvo. O problema aí é outro, é o assédio na abordagem, é o constrangimento com foto de pau não solicitada, é a manipulação de quem está entrando num jogo sem estar consciente de que jogo se trata, etc.
Resumindo, o problema é que não é consensual porque pra ser consensual não basta a pessoa dar continuidade à conversa. É preciso, dentre outras coisas, que haja interesse de todos os envolvidos em participar de um jogo sexual, seja real ou virtual, e que este interesse não seja manipulado através da exploração das fragilidades das pessoas. A conversa suja em si, por mais suja que seja (e conversas bem mais sujas que essas podem não ter absolutamente nada de abusivas) não é o que desqualifica o cara. Se fosse esta a questão seria puro moralismo, pura inquisição. Então se trata de separar o abuso, de combater o abuso, porque a confusão entre abuso e fetiche só serve para que abusadores usem fetiche de fachada e para que fetichistas/BDSMers sejam recriminados sem terem cometido abuso algum.

Entendo, portanto, que a exposição do assédio pelas duas mulheres se coloca numa esfera que não é nem a judicial nem a moral, mas de natureza ética e política. Sendo que a questão colocada nos relatos é sobretudo a da consensualidade, que no meio da treta muitas vezes é reduzida à opção dessas mulheres em continuar ou não conversando com ele - uma das muitas variantes da culpabilização da vítima. Só que consensualidade não é só isso. Para não serem opressivas e abusivas, as práticas sexuais podem escapar a normas morais estabelecidas, mas não podem ignorar questões éticas, o que é bem diferente. Os relatos indicam se tratar de jogos recorrentes nos quais as regras não são claras para as mulheres envolvidas, que são abordadas de forma abusiva e que são manipuladas por alguém que usa privilégios sociais para explorar suas fragilidades. Se fosse apenas conversa suja, mesmo que muito suja, entre duas pessoas adultas, cada qual buscando seu prazer, daria pra falar em tribunal moral. Mas não é o caso, o caso é de autodefesa das mulheres e de necessidade de autocrítica para todos nós. Nenhuma dessas questões se esgotam neste caso e espero que ele sirva para o aprendizado de todos.

André Gondinho