31 agosto 2014

'Saindo da escola secundária, eu tinha apenas um desejo – escrever. Mas o que isso significa? Para escrever – o que? Este foi, creio eu, um desejo de possibilidade na minha vida. O que eu queria não era a “escrever”, mas “ser capaz de” escrever. É um gesto inconscientemente filosófico: a busca de possibilidades em sua vida, o que é uma boa definição de filosofia. A lei é, aparentemente, o contrário: é uma questão de necessidade, não de possibilidade. Mas quando eu estudei direito, era porque eu não poderia, é claro, ter sido capaz de acessar o possível sem passar no teste do necessário. Em qualquer caso, os meus estudos de direito tornaram-se muito úteis para mim. Poder desencadeou conceitos políticos em favor dos conceitos jurídicos. A esfera jurídica não pára de expandir-se: eles fazem leis sobre tudo, em domínios onde isto teria sido inconcebível. Esta proliferação de lei é perigosa: nas nossas sociedades democráticas, não há nada que não é regulamentado. Juristas árabes me ensinaram algo que eu gostei muito. Eles representam a lei como uma espécie de árvore, em que em um extremo está o que é proibido e, no outro, o que é obrigatório. Para eles, o papel do jurista situa-se entre estes dois extremos: ou seja, abordando tudo o que se pode fazer sem sanção jurídica. Esta zona de liberdade nunca para de estreitar-se, enquanto que deveria ser expandida."

Fonte: aqui
Do TDAH

            "Hoje eu acordei bastante preocupada com minha capacidade concentração. Há muito não sentia isso. Desde a época do colégio, devo dizer. Durante a faculdade, por eu ter me apaixonado, perdidamente e logo no primeiro ano, por Miguel Reale tanto quanto sempre fui por Tolstoi ou Marília Arnaud, não tive as dificuldades que sofri enquanto estava, sobretudo, no ensino médio.
            Quase mato meus pais de preocupação. Eles não conseguiam compreender como alguém que lia tanto, literatura já avançada para minha idade, que passava os domingos trancada no quarto, rodeada pela Folha de São Paulo e contos de Córtazar, pudesse ter alcançado a façanha de ter ficado em recuperação em todas as matérias, à exceção de história. “Ué, mas você não lê tanto?” – minha mãe perguntava, com um misto de sarcasmo e  repreensão – “Não é tão boa em línguas?”. Isso porque, à época, eu já falava inglês e francês em certo avanço. Sim, eu havia ficado em recuperação em português e inglês, mesmo sendo boa em línguas. Eu conseguia escrever e falar, mas como explicar orações subordinadas e expressões adverbiais?
Não me orgulho disso. Como também não me orgulho de ter passado no segundo ano científico pelo temido conselho de classe, porque os professores tiveram um pouco de misericórdia e talvez um pouco de bom senso (a frustração de uma reprovação para uma adolescente talvez seja pior do que o desconhecimento total da trigonometria e geometria espacial).
Meu primeiro ano do ensino médio, em especial, é que foi, de fato, o período de crise mais grave: tinha insônias torturantes, chegava a ficar três ou quatro dias sem dormir. Levaram-me para passar um mês em Sousa, a título de castigo. Resultado é que eu saía de casa na surdina, fazia rondas à pé pela cidade, jogava baralho com alguns vigias e iniciei meu caminho na sinuca e na cerveja. A noite é perigosa para quem tem só catorze anos, e mais perigosa ainda para quem tem catorze e acha que tem cinquenta
Foi nesse tempo também que comecei a tomar café como quem toma água: apesar de sentir sono durante o dia, não conseguia mesmo dormir. Então me enchia de café para viver o dia como um zumbi. Tinha um amigo especial, Seu Rubismar, que tinha uma loja de CDs. Ficava lá das duas da tarde até à noitinha, ele me mostrando os sons da década de 50, 60, até as novidades dos dias atuais, ele, o primeiro pirateador de cinquenta anos da Paraíba, no meu sentir. Em 2003, 2004, já baixava tudo pela internet.
Um dia, Seu Rubismar encontrou papai e contou-lhe de nossa amizade. Meu pai ficou feliz e surpreso. Disse-lhe que eu era muito inquieta. Seu Rubismar tomou aquilo com espanto: inquieta? Ela passa a tarde inteira sentada, tomando café e ouvindo música.
Daí surgiu, mais uma vez, a ideia de que meu problema não era de concentração ou inquietude, mas pura preguiça. Mamãe voltou a me ralhar: você vai ficar igual aos Pordeus, lendo, ouvindo música e tomando café sem parar. Os Pordeus são a família do meu avô, do pai da minha mãe, que têm uma veia artística muito desejada por mim, não inscrita nos meus genes, infelizmente.
O grande paradigma a ser enfrentado era como eu conseguia me concentrar tanto em algumas atividades, até demais, ao ponto de conseguir terminar um longo romance em um final de semana, aprender francês em um ano, ao passo em que era incapaz de passar quinze minutos resolvendo questões de física, matemática ou até mesmo – pasmem - estudando geografia.
Para mamãe, como disse, era simplesmente preguiça e capricho. Eu só fazia o que tinha vontade e ponto final. Papai era um pouco mais compreensivo, porque achava que eu não podia ser um fracasso total na vida já que conseguia pelo menos ler. Falava, por vezes, brincando, quando mamãe explodia comigo: ela pode ser crítica literária, né? Ou de cinema!            
Nada disso era bom para mim. Apesar de muita gente me admirar e me achar bacana, eu sofria muito por não ter um desempenho no mínimo regular no colégio. Por não ter ideia de como passaria em um vestibular, faria faculdade, por não saber em que profissão me encaixaria.
Fora a concentração, havia outros problemas. Desorganização extrema (não adiantava arrumar o quarto pela manhã, à noite ele já estaria, novamente, um caos), paixão por aventuras (pegar carona com desconhecidos, inclusive em países estrangeiros, como bem me lembrou minha prima Carol, recentemente, alugar teatros fingindo ser uma adulta, pedir motos emprestadas e sair desembestada pela cidade), total inépcia para a pontualidade, sobretudo em razão dos meus horários pouco convencionais.
Assim, eu carreguei durante minha adolescência inteira um sentimento de insuficiência e incompetência extremos, que me conduziram a uma baixa autoestima, e à sensação suprema de incapacidade. Não raro, ficava apática e muito, muito melancólica.
Um dia, estávamos numa livraria, eu e mamãe e vimos um livro chamado “Mentes Inquietas”, da mesma autora de “Mentes Perigosas”, que fez sucesso recentemente, Ana Beatriz Barbosa. Acho que o livro acabara de ser lançado. Mamãe nem leu a sinopse no verso. Pronto, é isso aqui que você é, uma mente inquieta, ela sentenciou. Eu li o livro primeiro, de assalto. Caladinha, mandei que ela lesse.
Descobrimos que existia uma doença, sim, doença,chamada Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, e que, pior, eu me encaixava perfeitamente na descrição dos “sintomas” da doença. Naquele tempo, o termo mais usado era DDA – Distúrbio do Déficit de Atenção, sendo a hiperatividade um aspecto da doença, sendo esse aspecto o que menos me aproveitava. Eu não era de um todo serelepe, traquina, de subir em árvores. Mas roubava motos, carros (aprendi a dirigir aos doze anos) e não conseguia dormir.
Não foi a solução de todos os problemas, não. Ao contrário. A preguiça tinha conserto, correto? Mas e uma doença? Um transtorno mental? Acho que mamãe se aperreou mais ainda, para ser sincera, porque continuou dizendo que eu tinha mesmo era síndrome de Macunaíma. Foi minha irmã mais velha, que já era médica residente, que pensou que aquilo tudo podia ter algum sentido, sim, e convenceu meus pais a me levarem a um psiquiatra no Recife.
Para uma adolescente já cheia de conflitos, a ideia de precisar ir a um psiquiatra não foi das mais confortáveis. Além de incapaz e inapta, senti-me muitíssimo frágil. Na primeira consulta, o médico disse sem rodeios que eu tinha, sim, o tal Distúrbio de Atenção.
Mamãe não se conformou. Queria uma tomografia ou algo similar que provasse isso. Insistiu na teoria da preguiça. Disse da minha paixão por literatura, música e cinema. O médico, gentilmente, perguntou-lhe mais uma vez se ela tinha lido o livro que havia nos levado ali, e se ela se recordava de um tópico que falava do hiperfoco.
Ela continuava relatando como eu passava quatro ou cinco horas lendo, “só lendo, doutor! Vê três ou quatro filmes em sequência! Como essa menina tem problema de atenção?”. Pois bem. O doutor informou que preferia não chamar exatamente de um problema de atenção, mas de um desvio. Que minha atenção era extremamente, mas de uma forma muito extrema mesmo, direcionada para os assuntos pelos quais eu sentia mais interesse. Que o fato de eu ser espacialmente desorganizada se dava também por eu devanear demais.
Claro que mamãe não engoliu essa conversa. Até eu, até hoje, e depois vou explicar melhor, fico um tanto quanto reticente em relação a essa tese. No dia mesmo fiquei. Porque, ora, se eu só conseguia atentar para o que gostava é porque tinha preguiça do resto das coisas e fazia tão somente o que desejava. Ou seja, caprichosa e preguiçosa, mesmo. Mas, segundo o psiquiatra, não era uma escolha minha. As pessoas “normais” conseguiam direcionar a atenção, os portadores (e imaginem que susto é ouvir essa palavra) de TDAH simplesmente não conseguem.
Mas havia um remédio, sim, e não era só o café – pois não é que até meu vício pela cafeína restou explicado? Era uma droga chamada Ritalina, e eu tinha que começar a tomá-la imediatamente. No mesmo dia compramos, no dia seguinte comecei a tomar. Os efeitos foram devastadores, para mim. Perdi alguns quilos e consegui me focar em quase tudo e, uma novidade, em biologia, porque fiquei admirada com aquilo que o doutor explicou serem os responsáveis pelo meu mal: os neurotransmissores. Não eles em si, mas a deficiência de um em específico, a dopamina. Até hoje não sei como funciona, mas, ao que parece, a ritalina regula os níveis de dopamina no cérebro.
Para o espanto e maravilha de todos, tirei vários dez em biologia e até um em matemática, seguidos de um nove em física. Por outro lado, fiquei muito calada e abatida. Hoje não sei realmente se foi a ritalina que me deixou assim. Talvez a ideia de ter uma doença, de precisar de um remédio, de ser tão jovem e me perturbar tanto tenham sido fatores mais fortes para gerar em mim um aspecto sorumbático, ao ponto de o professor de física dizer que gostava mais de mim quando eu tirava cinco e conversava mais. Entretanto, no auge dos meus complicados catorze anos, a explicação mais plausível é de que tinha sido a droga, sim.
Então, tomei uma decisão bastante séria: parei de tomar a ritalina sem dizer a ninguém. Meus pais continuaram comprando o medicamento por mais uns dois anos, sem sequer saber que eu só o tomei por alguns meses, oito ou nove no máximo. Às vezes eu fazia a revenda para uns CDFs que queriam se concentrar ainda mais. Outras vezes só jogava no lixo, mesmo.
Aos dezessete anos, agarrei-me à tese de mamãe: eu era preguiçosa e tinha que corrigir isso. Não precisava de um medicamento. Pensei que essa história de TDAH era balela para alimentar a indústria farmacêutica. Veio a faculdade e, como disse, meu hiperfoco foi bem vantajoso, já que podia estudar por horas a fio Direito Constitucional e Processual Civil. Não tive a mesma sorte com o Direito das Coisas. Até hoje tenho sequelas de tanto repassar páginas falando sobre o direito de sequela.
A maturidade diminuiu alguns arroubos. E assim fui me ajustando. Outro dia, li um tuíte de Ana Beatriz Barbosa, que também tem TDAH, dizendo: “perguntaram-me se eu tive TDAH. Eu não tive, eu tenho. Só aprendi a viver com ele”. Pesquisei sobre TDAH na vida adulta e aí vi que continuo me encaixando direitinho na descrição dos portadores. Não quero dissertar sobre isso, já adentrei demais na minha vida pessoal. Entretanto, li um interessante dado: apenas um percentual de 30 a 50% das crianças com TDAH continuam a sofrer do mal na vida adulta. Desconfio muito disso. Como disse Ana Beatriz, a gente aprende a viver com a desatenção, com a desorganização e vai ajustando nossa vida para que esses aspectos não nos prejudiquem tanto. Alguns conseguem fazer com um grau menor de maestria e, por isso, são inseridos no percentual acima mencionado.
Então, se esse ajuste é possível, a doença existe? Bem, hoje, como mamãe, eu queria muito que uma tomografia me provasse. Não sei se os Pet-scans fazem isso, mas, enfim, parece que ainda temos que confiar na subjetividade psiquiátrica que, cá para nós, não é das mais confiáveis, e não sinto vergonha em dizer que falo por experiência própria. Claro que mamãe não me levou só em um psiquiatra. E, depois, mais tarde, quando ela já tinha falecido, visitei alguns, mais por tristeza do que por desatenção. Encontrei muitos irresponsáveis e recebi diagnósticos bastante confusos. Por isso, prefiro resolver meus dilemas com a psicanálise, que é subjetiva, mas não inventa de medicar e, pelo menos não na minha vivência, também não rotula.
Já com 21 anos, descobri que um dos papas do TDAH no Brasil, o Dr. Salomão Schuartzman, estava em João Pessoa, para uma conferência sobre autismo organizada pela minha tia. Depois de muita persistência, consegui uma consulta com ele (até porque também queria um autógrafo do seu livro, que tinha desde os catorze anos). É um senhor muito sereno, que me ouviu atentamente e confirmou, sim, o meu diagnóstico de déficit de atenção. Eu posso não tomar a ritalina?, perguntei. Era o meu maior medo, dada a malfadada experimentação adolescente. Pode, ele me respondeu tranquilo. Só vai ser mais difícil, mas também acho que você já sabe como é.
Não sou contra fármacos para a mente. Acho que falta de dopamina é o mesmo que falta insulina, e não podemos nos furtar a toma-la. Todavia, como os efeitos da ausência da substância são diversos numa e noutra enfermidade, ainda posso me dar ao luxo de arriscar os meus métodos e minha capacidade de transformação.
Passei muito tempo achando que o cérebro era algo estanque, que éramos determinados pelo oráculo genético de Steven Pinker, sem alternativas. Hoje, penso que, embora dentro desse oráculo genético, há algumas opções. Pode ser pueril. Minha irmã mais velha ainda insiste para que eu tome a ritalina, mas minha resistência a ela foi profunda, porque afetou um lado da minha personalidade do qual eu sempre gostei muito: minha espontaneidade, extroversão. E perder isso novamente, ainda que por alguns meses, não me é compensado por conseguir ler algumas páginas a mais. Pelo menos por enquanto.
Algo, todavia, há de ser advertido, para pais e adolescentes: o TDAH existe, não é uma invenção da indústria farmacêutica, nem uma desculpa para não estudar. Mas vejo uma profusão do TDAH sem limites. Observo que alguns pais parecem querer se furtar da responsabilidade de compreender porque seus filhos não estão bem na escola, e aí empurram ritalina ou concerta (que já foi, inclusive, taxado de a droga da obediência) goela abaixo. Não é uma simples desatenção que caracteriza o transtorno, e a irresponsabilidade de alguns pais e médicos ao aceitar e fazer o diagnóstico de forma precoce, respectivamente, pode ser extremamente maléfica para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Já outros pais, como os meus, por exemplo, podem ter uma atitude relutante no que tange à aceitação do diagnóstico, e isso também pode ser prejudicial. Vale lembrar que não é só a droga e, principalmente, ela, isoladamente, que ajuda a combater os efeitos do transtorno. A terapia é uma excelente medida, no meu caso, em particular, a melhor. Essa relutância pode acarretar, como acarretou para mim, em baixa autoestima, sensação de angústia e impotência. Até hoje, sinto minha confiança assaz abalada, principalmente no campo profissional.
Na faculdade, um professor veio me contar que seu filho de oito anos tinha sido diagnosticado com TDAH, sendo a hiperatividade o aspecto mais forte da doença nele. Disse-me que não iria fazer nada, porque não queria mudar a personalidade do filho. Apesar do baixo rendimento escolar, achava-o perspicaz e inteligente. Essa visão é interessante, mas também pode ser maléfica. A droga pode até ser descartada, mas o alarme do diagnóstico não pode ser sumariamente rejeitado. Muitas vezes, só a consciência do problema é suficiente para que se façam arranjos no cotidiano da pessoa e, assim, ajustá-la para o justo cumprimento das suas responsabilidades.
Só quem tem TDAH de verdade e sofre com isso sabe que não é um alento ouvir que TDAH é o mal dos gênios.
Conheço adultos mais velhos que eu que até hoje têm sérios problemas profissionais, pessoas com alto grau de inteligência, mas que não conseguem utilizá-la, não raro por problemas sérios de confiança, por terem sido taxados de preguiçosos e burros na infância. Comentários desta ordem podem não vir dos pais, como no caso do meu professor, mas de professores e colegas de classe.
Tive que fazer muitos e muitos ajustes na minha vida e ainda sofro com os problemas advindos do TDAH. Tenho insônias recorrentes e embora não deixe de cumprir prazos, muito frequentemente deixo as atividades para o último momento, mas tento me disciplinar. Meu cuidado é redobrado. Um esforço diário.
Se TDAH é simplesmente jeito de ser, modelo de personalidade, a cada dia eu acredito mais que não. Entretanto, se um modelo de personalidade contém aspectos que prejudicam de forma maior no nosso cotidiano, é imperioso seja feito um controle diuturno, aplicando-se doses diárias de ordem e obediência em nós mesmos.
Sei que muita gente acha besteira isso de transtorno mental. Tudo o que posso dizer é através de minha vivência, o que aprendi com o meu próprio sofrimento. E é um grande sofrimento não ter controle sobre si mesmo, ainda mais em um mundo tão cheio deoverachievers. Invejo essa gente de disciplina militar, que acorda cedo, corre na praia, estuda, é bem sucedida e bronzeada sem risco de câncer de pele. Eu esqueço constantemente o filtro solar, até quando vou à praia (ainda bem que vou pouco) nesta era em que “use filtro solar” virou bordão.
Ainda passo por poucas e boas, porque, quando não consigo me concentrar, saio do Alto Branco e vou bater em Massaranduba. Porque tenho medo de fazer provas, arrisco-me pouco onde devo me arriscar e, às vezes, passo dos limites onde os limites devem ser bem estritos. Mas ainda há espaço para essa gente cinéfila, que, mesmo não tendo dom para overachiever, consegue redescobrir toda a alegria e esperança do mundo num longa-metragem de Claude Lelouch."

Myriam Gadelha - Fonte: aqui
Adélia Prado me ensina pedagogia. Diz ela: "Não quero faca nem queijo; quero é fome". O comer não começa com o queijo. O comer começa na fome de comer queijo. Se não tenho fome é inútil ter queijo. Mas se tenho fome de queijo e não tenho queijo, eu dou um jeito de arranjar um queijo...

Sugeri, faz muitos anos, que, para se entrar numa escola, alunos e professores deveriam passar por uma cozinha. Os cozinheiros bem que podem dar lições aos professores. Foi na cozinha que a Babette e a Tita realizaram suas feitiçarias... Se vocês, por acaso, ainda não as conhecem, tratem de conhecê-las: a Babette, no filme "A Festa de Babette", e a Tita, em "Como Água para Chocolate". Babette e Tita, feiticeiras, sabiam que os banquetes não começam com a comida que se serve. Eles se iniciam com a fome. A verdadeira cozinheira é aquela que sabe a arte de produzir fome...


Quando vivi nos Estados Unidos, minha família e eu visitávamos, vez por outra, uma parenta distante, nascida na Alemanha. Seus hábitos germânicos eram rígidos e implacáveis.

Não admitia que uma criança se recusasse a comer a comida que era servida. Meus dois filhos, meninos, movidos pelo medo, comiam em silêncio. Mas eu me lembro de uma vez em que, voltando para casa, foi preciso parar o carro para que vomitassem. Sem fome, o corpo se recusa a comer. Forçado, ele vomita.

Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim "affetare", quer dizer "ir atrás". É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado.

Eu era menino. Ao lado da pequena casa onde morava, havia uma casa com um pomar enorme que eu devorava com os olhos, olhando sobre o muro. Pois aconteceu que uma árvore cujos galhos chegavam a dois metros do muro se cobriu de frutinhas que eu não conhecia.

Eram pequenas, redondas, vermelhas, brilhantes. A simples visão daquelas frutinhas vermelhas provocou o meu desejo. Eu queria comê-las.

E foi então que, provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar se pôs a funcionar. Anote isso: o pensamento é a ponte que o corpo constrói a fim de chegar ao objeto do seu desejo.

Se eu não tivesse visto e desejado as ditas frutinhas, minha máquina de pensar teria permanecido parada. Imagine se a vizinha, ao ver os meus olhos desejantes sobre o muro, com dó de mim, tivesse me dado um punhado das ditas frutinhas, as pitangas. Nesse caso, também minha máquina de pensar não teria funcionado. Meu desejo teria se realizado por meio de um atalho, sem que eu tivesse tido necessidade de pensar. Anote isso também: se o desejo for satisfeito, a máquina de pensar não pensa. Assim, realizando-se o desejo, o pensamento não acontece. A maneira mais fácil de abortar o pensamento é realizando o desejo. Esse é o pecado de muitos pais e professores que ensinam as respostas antes que tivesse havido perguntas.

Provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar me fez uma primeira sugestão, criminosa. "Pule o muro à noite e roube as pitangas." Furto, fruto, tão próximos... Sim, de fato era uma solução racional. O furto me levaria ao fruto desejado. Mas havia um senão: o medo. E se eu fosse pilhado no momento do meu furto? Assim, rejeitei o pensamento criminoso, pelo seu perigo.

Mas o desejo continuou e minha máquina de pensar tratou de encontrar outra solução: "Construa uma maquineta de roubar pitangas". McLuhan nos ensinou que todos os meios técnicos são extensões do corpo. Bicicletas são extensões das pernas, óculos são extensões dos olhos, facas são extensões das unhas.

Uma maquineta de roubar pitangas teria de ser uma extensão do braço. Um braço comprido, com cerca de dois metros. Peguei um pedaço de bambu. Mas um braço comprido de bambu, sem uma mão, seria inútil: as pitangas cairiam.

Achei uma lata de massa de tomates vazia. Amarrei-a com um arame na ponta do bambu. E lhe fiz um dente, que funcionasse como um dedo que segura a fruta. Feita a minha máquina, apanhei todas as pitangas que quis e satisfiz meu desejo. Anote isso também: conhecimentos são extensões do corpo para a realização do desejo.

Imagine agora se eu, mudando-me para um apartamento no Rio de Janeiro, tivesse a idéia de ensinar ao menino meu vizinho a arte de fabricar maquinetas de roubar pitangas. Ele me olharia com desinteresse e pensaria que eu estava louco. No prédio, não havia pitangas para serem roubadas. A cabeça não pensa aquilo que o coração não pede. E anote isso também: conhecimentos que não são nascidos do desejo são como uma maravilhosa cozinha na casa de um homem que sofre de anorexia. Homem sem fome: o fogão nunca será aceso. O banquete nunca será servido.

Dizia Miguel de Unamuno: "Saber por saber: isso é inumano..." A tarefa do professor é a mesma da cozinheira: antes de dar faca e queijo ao aluno, provocar a fome... Se ele tiver fome, mesmo que não haja queijo, ele acabará por fazer uma maquineta de roubá-los. Toda tese acadêmica deveria ser isso: uma maquineta de roubar o objeto que se deseja...


Rubem Alves, 68, é educador e psicanalista.

A virada à esquerda vem das ruas - por Giuseppe Cocco

Vocês lembram que as grandes críticas que vinham pela "esquerda" ao 15M diziam que era incapaz de produzir alternativa durável, que tinha aberto caminho à direita.

Independentemente do que achamos de Podemos e Guanyem, estão lá e mostram duas coisas bem interessantes para o Brasil também:

a - que a "esquerda" (de governo) tem um oportunismo tão oportunista que nem sei como fazem para se olhar no espelho: passaram um ano a chamar o movimento de junho de "coxinha" ...insinuando que não é de "esquerda:", como se eles não governassem COM a direita extrema que governa o Rio e pela "Nova classe média". Só sabem cobrar posições de esquerda nos outros, parece que eles são imunes por milagre dessa cobrança.

b - essa imunidade na realidade lhe oferecida de bandeja por uma direita raivosa - bem representada pela mídia oriunda da ditadura - que permite a sobrevivência de uma polarização falsa e que junho mostrou ser mais extenuada do que o governismo pensava.

Não adianta agora procurar as contradições da candidatura Marina e seus apoios na direita, como se o PT ñ governasse com Sarney, Maluff, Paes ..e Eike Batista (que agora todo o mundo esqueceu, coitado dele) como se não tivesse promovido a projeto o discurso da nova classe média, como se o Ministro da Justiça não tivesse ficado calado ou até apoiado uma operação repressiva que no Rio coloca no rol do inquérito 73 coletivos (de que adianta decretar participação se não se defende seus processos constituinte?!).

Nem passou um ano, e junho de 2013 já vai desempenhar um papel nas urnas e fora delas. Confusamente, óbvio. Mas já está dando um tchauzinho para a candidatura tucana e seus choques.

O fato é que mesmo antes dos processos de invenção institucional que esse movimento - que continua vivo, bem vivo - determinará, ele já desempenha um papel - entre abstenção e explicitação da falsa polarização - decisivo nas eleições de junho, empurrando para a mudança e lembrando que a única virada pela esquerda vem mesmo das ruas, só pode vir das ruas e da PAZ que o povo precisa para viver!
 "Eleição ñ é votar por projeto, mas votar (ou não votar) por espaços de luta e produção de subjetividade : lutas!". No cenário de ausencia sequer de discursos propositores de democracia que presenciamos, não há possibilidade produção de subjetividade e de lutas pelo comum sem o vandalismo produtor de democracia que experimentamos em 2013."

Giuseppe Cocco
"Voltar pras saias de Dilma depois de tudo o que aconteceu em 2013 é o cúmulo da transcendência. Incapacidade de lutar, criar, pensar alternativas. É Hobbes e não Spinoza: amor ao soberano que garante nossas certezas. Marina é só um golpe de misericórdia em algo que JÁ acabou, em termos de imaginário, de mobilizar as pessoas e desejos. Medo nenhum e nenhuma esperança na representação. Marina não salva ninguém, como também não temos nenhuma responsabilidade política em salvar Dilma. Estou inclinado ao voto nulo. E continuar lutando!"

Bruno Cava -  Uni Nomade - Facebook

Darcy Ribeiro e Rubem Alvez (Dabate sobre Utopia)

Ricardo Domeneck

"Apropriado é minha cama encontrar-se no momento em uma rua que cruza a Raul Pompeia. Durmo, mas sabendo que este país ainda não fez por merecer o dono do nome. Ao atravessá-la, curvo-me ligeiramente e murmuro: "Você me atravessa."


Melhores momentos de um status do poeta e tradutor Ricardo Domeneck - Facebook

"Talvez soe a demagogia a alguns, mas trata-se de uma pergunta sincera, que venho me fazendo: você estaria disposto a apoiar uma candidata em detrimento dos direitos de sua "tribo", se fosse confirmada, na medida do possível, que sua presidência significaria uma melhora verdadeira nas condições de existência de outras "tribos", especialmente das TRIBOS? Para mim, em minha mente, está se tornando uma pergunta política central."

Ricardo Domeneck

 Trata-se, por outras palavras, de determinar quais são, dentre as diferenças positivas inscritas nos povos brasileiros — as múltiplas tribos patentes ou latentes homogeneizadas pela idéia de uma Nação Brasileira —, aquelas diferenças que se acham mais ameaçadas de destruição pela continuidade do atual "projeto de poder".


Todo mundo traz para seu próprio discurso a sua própria religião. As mais perigosas são as religiões que não se reconhecem como tal. Minha religião é que todo gesto, movimento, decisão ou posição que multiplica os possíveis e aumenta a quantidade e a qualidade de diferenças positivas (diferenças irredutíveis a desigualdades) no mundo deve ser saudado.(...) A questão colocada pelo Ricardo Domeneck é propriamente política, a saber, que nem todas as diferenças se colocam no horizonte imediato como ameaçadas no mesmo grau, ou, por outra, que as possibilidades de extermínio de certas diferenças irrecuperáveis são um fator que hierarquizaria prioridades e autorizaria concessões estratégicas.

"Note ainda que mais importante ou mais urgente se colocam como critérios que intervêm apenas em seguida à tomada de posição ética sobre o valor primacial ("religioso" ou "ontológico") da diferença. E mais uma vez, isso implica recusar a manobra terrorista que reduz toda diferença a uma desigualdade."

Mas achei muito importante a distinção que fez o Ricardo Domeneck entre tribos e TRIBOS. Não se trata de uma distinção entre sentido figurativo e literal, mas de algo mais sério. A destruição das TRIBOS é o que "nos" torna pouco a pouco indiferentes à destruição das tribos. "Primeiros eles, depois nós (ou vocês)". Em todos os sentidos.

Eduardo Viveiros de Castro

 “Com toda a coação e a libidinagem da gente branca, não foi, no entanto, destruído o que melhor restava no natural das Américas. A sua cultura resistiu no fundo das florestas, como na recusa a toda força escravizante.” No fundo das florestas assim como na recusa a força escravizante: nunca um sem o outro, pois “Toda a literatura, mesmo a missionária, que no século XVI encheu de novidade o mundo, aqui permaneceu para escândalo do mundo vestido e algemado que nos traziam”. Sem o contato direto com os índios não seria (e não será) possível “virar índio”. É por isso que “Só o selvagem nos salvará. Essa força profunda que sentimos e que cumpre conservar nos veio dele.”

Alexandre Nodari

PEQUENA NOTA SOBRE POLÍTICA E RELIGIÃO - Ricardo Lisias

"Amigos, depois da vulgaridade chantagista desse tal Malafaia e da covardia eleitoreira de Marina, andei lendo algumas confusões por aqui e queria dizer que

- evangélicos não são protestantes...

O protestantismo é um fenômeno histórico (e religioso) que surge com a Reforma de Martinho Lutero no século XVI. Derivados dela estão denominações como "presbiterianos", "batistas", "metodistas" e algumas outras. Para ser um pastor presbiteriano por exemplo é preciso passar por um seminário, estudar e compreender uma série de questões. Você pode frequentar uma igreja protestante sem absolutamente nenhuma vez colocar a mão no bolso.

Os assim chamados evangélicos aparecem em um fenômeno recente, cuja história todos nós conhecemos, pois muitas "igrejas" evangélicas têm menos idade que bastante gente por aqui. 

Com relação a comportamentos e sexualidade, acho que nenhuma religião é exatamente progressista, mas já vi muito comportamento bastante avançado por parte de protestantes. Com exceção de mim mesmo, minha família é inteira protestante - meu avô era pastor presbiteriano, além de professor de inglês - e eu nunca ouvi nenhum tipo de discurso homofóbico. Bem como eu mesmo já vi no interior de igrejas protestantes travestis e eles eram tratados como qualquer outra pessoa.

Nós entramos em tempos obscuros, ou melhor, nem sei se saímos deles. E um cuidado adicional nesses momentos é acertar o discurso. Além da obscuridade, agora também parece que vozes vulgares e deselegantes assumiram grande poder. Não é possível, parece que só piora.

Aguardo todos na Bienal do livro hoje às 16 horas. Bom dia a nós tudo."

30 agosto 2014

A lógica oculta da desrazão

JURANDIR FREIRE COSTA 
ESPECIAL PARA A FOLHA



No último dia 8 de janeiro, um jornal brasileiro noticiava: "Quem acompanha os movimentos do bispo Macedo no mercado financeiro garante: com a ajuda de Deus e do 13º dos fiéis, o homem triplicou sua movimentação financeira no final do ano, apesar dos escândalos. Distribuindo religiosamente a dádiva em aplicações nos benditos mercados de futuros, de ouro e Bolsa de Valores".

Qual o encanto do bispo Macedo? Por que, malgrado vídeos, chutes em estátuas religiosas e a confessa ganância dos pastores, a Igreja Universal não pára de crescer? À primeira vista, a fórmula do sucesso é fácil. Hannah Arendt, entre outros, parece tê-la decifrado. O caldo de cultura do fanatismo faz-se do cinismo dos líderes e da credulidade das massas, em meio à miséria, falta de expectativas econômico-sociais e descrença em valores críticos. Não foi assim com o nazismo? O raciocínio, certamente, aplica-se bastante bem aos fanatismos leigos. Mas o que dizer do fenômeno religioso?
A meu ver, neste caso, algo se acrescenta. Falar de religião é falar de fé, mistério, sentido da vida e da morte etc. O homem religioso, fanático ou moderado não é um homem irracional. Simplesmente utiliza uma racionalidade, para lidar com o mundo, que não é a racionalidade científico-filosófica. Caso seguisse os princípios lógicos e argumentativos desta racionalidade, a religião não seria "religião".
Raramente pensamos, como Georges Bataille ou Denis de Rougemont, que a religião não é topo ou base irracional de outras práticas culturais, mas um modo particular de ordenação do sentido da existência e finalidades do sujeito. Fazendo da religião uma ignorância, uma ilusão, um artifício de evasão, uma alienação, uma sublimação, uma contrafação etc., postos no lugar de outras crenças ou realidades, podemos ser vítimas de nossos próprios preconceitos. O científico não é o avesso do religioso ou vice-versa. Há muito tempo, Wittgenstein observou isto, criticando os trabalhos antropológicos de Frazer.
Desse ângulo, podemos procurar entender como a religião articula-se com outras crenças culturais, em contextos específicos, sem pretender explicá-la a partir de suas supostas origens ou causas extra-religiosas.
No caso da Igreja Universal, penso que um tópico, em especial, chama a atenção: o uso do dinheiro e sua relação com a atração exercida pelo credo sobre os fiéis. Perguntamos como as pessoas não percebem que estão sendo manipuladas! Mas, se é verdade que para os chefões da igreja o dízimo dos crentes é um negócio, não estou certo de que para os praticantes o mesmo ato signifique a mesma coisa. Os pastores vendem a salvação no céu e o enriquecimento na Terra, mas os crentes não estão necessariamente "comprando" uma mercadoria, como a lógica do mercado nos leva a interpretar.
Estão "dando" qualquer coisa; estão participando com dinheiro para uma "causa". Isto é diferente e muda tudo. É bem possível e provável que os contribuintes também tenham um olho voltado para o conforto material terreno acenado pelo bispo e seus auxiliares. Mas isto não invalida a hipótese.
Entre os praticantes do catolicismo, do protestantismo, do kardecismo, das religiões afro-brasileiras etc., interesses do mesmo gênero não negam a primazia dos valores sagrados sobre os profanos. O fundamental, acredito, é que dar, em vez de comprar, é um gesto de "desperdício", um "luxo", um "dispêndio", numa cultura de acumulação em que só é permitido esbanjar, imaginando que se está "consumindo".
Ora, nesse caráter de excesso e imprevidência, frontalmente oposto à moral utilitarista, está talvez um dos mais fortes atrativos da Igreja Universal. Além do fascínio do maniqueísmo e do moralismo pequeno-burguês da seita, o fiel sente-se superior aos infiéis porque professa um estilo de vida no qual a dádiva e o desprendimento criam uma imagem narcísica de grandeza moral que o dinheiro não compra. O sujeito, com boas razões, quer manter essa imagem, mesmo que tenha de pagar ao bispo. Só ela parece estar à altura de pretensões espirituais maiores.
Enquanto nossa cultura pública e privada, sobretudo a das elites, dissolve-se em corrupção, cocaína, apatia política, consumo e filosofias de "boudoir", Edir Macedo fatura em cima do vazio moral. Afinal, o que se oferece em troca das promessas da Igreja Universal? Uma cervejinha no sábado à tarde, um grito de gol a cada dois anos, três dias de desfile nas avenidas? O culto ao próprio umbigo, às lágrimas e suspiros românticos, à obsessiva pergunta, "quem pode ter orgasmo com o quê e com quem", ou, finalmente, ao sonho da semana de compras em Miami?
Podemos ver o fenômeno da Igreja Universal como uma caricatura dos exércitos de salvação das peças de Brecht ou dos filmes de G.W. Pabst. Mas podemos vê-lo, talvez com mais proveito, como sinal de que nossa cultura não tem uma só regra do jogo; tem várias. E, numa delas, termos como honra, altivez, dignidade, lealdade, fidelidade, vergonha etc. ainda fazem sentido e dão sentido à vida e à morte.
Se na cultura dominante deste Brasil "fin-de-siècle", grande parte do pensamento criativo aceita espremer-se no apertado "tecnologês" econômico ou informático, desprezando a reflexão política ou moral, nem todos são obrigados a se converter a este credo. Existe uma "desrazão" que, mesmo fanática, prosaica e rude, pode querer dizer o que não podemos ouvir. Tomara que possamos escutá-la a tempo. A loucura, às vezes, tem método. 

fonte: aqui
"A História colonialista dos povos europeus começa com o processo pavoroso da conquista que transforma todo o novo mundo conquistado numa câmera de tortura."

Walter Benjamin

"Não quero ser acusado de neoliberal, mas não deixa de ser irônico o fato de que após anos de incentivo à indústria automobilística e de preços artificiais da gasolina, a pretexto de segurar o emprego e a inflação, o resultado final seja inflação, estagnação do emprego, desequilíbrio do balanço de pagamentos, um "ajuste recessivo" para colocar tudo de novo no lugar e, last but not least, cidades muito mais engarrafadas.

Moral da história: no século XXI, não é só o neoliberalismo que está datado; o neokeynesianismo desenvolvimentista também já não vale grande coisa.
E o chato é que tenhamos de voltar ao primeiro, só para dar lugar ao segundo, na seqüência."

Paulo Henrique Almeida - Facebook 

A capacidade de doar

JURANDIR FREIRE COSTA


Um dos mais tenazes preconceitos criados pelo utilitarismo vulgar é a idéia de "interesse como posse ou aquisição". Aprendemos que tudo o que pensamos, sentimos e fazemos é motivado pelo interesse em possuir alguma coisa. Assim, todo apetite, desejo ou aspiração teria como causa o interesse, manifesto ou oculto, de "possuir" o objeto visado. Essa idéia se converteu em uma espécie de jargão cultural inconsciente. A vida, diz-se, é um cálculo, consciente ou inconsciente, que visa a regular a economia da posse. Amamos, dominamos o outro, buscamos o prazer, o poder, a felicidade e a virtude por interesse em possuir. E se, por acaso, atiramos no próprio pé, ainda assim descobriremos, cedo ou tarde, um estranho e ignoto interesse em possuir, sob a aparência do gesto insensato. Nada escapa ao fôlego felino da intenção possessiva. O que mantém tanto tempo em cartaz esse interesse?


Dois motivos me parecem importantes. O primeiro se relaciona ao intelectualismo, ao universalismo e ao racionalismo em filosofia. O utilitarismo vulgar, em oposição a esses ideais filosóficos, afirma que interesses concretos e não especulações desencarnadas são os móveis da ação. A ação é desse mundo, ou melhor, de algum lugar no mundo onde dominam os interesses paroquiais, irredutíveis a normas válidas e extensíveis a todos. O segundo motivo se deve ao prestígio dos ataques intelectuais à tradição moral cristã e às versões truncadas da concepção rousseauniana da natureza humana. Bem ao gosto de algumas correntes do romantismo filosófico-literário, o utilitarismo vulgar reage ao "intelectualismo frio", afirmando o direito dos corpos, paixões e pulsões de ocuparem a cidade. Cansados da ética protestante e afinados com o espírito do capitalismo, dizemos que não somos seres etéreos, hibernando em céus de idéias puras. O que nos excita e leva à ação nada tem de bom-mocismo ou de histórias edificantes. Nossa matéria-prima são os pecados capitais, portanto, lá onde o interesse está, a verdade do "desejamos" deve advir. Diz-me em que te interessas e te direi quem és! A idéia de interesse, nesse patamar metafísico, embora insinuante, é trivial. O que tudo explica, nada explica. Qualquer conceito que pretende esgotar a inteligibilidade do que analisa, a partir de um único ponto de vista, incorre no mesmo engano. Mas, usada no sentido pragmático corrente, a noção pode ter utilidade, desde que possamos ver suas vantagens e desvantagens. Uma das grandes vantagens da idéia de "interesse" é, sem dúvida, nos liberar da tarefa de sermos anjos em corpos de mamíferos falantes. O intelectualismo racionalista e universalista acabou por fabricar ideais de vida em franca contradição com os reais modos de viver. A ação, sem dúvida, obedece às "razões da Razão", mas também às "razões do coração", como disse Pascal. Desconhecer, isso é, produzir tensões, conflitos e sofrimentos desnecessários. A grande desvantagem do "interesse", na vulgata utilitarista, é a sedução da imagem de "interesse como sinônimo de posse". Acreditar que só agimos porque queremos reter ou acumular é dar provas da mais flagrante miopia em relação ao que somos ou fazemos.

Redenção pela doação Ninguém melhor que Winnicott, um dos três ou quatro grandes nomes da história da psicanálise, mostrou o equívoco dessa opinião. Winnicott, ao descrever os interesses do indivíduo do "self", em linguagem técnica, dá ênfase especial a um deles, a capacidade de se preocupar com o outro, expressa no "interesse de doação". Para o autor, a dádiva, o dom, a doação, não são ornamentos dispensáveis da vida subjetiva. A doação é uma obrigação, um ímpeto em demasia, um excesso da vida criativa que não pode ser entesourado, sob pena de grave desequilíbrio psíquico.


A doação é a contrapartida psíquica da aquisição. Ao recebermos qualquer coisa do outro, contraímos uma dívida e uma culpa, das quais nos redimimos ao doar. A doação não é, de forma necessária, "bondosa". Podemos doar por generosidade -em gratidão, amor ou reconhecimento ao que nos foi dado- como podemos doar por egoísmo -em casos de ostentação perdulária, na disputa por sucesso e poder sociais. Mas, se não pudermos doar, de alguma maneira, nos arriscamos, simplesmente, a perder o "interesse" por nossa vida e pela vida do outro.

O impedimento de doar produz, assim, defesas emocionais que se tornam compulsivas porque visam a anular o sentimento de "superfluidade" e "futilidade" dos que se percebem como incapazes ou impossibilitados de doar. Esse conflito assume várias configurações psicológicas. Por exemplo, o sujeito, diante de ideais despóticos de perfeição, pode experimentar uma drástica desmoralização na auto-estima, já que a desmedida da exigência torna insignificante tudo o que ele tem para oferecer. Em outros casos, o autocentramento, o desdém e a prepotência daquele a quem o dom se destina, rebaixa o valor de toda dádiva oferecida. 

Enfim, se a tentativa de doar se revela infrutífera, o sujeito pode ser levado a se apropriar de qualquer coisa do outro, bens ou vida, para ter a experiência de poder dar ou negar a alguém alguma coisa de valor.

A teoria winnicottiana da "oferenda" nos ajuda a entender, um pouco mais, o sentido de alguns fenômenos dramáticos da vida urbana moderna. O bloqueio do circuito da doação fixa o sujeito na posição da "posse", levando-o a agir de forma, muitas vezes, predatória e autodestrutiva, com o intuito de recuperar o próprio sentido de viver. A destruição cega de bens materiais ou culturais; a brutalidade de assassinatos, à primeira vista, gratuitos; o moderno sentimento de solidão e abandono individuais; a epidemia de depressões ou de maus-tratos corporais auto-infligidos; a busca de autovalorização por meio do prazer independente do outro, como nas drogadições etc. são alguns dos sinais da atrofia cultural do "interesse de doação".

Não nos tornamos "delinquentes", anti-sociais, "narcisistas", deprimidos, obcecados pela domesticação do corpo e por sensações corporais extáticas apenas porque queremos devorar tudo e todos, segundo a lei do consumo. Tornamo-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes, abatidos, ansiosos, impiedosos, truculentos, apáticos ou "resignados" porque nos fazem ver, sentir e pensar que nada do que somos ou temos desperta o menor "interesse", "admiração", "cuidado" ou amor do outro. A volatilidade dos valores baseados em preferências idiossincráticas; a obsolescência precoce dos emblemas de distinção socioeconômica; o aumento acelerado do número de pessoas consideradas "marginais", "improdutivas" e "descartáveis"; e, finalmente, a exclusão da maioria, até do pífio e asfixiante universo do consumismo, tornam o que possuímos sem valor, e o que doamos, irrelevante.

Antes de nos tornarmos definitivamente mutilados em nossa vida mental, talvez seja interessante ouvir o que pessoas como Winnicott têm a dizer. Quem sabe, conhecer melhor um grande, discreto e simpático pensador seja um passo a mais no processo de revalorização de nossas vidas e de nossa capacidade de doar.


fonte: aqui

29 agosto 2014

"Uma das categorias mais nocivas da esquerda tradicional, que deixou um dos legados mais lamentáveis, é a categoria de alienação. Não me interessa aqui refazer de novo todo o percurso desse conceito de Hegel a Marx, nem muito menos entreter o argumento bíblico de que se lêssemos Marx direitinho, encontraríamos um conceito de alienação legal, que nos serve.
Interessa-me o uso que se consolidou na esquerda ao longo do século XX, em que alienação é basicamente sinônimo de falsa consciência ou, trocando em miúdos, aquele termo que usamos quando o povo, ou os eleitores, fazem algo de que não gostamos.
Já escrevi coisas que não assinaria hoje, mas me orgulho de nunca ter feito isso. Podem revirar o Biscoito Fino e a Massa. Não há um único "o povo está sendo enganado por ...". Pelo contrário, sempre combati essa tese.
O PT dos anos 90 se fartou de usá-la (ou alguma variante dela) para dizer que o povo estava sendo enganado pelo Plano Real. Não estava. Os eleitores em 1994 fizeram uma escolha pela estabilidade econômica que lhes permitiria não mais ter que correr de um corredor ao outro do supermercado para pegar um produto antes de que o preço fosse remarcado. Sabiam o que estavam escolhendo.
Na década de 2000, foi a vez dos tucanos dizerem que o povo estava sendo iludido pelo "Bolsa Esmola" e que a votação de Lula se devia isso. Não era alienação, não era ilusão, era uma escolha clara por uma série de programas sociais que conferiam aos pobres algo de direitos e cidadania.
Agora é a vez de ambos dizerem que o povo está sendo "iludido" e "enganado" por Marina. É uma tese corrente nas redes: "até quando vocês vão se iludir?" "Até quando vão se deixar ser enganados?" etc. Quem pontifica sobre a alienação dos outros costuma, em geral, não estar muito bem informado sobre os temas em pauta (da mesma forma em que aqueles que gostam de corrigir a gramática alheia costumam tropeçar na própria). Confirmei isso ontem, de novo, conversando com alguns defensores da tese da alienação.
Há razões reais e bem claras pelas quais tanta gente está optando por Marina. Se você não as viu, não as entende ou discorda delas, uma péssima maneira de começar é instalando-se nesse lugar olímpico que pressupõe que você sabe sobre as outras pessoas algo que elas não sabem sobre si próprias.
Escuto com prazer defesas de ou críticas a qualquer candidato. Não escuto gente que começa o papo dizendo "vocês aí estão sendo iludidos e enganados". Não costuma sair coisa muito boa."

Idelber Avelar - Facebook

Brava gente,


não provoque o Governador agora. Estamos em campanha eleitoral e é provável que ele se exponha e que assine “compromissos” porque está perdendo nas pesquisas. Vocês bem sabem que NÃO existe política cultural e que NÃO existe secretário de Cultura. Este marionete que foi nomeado secretário é inoperante, para não dizer parasita. Acha que o inimigo é Cássio, quando ele próprio é o que mais prejudica o Governo que não percebe porque parece encantado com o tal projeto intitulado PRIMA (que de fato é PRIM porque o A de Artes não existe). Este projeto já gastou muita grana na compra de instrumentos e na folha de pagamentos de professores de música, e seu resultado é pífio. Procure saber o montante investido e o resultado disso tudo. Vejam bem, são 4 anos e este é o único projeto que poderíamos incluir no rol das políticas culturais do Estado. A reforma incompleta do Espaço Cultural e de dois teatros paraibanos (Santa Rosa e Íracles Pires) não deve ser contabilizada como política cultural. Isso me parece mais da alçada da Secretaria de Infraestrutura do Estado e não da SECULT, assim como a reforma do Cine São José. O Festival de Areia também não conta. Os festivais são eventos que promovem pouco a formação cultural dos paraibanos. Parte do dinheiro usada neles, e em shows musicais, deveria ser investida na promoção da formação cultural dos paraibanos ou até aplicada num FIC da vida.

Brava gente, o Conselho, a Conferência e as reuniões (artifícios para enxugar gelo) não deram nem darão em nada porque NÃO existe vontade política nem competência no “secretário” que ocupa a SECULT nem no “Governador” (este acha que apenas obras lhe botarão de novo no Palácio da Redenção e na Granja). Minha gente, Cartas e Abaixo-assinados (eu vi dois abaixo-assinados sendo entregues pela turma do audiovisual ao “secretário”) se mostraram instrumentos ineficientes. Votos me parecem mais indicados para mudar estes incultos de plantão. Saúde e sorte.


Via: Ed  Porto - A Paraíba precisa ser assistida: Facebook